“Se houvesse uma política pública de testagem massiva da população, com a devida identificação de contaminados e isolamento para barrar a transmissão, o saldo da Covid-19 certamente estaria longe das 100 mil mortes registradas esta semana”
Em entrevista ao Jornal Extra Classe, Pedro Hallal, o reitor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), e coordenador da maior pesquisa sobre coronavírus no Brasil, afirmou, na quinta-feira (06), que “se houvesse uma política pública de testagem massiva da população, com a devida identificação de contaminados e isolamento para barrar a transmissão, o saldo da Covid-19 certamente estaria longe das 100 mil mortes registradas esta semana desde o primeiro óbito causado pela doença, no dia 12 de março”.
O Brasil é um dos países do mundo que menos fez testes diagnósticos (PCR) para identificar os infectados e, assim, poder fazer o rastreamento e a busca de casos. Até recentemente o Ministério da Saúde, com um ministro interino, não tinha garantido nem a chegada de testes aos estados e municípios na quantidade necessária por falta de prioridade e de reagentes. Quando mandou, o fez de forma incompleta.
Para o reitor, houve falta de prioridade do Poder Público na testagem para que pudesse ser feita a vigilância epidemiológica adequada. Não se trabalhou para interromper a transmissão do vírus na comunidade, principalmente nas populações que não puderam participar do isolamento social.
“Tivéssemos tratado o coronavírus com seriedade, não teríamos 100 mil mortes”, diz Pedro Hallal. “Tivéssemos ouvido os pesquisadores, poderíamos sair dessa com muito menos mortes do que tivemos, especialmente se tivéssemos adotado políticas de testagem em massa, rastreamento de contatos e distanciamento social mais rígido. É uma pena que tantos brasileiros e brasileiras tenham perdido a vida, e a eles e a elas fica aqui a minha homenagem”, acrescentou o reitor da UFPel.
À frente da pesquisa de mapeamento do coronavírus no Brasil, a Epicovid-19 BR, que testou e entrevistou 89.397 pessoas em 133 cidades de todos os estados do país em suas três fases, o reitor da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel) alertou sobre os riscos de “se tratar a pandemia e o distanciamento social sem a devida seriedade que o tema merecia”.
“O reitor da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel) alertou sobre os riscos de “se tratar a pandemia e o distanciamento social sem a devida seriedade que o tema merecia”
“Não adiantou. O saldo de 3 milhões de contaminados e 100 mil mortos alcançados na primeira semana de agosto é só a parte mais visível de um problema mais amplo: a desigualdade social, que fez a doença contaminar e matar mais pobres do que ricos, e a negação da pandemia, que transformou o distanciamento em disputa ideológica”, observou Hallal.
Ele destacou ainda que “essa história de que a maioria dos contaminados não apresenta nenhum sintoma está errada. Pelo nosso estudo, apenas 9% da população que têm o vírus não tiveram sintoma algum da doença. E perto de dois terços tiveram perda de olfato e de paladar, que é um sintoma muito característico da Covid-19”.
“Ou seja, esse dado científico poderia ter servido para a Vigilância Sanitária selecionar pessoas que potencialmente poderiam ser testadas positivamente. Ter essa informação e isolar essas pessoas para evitar novas contaminações teria sido essencial. Infelizmente, houve um erro na compreensão dessa doença que não foi corrigido a tempo de evitar tantas mortes”, assinalou o reitor da UFPel.
Para Hallal, a radicalização dos discursos e o muro gigante que foi construído entre aqueles que pensam diferente de nós”, foi um grande problema nesta pandemia. “As pautas da cloroquina e do lockdown são exemplos de que, antes das evidências científicas, o que moveu a convicção e a crença das pessoas foi a opinião do “time” para o qual votaram na última eleição. E isso é péssimo para o país” afirmou o professor, numa crítica ao comportamento negacionista de Boslonaro.
“A palavra-chave é desigualdade. A contaminação, pelos dados apurados na pesquisa Epicovid-19 BR, tem uma taxa duas vezes maior entre os mais pobres do que entre os mais ricos”, observou o pesquisador.
“A palavra-chave é desigualdade. A contaminação, pelos dados apurados na pesquisa Epicovid-19 BR, tem uma taxa duas vezes maior entre os mais pobres do que entre os mais ricos”, observou o pesquisador.
“Isso que estamos falando de uma doença que chegou ao Brasil pela área internacional dos aeroportos, ou seja, justamente com os mais ricos. Mas se proliferou com mais velocidade e risco entre os pobres. Obviamente que essa população, mais vulnerável e menos capaz de levar adiante uma política de isolamento, é a mais atingida pela pandemia, especialmente pelo fracasso do Estado brasileiro em garantir a essas pessoas a possibilidade de ficarem em casa e se protegerem da contaminação”, acrescentou Hallal.
O professor disse que “o auxílio emergencial, aprovado depois de muita negociação, é muito baixo para as necessidades dessa população”. Para ele o auxílio foi muto “burocrático”. O que acabou acontecendo, segundo o pesquisador é que o governo obrigou as pessoas mais vulneráveis a “saírem de casa para buscar o sustento de suas famílias”.
“O que acabou acontecendo, segundo o pesquisador é que o governo obrigou as pessoas mais vulneráveis a “saírem de casa para buscar o sustento de suas famílias”
Essa é, na opinião de Hallal, a comprovação do fracasso do governo federal em proteger a sua população.
“Acredito que teremos uma vacina no primeiro semestre do ano que vem. Obviamente, a imunização deve começar com os grupos de risco e com as populações mais vulneráveis. Mas não podemos subestimar, de forma alguma, o desafio logístico que será entregar a vacina a toda a população brasileira. Essa empreitada precisa começar a ser organizada desde já porque a vacina virá em breve. Mas não vejo movimento nesse sentido”, advertiu.
“Eu penso que a ciência sairá muito fortalecida dessa pandemia. Mesmo com a contínua redução dos investimentos no Brasil, na hora que a população mais precisou da ciência ela mostrou que está apta a dar as respostas necessárias. O combate à desinformação, agora materializada pelas fake news, deve ser contínuo, incansável”, observou. “Nesse item, o papel da mídia deve ser valorizado. A rápida disseminação de informações via redes sociais e novas tecnologias não deve somente ser aproveitada pelos mal intencionados, mas também pelos cientistas e pela mídia comprometida com a verdade e com a ética”, avaliou Hallal, em mais uma crítica ao negacionismo do governo e a guerra de desinformação patrocinada pela milicia bolsonarista.
SÉRGIO CRUZ