Com seus 737 Max novíssimos em folha parados em terra no mundo inteiro após dois deles caírem em cinco meses matando todos a bordo, a Boeing voltou aos holofotes em reportagem do The New York Times sobre que seu outro campeão de vendas, o 787 Dreamliner, que apresenta defeitos grosseiros de fabricação, sob um ritmo de produção frenético e pressões para que trabalhadores e inspetores de qualidade silenciem sobre as violações da regulamentação e segurança.
O jornal publicou extensa matéria, com base em “centenas de páginas de e-mails internos, documentos corporativos e registros federais”, em que assevera que a Boeing “teria pressionado os trabalhadores para acelerar a produção, ignorando reclamações sobre potenciais riscos de segurança e fabricação defeituosa” e pratica uma cultura que “frequentemente valoriza a rapidez de produção acima da qualidade”.
Os repórteres também entrevistaram funcionários e ex-funcionários da Boeing e de empresas aéreas que usam o Dreamliner, além de agentes da FAA.
Ao ser apresentado em 2007, o jato de corpo largo ganhou espaço entre as empresas aéreas pela adoção em larga escala de materiais compostos e economia de combustível
CHAVE INGLESA NO KC-46
Mas o problema da falta de qualidade não se limita aos aviões de passageiros e, como registra o NYT, em março a Boeing foi forçada a suspender as entregas do avião-cisterna Pegasus KC-46 (usado para reabastecimento em voo), após a Força Aérea dos EUA ter encontrado “uma chave inglesa, parafusos e lixo” nas entranhas de um dos jatos que recebera.
O KC-46, que substituirá a frota de KC-135, é um desenvolvimento do Boeing 767.
“Isso é inaceitável”, teve de dizer a um subcomitê do Congresso em março o secretário assistente da Força Aérea, Will Roper. “Nossas linhas de voo são impecáveis. Nossos depósitos são impecáveis, porque os detritos se traduzem em um problema de segurança.”
Quanto ao Dreamliner, lançado em 2011, não é o primeiro problema detectado. Incêndios das baterias de lítio que propiciam a energia para o avião levaram a que o modelo tivesse operações interrompidas no mundo inteiro por quatro meses em 2013, até que a Boeing conseguisse fazer o remendo.
Durante a fase de testes, em novembro de 2010 um voo precisou ser interrompido após curto-circuito e início de incêndio, cuja causa, apurou-se depois, deveu-se a detritos largados junto da parte elétrica do avião.
US$ 1 BI DE ISENÇÃO FISCAL
Apesar de admitir os problemas em outras fábricas da Boeing, o NYT se concentra na nova unidade fabril na Carolina do Sul, em North Charleston. Para se decidir pela localização da nova fábrica, duas questões pesaram na escolha da Boeing: isenções fiscais de quase US$ 1 bilhão e salários mais baixos em consequência da fraqueza da atuação sindical nos estados sulistas.
O jornal acrescenta que a mão de obra local tinha uma formação insuficiente e que a Boeing não queria trazer pessoal de fábricas onde a sindicalização – e os salários – eram maiores.
Como o NYT não pode ser acusado de fazer lobby pela concorrente Airbus, depreende-se que a fedentina na Boeing está se tornando insuportável e alguém está achando que é preciso dar uma segurada, antes que a situação saia de controle.
Ou, quem sabe, as co-irmãs do setor bélico norte-americano não andam muito contentes com a imparcialidade do atual secretário do Pentágono e ex-executivo da Boeing, Patrick Shanahan.
PROBLEMAS SISTÊMICOS
A matéria ressalta que “em uma indústria onde a segurança é fundamental, as preocupações coletivas envolvendo dois aviões importantes da Boeing – o cavalo de batalha da empresa, o 737 Max, e outra joia da coroa, o 787 Dreamliner – apontam para problemas potencialmente sistêmicos”.
Reguladores e legisladores estão analisando “com mais profundidade as prioridades da Boeing e se os lucros às vezes superam a segurança”, acrescenta o NYT.
“A liderança da Boeing, uma das maiores exportadoras do país, encontra-se agora na posição desconhecida de ter que defender suas práticas e motivações”, adverte o jornal.
Voltando ao Dreamliner, o certo é que, conforme o NYT, “os lapsos de segurança na fábrica de North Charleston atraíram o escrutínio das companhias aéreas e dos reguladores” e a Qatar Airways até parou de aceitar aviões fabricados em North Charleston. A Boeing também produz o modelo na fábrica de Everett, no estado de Washington.
DEFEITOS E DETRITOS
Acrescenta o jornal que trabalhadores “registraram cerca de uma dúzia de reclamações de segurança com os reguladores federais”, sobre “fabricação defeituosa” e “detritos deixados em aviões”. Os relatos incluem denúncia de pressão da Boeing sobre os trabalhadores para que as violações [das normas de segurança] não fossem relatadas e de retaliações àqueles que denunciaram erros de fabricação.
Entre as violações se incluem “peças defeituosas” instaladas no Dreamliner, “ferramentas e aparas de metal” rotineiramente deixadas “dentro de jatos, geralmente perto de sistemas aéreos” e até voos de teste com “destroços em um motor e uma cauda”.
O ex-gerente da qualidade da Boeing por quase três décadas, John Barnett, disse ao NYT ter descoberto “aglomerados de lascas de metal pairando sobre a fiação que comanda os controles de voo”. O que chamou de “catastrófico”, se as peças afiadas de metal – produzidas quando os fixadores são encaixados nas porcas – penetrassem na fiação elétrica.
Ele disse que, ao invés de ser ouvido, a gerência da Boeing o mudou para outra parte da fábrica.
Problema confirmado pelo porta-voz da agência federal encarregada pela aviação civil (FAA), Lynn Lunsford, que disse que aviões certificados pela Boeing como livres de tais detritos, quando inspecionados, continham lascas de metal. O que poderia, como notou, “levar a curtos-circuitos e causar incêndios”.
DIRETIVA DA FAA DE 2017
Em 2017, a FAA emitiu uma diretiva exigindo que os Dreamliners fossem “limpos de aparas antes de serem entregues”. Segundo dois especialistas, aparas podem ter danificado um avião em serviço em uma ocasião em 2012. A Boeing assevera que está trabalhando com o fornecedor para melhorar o design da porca.
Note-se que a FAA é conhecida por deixar a fiscalização da Boeing por conta da própria Boeing, como se tornou público com o escândalo do 737 Max.
Outro técnico ouvido pelo NYT – este, ainda trabalhando na fábrica de North Charleston -, relatou ter achado “chicletes que seguravam parte da guarnição de uma porta” quando inspecionava um avião prestes a ser entregue. A FAA confirmou a existência de uma queixa sobre o chiclete.
“Como gerente de qualidade da Boeing, você é a última linha de defesa antes que um defeito chegue ao público voador”, disse Barnett. “E no entanto eu não vi um avião de Charleston em que eu coloquei meu nome, que possa dizer que é seguro e aeronavegável.”
QUEM CONHECE …
Parece que, quem conhece de perto, não confia. Um dos entrevistados, Joseph Clayton, técnico da fábrica de North Charleston, que disse que rotineiramente encontra detritos perigosamente perto da fiação sob os cockpits. “Eu disse à minha esposa que eu nunca planejo voar nele”. “É apenas uma questão de segurança.”
O NYT descreveu uma “batalha perdida contra os destroços” na linha de montagem da Boeing.
“Eu encontrei tubos de selante, nozes, coisas do processo de construção”, disse Rich Mester, um ex-técnico que analisava os aviões antes da entrega. Os funcionários encontraram uma escada e uma série de luzes deixadas no interior das caudas dos aviões, perto das engrenagens do estabilizador horizontal. “Poderia ter trancado as engrenagens”, acrescentou.
A matéria registra que um funcionário agora aposentado da American Airlines, Dan Ormson, regularmente deparava com detritos enquanto inspecionava Dreamliners em North Charleston. Conforme três testemunhas, Ormson costumava juntar os detritos em sacos com zíper, que mostrava para um dos principais executivos da Boeing, Dave Carbon.
SUCATA REAPROVEITADA
Há preocupantes relatos de que peças defeituosas e descartadas foram reaproveitadas. O ex-gerente de qualidade Barnett disse ter descoberto em 2016 que um gerente sênior “havia retirado um tubo hidráulico amassado de uma lixeira” – peça que é parte do sistema central que controla o movimento do avião – e este fora instalado em um Dreamliner.
Investigação da FAA descobriu que a Boeing havia perdido algumas peças danificadas. A Boeing diz que também investigou o tubo hidráulico defeituoso e não comprovou as alegações de Barnett.
Outros dois ex-gerentes, Jennifer Jacobsen e David mcClaughlin, revelaram à FAA em 2014 que “centenas de ferramentas” começaram a desaparecer.
“DENTRO DO CRONOGRAMA”
Eles também relataram que a empresa os forçou a encenarem que a produção estava “dentro do cronograma”, quando de fato estava “muito atrasada”, para satisfazerem compradores do Dreamliner e acionistas da Boeing.
O que era feito instalando equipamento fora de ordem para parecer que a montagem estava em dia. Os dois estão em litígio com a Boeing, a quem acusam de terem sido demitidos como retaliação por denunciar violações.
Vários outros ex-funcionários confirmaram que os gerentes de alto nível pressionavam os inspetores internos de qualidade a pararem de registrar defeitos.
No morde-assopra, o NYT fez a ressalva de que “nenhum Dreamliner caiu”, “todas as fábricas lidam com erros de fabricação” e “não há evidências de que os problemas na Carolina do Sul hajam levado a grandes incidentes de segurança”.
“IMAGEM DISTORCIDA”
A Boeing enviou ao canal de televisão CNBC um memorando interno dirigido aos funcionários por Brad Zaback, vice-presidente e diretor-geral do programa 787, que acusa o NYT de dar “uma imagem distorcida e imprecisa do programa e de nossa equipe” aqui na Carolina do Sul. “Esse artigo apresenta informações distorcidas, refazendo histórias antigas e rumores que há muito foram descartados”, escreveu Zaback.
Ao invés de encarar os problemas, a Boeing decidiu acelerar a produção, passando 12 para 14 Dreamliners por mês, entre as fábricas de North Charleston e Everett.
Ao mesmo tempo, a empresa eliminou cerca de 100 posições de controle de qualidade em North Charleston.
“Eles estão tentando encurtar o tempo de fabricação”, disse o ex-técnico Mester ao NYT. “Mas você está disposto a sacrificar a segurança do nosso produto para maximizar o lucro?”
A.P.