SÉRGIO CRUZ (HP Ed. nº 2.210, 24/10/2003)
A serviço de uma conhecida central de armações do imperialismo contra o continente latino-americano, Kenneth Marwell, travestido de acadêmico, faz deformação grosseira da História do Brasil e tenta colocar suas patas sujas sobre o herói da Inconfidência
Temos assistido, ultimamente, em alguns jornais brasileiros – ou, talvez seria melhor dizer, publicados em português, ou numa língua algo parecida – a uma certa figura, de nome Kenneth Maxwell, emitindo as mais diversas opiniões sobre o Brasil. Não só sobre os fatos atuais, mas também sobre alguns dos mais importantes eventos históricos ocorridos no país. Desde “conselhos” ao presidente da República de como melhor adequar a economia do país aos interesses de Wall Street e da Casa Branca, até comentários sobre os motivos que levaram à Inconfidência Mineira e o papel desempenhado por Tiradentes à frente do movimento.
Kenneth Maxwell, nascido na Inglaterra, atualmente vive nos Estados Unidos, onde presta serviços de “consultoria” ao governo George W. Bush. Sua função é municiar Washington com “estudos acadêmicos” sobre a realidade política sul-americana e brasileira. O financiamento para os “estudos” de Maxwell vêm do Council on Foreign Relations Latin América Studies Programs (Estudos Latino-Americanos do Conselho de Relações Exteriores de Nova Iorque ), um dos antros criados pelos Rockefellers.
Na década de 70, já sob esse desinteressado mecenato, Maxwell publicou um livro intitulado “Conflicts and Conspiracies: Brazil & Portugal”, traduzido por aqui como “A devassa da devassa”. O título da edição em português é uma referência aos “Autos da Devassa da Inconfidência Mineira”, isto é, às atas dos interrogatórios de Tiradentes e seus companheiros, feitas pelos inquisidores da Coroa portuguesa.
DIFAMAÇÃO DOS REVOLTOSOS
Os “Autos da Devassa” foram compilados e publicados pela primeira vez em 1936, por decisão do presidente Getúlio Vargas. Em suas mais de 3 mil páginas, estão os depoimentos de todos os participantes do movimento, inclusive os nove interrogatórios a que Tiradentes foi submetido durante os três anos em que esteve preso no Rio. O texto é mais do que conhecido.
No entanto, o que Maxwell diz a respeito dos autos da devassa tem muito pouco – essencialmente, nada – a ver com o seu verdadeiro conteúdo, exceto por tomar o partido dos interrogadores. Quase todos os principais episódios da Inconfidência Mineira são manipulados, isto é, falsificados, pelo autor. O que Maxwell faz é claro: advogar a favor do acintoso assalto perpetrado pela Coroa portuguesa no Brasil. Na verdade, essa advocacia é exatamente a de que o Brasil deve se submeter – antes, à Coroa e aos colonialistas ingleses; hoje, aos Rockefellers e Bushs que o sustentam.
O Brasil independente não é coisa viável. Bom mesmo para o país são os traidores e submissos – daí, ele recorre à pura e simples difamação dos revoltosos do século XVIII, especialmente o principal deles, ao mesmo tempo que deturpa e omite informações dos “Autos” para promover o traidor Silvério dos Reis, segundo ele, um “injustiçado”. Por último, e não menos importante, seu objetivo é claramente quebrar a auto-estima brasileira, apresentando a nossa História como algo de que devemos nos envergonhar, e não nos orgulhar.
É dele a versão, bastante difundida em alguns meios “acadêmicos”, de que os inconfidentes não passavam de “oligarcas e exploradores”. A maioria deles teria participado do movimento, segundo o autor, apenas para escapar do pagamento de suas dívidas com a Coroa Portuguesa. O próprio Tiradentes, era um aventureiro e boquirroto que apenas serviu de “bode expiatório” para a “oligarquia mineira”. Já a Coroa portuguesa, em sua opinião, teria cometido apenas um erro grave: ter permitido que brasileiros assumissem postos na administração pública da colônia.
O assalto praticado contra o Brasil pelas potências econômicas da época, a extorsão praticada por Portugal, inviabilizando qualquer atividade econômica na colônia, não passava, para Maxwell, de uma simples e legal “cobrança de impostos”. O que ocorria de escandaloso, em sua opinião, era uma “inaceitável” corrupção praticada no país, pasmem, pelos funcionários brasileiros!! Para Maxwell, os criminosos não eram os portugueses e nem seus amos, os ingleses, que assaltavam o Brasil, mas sim os brasileiros, ou, mais especificamente, os inconfidentes, “oligarcas exploradores”. “A conjuração dos mineiros”, diz ele, “foi, basicamente, um movimento de oligarcas e no interesse da oligarquia, sendo em nome do povo invocado, apenas como justificativa”.
Na verdade, em sua opinião, a culpa por toda a crise que se abateu sobre a colônia na década de 70 do século XVIII era do Marquês de Pombal que, ao anteceder a desastrada administração de D. Maria I, permitira um certo desenvolvimento econômico na colônia e, também, a ascensão de brasileiros a alguns cargos da administração pública de Minas Gerais.
Dos primórdios da mineração, até 1820, foram subtraídos do Brasil, pela Coroa, em torno de 772.500 quilos de ouro e 7.577.173 quilates de diamante, ou seja, quase metade de todo o ouro produzido no resto do mundo no mesmo período. Mas, sobre isso, nenhuma palavra. Curiosamente, suas críticas se concentraram exclusivamente sobre as personalidades que, de uma ou de outra forma, estavam envolvidas na Inconfidência.
“O sistema de propinas“, dizia ele, “proporcionava uma cobertura ideal para o suborno e a corrupção, especialmente para homens como João Rodrigues de Macedo [mineiro, contratador, e simpatizante da causa dos inconfidentes] que muitas vezes atuavam como banqueiros”. “A lassidão da Junta na cobrança das dívidas”, acrescenta Maxwell, “permitia que homens como Macedo usassem tanto os lucros contratuais quanto os montantes devidos em suas próprias especulações, enquanto o controle das receitas alfandegárias, feito por um dos maiores negociantes locais facilitava a manipulação e a evasão desses tributos…”.
Vejam a seguir, como o consultor da Casa Branca se indigna com a “frouxidão” dos portugueses no controle do assalto e do destino dado ao ouro: “Apesar da gritante evidência da maior eficácia da administração direta dos contratos pela Junta (órgão da Fazenda de Minas, controlada pelos portugueses) e das muitas denúncias do sistema feitas ao ministro (Assuntos Ultramarinos), em Lisboa, continuava o descalabro administrativo e admitia-se o acúmulo de atrasos dos contratantes”, reclama Maxwell.
OURO AOS BANDIDOS
Como se vê, ele mostra-se bastante irritado com o fato de estar havendo contratos com brasileiros para a exploração do ouro no Brasil. Maxwell, com o bestunto típico de um colonialista inglês agora colonizado pelos ianques, não se conforma com o fato e propugna – com mais de 200 anos de atraso – por uma fiscalização implacável, com punição rigorosa a qualquer desvio de ouro para destino que não fosse encher os cofres portugueses, ou seja, da Inglaterra, pois o processo de industrialização inglesa foi bancado, em boa parte, com o ouro do Brasil saqueado por Portugal.
Na segunda parte do livro, o autor parte para o ataque direto aos inconfidentes. Assim ele se refere a um dos mais combativos inconfidentes mineiros, o padre José de Oliveira Rolim, vigário da região de Tejuco, hoje município de Diamantina: “O padre de Tejuco, com a face marcada por uma fina cicatriz era um inescrupuloso padre, traficante de escravos e de diamantes. Era pessoa de prestígio no Distrito Diamantino, onde mantinha-se no ramo de emprestar dinheiro… Ele fora denunciado à Fazenda e era apontado como exemplo da ostensiva corrupção reinante entre os influentes caixas locais do governo”, descreve Maxwell.
Bem ao contrário do que diz Maxwell, o padre Rolim era um dos mais importantes integrantes da Inconfidência. Representante de um setor combativo do clero, ele era um dos apoiadores mais próximos de Tiradentes. O vigário do Tejuco participaria do levante com mais de 200 homens muito bem armados e com um grande estoque de pólvora, produzida por ele mesmo. Donatelo Griecco, em seu livro “História Sincera da Inconfidência”, constata: “O padre Rolim era odiado pelos governantes portugueses, mas, era muito querido pelo povo de Minas Gerais”.
Também o poeta e jurista, Cláudio Manoel da Costa, o “amigo Doroteu”, das Cartas Chilenas (poema do também inconfidente Tomás Antônio Gonzaga), não escaparia das insinuações de Maxwell. Morto durante as sessões de tortura em Vila Rica, Cláudio Manoel da Costa, segundo a versão dos algozes (há certas coisas que não mudam, por exemplo, as versões dos torturadores sobre a morte de suas vítimas), se suicidara. Mas, segundo Maxwell, ele morreu por obra de seus “companheiros de conjuração”, que teriam arquitetado a sua morte “para que ele não os incriminassem”. Como praticamente em tudo que afirma, não existe nem cacoete de prova. Se houvesse, aliás, os torturadores seriam os primeiros a descobri-las e propalarem-nas. Porém, Maxwell achou que os últimos foram muito incompetentes…
Sobre Alvarenga Peixoto, Maxwell insinua que o que o teria motivado a participar do movimento não foram suas convicções patrióticas e nem o seu amor pelo país, mas sim algumas questões menores, de cunho “particular”. Suas dívidas pessoais, por exemplo, provocadas pelo fracasso de suas investidas em busca de ouro. “A motivação de Alvarenga Peixoto para se envolver no complô era mais direta”, afirma Maxwell. “Há muito endividado, em 1788 estava diante de uma situação crítica. O fracasso das caras instalações hidráulicas realizadas nas suas numerosas lavras auríferas, e que não davam resultados compensadores, juntara-se à sua vertiginosa lista de dívidas para prejudicar seu crédito…”. Prova, outra vez, nenhuma. Apenas a projeção da sua mesquinharia de mercenário dos Rockefellers.
É evidente que a maioria dos brasileiros, naquela época, estava endividada. Muitos brasileiros que haviam prosperado nas fases iniciais da mineração, diante das pressões e dos confiscos promovidos pelas autoridades portuguesas, foram levados à bancarrota. Muitos procuraram empreender outras atividades como o comércio e a produção industrial. O Brasil inteiro, diante da sangria insaciável promovida por Portugal, encontrava-se em dificuldades. O que era o melhor motivo possível para empreender a libertação do país.
Pois as restrições cada vez maiores dos portugueses às atividades econômicas na província, (D.Maria I proibiu em 1875 a existência de qualquer fábrica no Brasil) e o aumento acelerado do roubo e da sangria externa, agravaram ainda mais a crise na província. Com o esgotamento da produção aurífera, Portugal decidiu intensificar o assalto. Com isso, não só os juristas, mas poetas, militares, fazendeiros, perceberam que essa política não levaria o Brasil à lugar algum, exceto à catástrofe. É nesse contexto que o povo brasileiro, liderado por Tiradentes, decide lutar pela independência.
Porém Maxwell não descreve nada disso. Seu objetivo central continua sendo justificar o roubo de Portugal e caluniar os revoltosos. O padre Carlos Correa de Toledo, por exemplo, um dos primeiros articuladores do movimento, autor do lema: “mais vale morrer com a espada na mão que como um carrapato na lama”, foi pintado por ele como um “rico e ambicioso proprietário de terras e senhor de escravos que teria se envolvido no movimento porque perdeu, por decisão de Lisboa, a jurisdição paroquial de sua cidade, São José, sobre a localidade de Tamanduá, uma rica e florescente comunidade, onde, segundo Maxwell, o padre teria “interesses particulares”.
O coronel Francisco de Paula Freire, cunhado do engenheiro e inconfidente José Álvares Maciel, e comandante do Regimento de Cavalaria Auxiliar de Minas Gerais, é ridiculamente atacado como um militar “corrupto”. Por que ele não ficou do lado da Coroa, em torno da qual voejavam os corruptos d’aquém e d’além mar, é coisa verdadeiramente inexplicável.Para Tiradentes, o homem que doou a sua vida pela liberdade, que foi capaz de elaborar o programa revolucionário mais avançado da época, que incluía desde a independência do país e a proclamação da república, até a abolição dos escravos, passando pela industrialização, pelo incentivo à ocupação do território, pela mudança da capital e pela criação do ensino público e gratuito, além de universidades por todo o país, segundo Maxwell, não passava de “um recalcado”.
E, além disso, e contraditoriamente, o líder que durante as sessões de tortura respondeu calmamente a seus carrascos que, se possuísse dez vidas, as daria todas pela liberdade de seu país, é classificado por Maxwell como um mero “bode expiatório da oligarquia”, “ingênuo”, “boquirroto”, etc. “Queria a independência apenas de Minas e não do Brasil”, diz esse pseudo-intelectual de meia-tigela, não explicando porque razão ele foi preso no Rio, onde arregimentava apoio e adeptos.
SUBMISSÃO
E, aí, temos a inversão típica dos canalhas: segundo ele, o inconformismo de Tiradentes seria apenas “porque não conseguia ser promovido na carreira militar”. Tiradentes encontrou realmente dificuldades em sua trajetória militar, dificuldades devidas à perseguição por suas idéias, sua independência de espírito, sua solidariedade aos escravos e outros humildes, e ao preconceito contra um homem do povo dentro de uma corporação aristocrática, feudal e colonial. Porém, Mawell inverte as coisas, julgando Tiradentes por sua própria submissão ao poder dominante e decadente, sua própria covardia e sua própria sofreguidão por galgar cargos, títulos e postos bem remunerados.
Realmente, um prestador de serviços ao que há de mais apodrecido no mundo de hoje, não poderia ver ninguém, nem naquela época, e nem hoje, com a disposição de abraçar uma causa justa e lutar por ela. Para ele, só podem estar envolvidos em algum movimento aqueles que tirarem proveito próprio da situação…
Sem dúvida, essa não é a primeira vez que Tiradentes foi caluniado. Antes de Maxwell o monarquista Joaquim Norberto Souza e Silva também escreveu, em 1873, a sua “versão” sobre a Inconfidência. Seu livro “A História da Conjuração Mineira”, da mesma forma que o do anglo-ianque, foi muito badalado pelos invertebrados da época. Sua intenção era a mesma: atacar os inconfidentes e, particularmente, atingir a imagem de seu líder maior. Naquele período, o movimento Republicano-Abolicionista havia resgatado a figura de Tiradentes e dos demais inconfidentes. A ala mais caduca do monarquismo escravagista resolveu, então, reagir através de Norberto, segundo o qual “Tiradentes era pretensioso, leviano e irresponsável”. Isso, em 1873. Hoje, com a República proclamada e a escravidão abolida, o livro de Norberto tem como leitores apenas alguns ratos e traças.
DEFESA DO TRAIDOR
Quanto a Maxwell, além do já dito, faz malabarismos inusitados para tentar “provar” que Silvério dos Reis não teria traído o movimento. Sua grande “descoberta histórica” foi que a vergonhosa delação de Silvério só teria sido feita após a decisão do governo de suspender a derrama. E que, portanto, segundo ele, a delação não teria tido nenhuma interferência nas ações repressivas de Barbacena e no desfecho do movimento.
Isso é absolutamente o contrário do que consta nos “Autos da Devassa”. Porém, Maxwell passa um capítulo inteiro a “provar” que Silvério teria sido “injustiçado”. Para chegar a essa conclusão, ele baseia-se na data da visita oficial de Silvério ao Palácio do governo – 15 de março de 1789. Para ele, essa seria a data da delação. E, como a carta à Câmara de Vila Rica, anunciando a suspensão da derrama, teria sido feita com a data de 14 de março, concluiu que a delação de Silvério “não havia interferido na decisão de suspender a derrama”.
Parece até que o governador tinha algum interesse em queimar o seu informante… Se ele suspendesse a derrama no dia seguinte de uma visita oficial de Silvério ao palácio, este estaria literalmente torrado. Barbacena não poderia mais usar Silvério. Mas, o fato é que o traidor permaneceu no movimento, delatando tudo até a prisão de Tiradentes, em 10 de maio, no Rio de Janeiro.
Apesar de datada de 14 de março, somente no dia 17 de março a carta foi recebida pela Câmara de Vila Rica. Ou seja, dois dias após a delação de Silvério. Por que a carta demorou três dias para ir do palácio até a Câmara? Porque a carta foi antedatada, tudo indica, para preservar Silvério. No entanto, Maxwell omitiu essa informação de seus leitores – de que a carta só chegou na Câmara no dia 17 de março. Preferiu insistir na ”tese” de que a decisão de suspender a derrama teria sido tomada um dia antes da delação de Silvério.
O que pretendia Maxwell com isso? “Provar” que a “oligarquia” que liderava o movimento teria sido corrompida, ou seja, que a decisão de suspender a derrama teria sido tomada em conluio com os líderes do movimento. Entre suas insinuações estão a de que Gonzaga, Álvares Maciel, Freire de Andrade e outros teriam aderido junto com Silvério a Barbacena. Só não explica porque todos foram condenados e deportados pela Coroa. Ou seja, o destino dos inconfidentes – desterro, confisco e humilhação, o assassinato de Cláudio Manoel da Costa e a execução de Tiradentes – e as condecorações e honrarias dadas a Silvério dos Reis falam por si mesmos.
É certo, caro leitor, que essa deformação grosseira da nossa História não demandaria muita discussão não fosse a insistência de alguns meios de comunicação e de alguns integrantes do chamado “meio acadêmico”, de ficar repetindo essa idiotice toda. Ou, o que é ainda pior, que essas idéias acabem indo parar nas telas de nosso cinema, como ocorreu recentemente com o filme “Tiradentes”, lançado no início deste ano, do diretor Osvaldo Caldeira. Uma repetição mecânica e, por sinal, de péssimo gosto, de tudo o que foi inventado pelo apaniguado de Bush.
E, mais grave ainda, alguns setores acabam, por conta de uma inexplicável bajulação, querendo, como vimos durante a invertebrada administração tucana, mudar o ensino de História para inculcar uma aberração dessas nos currículos escolares brasileiros.