“Falamos sobre a ‘verdade dos fatos’, conceito de Hannah Arendt, no debate da ‘transição energética’”
Hannah Arendt influenciou profundamente o pensamento contemporâneo em campos como filosofia política, teoria do totalitarismo, ética e modernidade. Nascida em 1906 na Alemanha e falecida em 1975 nos Estados Unidos, Arendt é conhecida por sua análise incisiva sobre as raízes e a natureza do poder, autoridade e o mal, assim como sobre a condição humana.
Ela criou o conceito da “verdade dos fatos”, que se refere à realidade objetiva dos eventos e circunstâncias, algo que pode ser empiricamente confirmado e geralmente aceito como verdadeiro. Ela defendia que essa verdade é essencial para uma base comum de entendimento em uma sociedade democrática.
Sem o reconhecimento e o respeito pelos fatos objetivos, argumentava Arendt, o diálogo político e o debate se tornam impossíveis, pois não há uma base comum sobre a qual construir discussões ou tomar decisões. Em suas obras, ela explora como a verdade e os fatos podem ser distorcidos para fins políticos, levando a uma desconexão da realidade que pode ser extremamente perigosa para a sociedade.
É nesse contexto que cabe um debate sobre um conceito aparentemente consolidado na sociedade de hoje: o de “transição energética”. A palavra “transição” refere-se ao processo ou período de mudança de um estado ou condição para outro. Ele é binário, implica em estados diferentes e mutuamente excludentes: morto/vivo, quente/frio, dia/noite, seco/molhado.
Cabe-nos, então perguntar: houve, na história das fontes energéticas, algum processo de transição energética, de substituição de fontes, digamos, de carvão para petróleo, gás para solar ou algo similar? Para isso, convido a observar o gráfico abaixo, que abrange os últimos dois séculos e mostra basicamente a história das fontes energéticas.
Registro importante: nesses mais de duzentos anos, ocorreram duas grandes guerras mundiais, duas revoluções comunistas, dezenas de guerras entre os países, e descolonização de continentes inteiros. Verifiquemos se, em algum momento, esses eventos diminuíram o consumo de energia planetária – de qualquer fonte energética!
Por outro lado, devemos tentar entender a transição energética como uma teoria científica? Ou seja, sujeita ao conceito de “falseabilidade” de Popper?
Karl Popper argumentava que a marca distintiva das teorias científicas é a falseabilidade, ou seja, a capacidade de serem potencialmente refutadas por meio de testes ou experimentos. Segundo ele, uma teoria científica deve fazer previsões específicas que possam ser testadas e, potencialmente, provadas como falsas.
Uma possível teoria seria “haverá substituição ou troca de fontes com a exterminação de uma ou algumas”. Analisando-se o gráfico, conclui-se que não é verdadeira a exclusão de alguma fonte e sua consequente substituição: não está acontecendo e parece que não irá acontecer, já que há uma tendência de aumento exponencial de todas as elas, exceção feita à biomassa e energia nuclear, que permaneceram estáveis.
Enfim, não seria ela, no fundo, uma proposta política de grande apelo e vitoriosa nos últimos anos? Historicamente, não há um marco exato de quando o termo “transição energética” surgiu. De fato, o conceito moderno ganhou destaque no contexto das crises energéticas dos anos 1970, quando o embargo do petróleo árabe levou a um aumento dramático nos preços e incentivou os países a repensarem suas dependências de fontes de energia importadas. Daí surgiu, por exemplo, o “Pró-Álcool” brasileiro.
Se a transição energética for uma proposta política, devemos encará-la como tal e debatê-la no contexto devido! Talvez a primeira preocupação deva ser uma sua primeira consequência: um mundo polarizado, o chamado “Fla-Flu” nas discussões, com todas as consequências sombrias para a sociedade de hoje que enfrentamos em outras áreas, inclusive na política partidária.
No discurso de polarização, devemos nos preocupar com a demonização explícita dos combustíveis fósseis, que são importantíssimos para Humanidade! É graças a eles que hoje todos nós, inclusive os que lhes são contra nos deslocamos para o trabalho de carro, viajamos de avião, nos vestimos e usamos os derivados de petróleo e exportamos ou importamos bens em graneleiros gigantescos!
E as verdades dos fatos? Vamos retornar ao gráfico acima e concluir conjuntamente. A mim me parece que a Humanidade não deixou de escolher consumir suas energias, de querer decidir seu próprio futuro. O que houve? Diversificação! O mundo não se tornou exclusivista! Não virou Fla-Flu.
A mim me parece que a Humanidade escolheu ser democrática em energia, mesmo nos seus períodos mais sombrios! Ela escolheu ter várias opções energéticas, que é o que vemos acontecer hoje, em 2024, com muitas opções energéticas, que aumentam diariamente.
Aparentemente, resolveu-se fazer uma proposta política sem combinar com povo. Sem combinar com a nossa mãe indo fazer compra na quitanda na esquina, sem esperar que ela faça conta, que ela conte o dinheiro do mês! Essas são a “verdade dos fatos”.
Allan Kardec Duailibe Barros Filho, PhD pela Universidade de Nagoya, Japão, professor titular da UFMA, ex-diretor da ANP, membro da AMC, presidente da Gasmar
Reproduzido da Coluna do Kardec no site imirante.com