Tribunal unânime confirma: são ficha-suja
Para atrasar Justiça, a defesa anunciou um embargo do embargo
Há muitas coisas interessantes nas decisões do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), que, na segunda-feira, rejeitou os “embargos declaratórios” de Lula (condenado a 12 anos e um mês de cadeia por corrupção passiva e lavagem de dinheiro roubado) e de Eduardo Cunha (condenado a 14 anos e 6 meses de cadeia pelos mesmos crimes – e, também, por evasão de divisas).
A primeira é que Lula ainda tem 12 dias para apresentar mais um recurso contra a decisão do TRF-4, no próprio TRF-4. E seu advogado já declarou que vai apresentar esse recurso.
Logo, o esquisito “habeas corpus” provisório, concedido pelo STF na quinta-feira, na suposição de que Lula seria preso a mando do TRF-4 logo após a apreciação de seu recurso na segunda-feira, era inteiramente desnecessário (v. Habeas corpus não é instrumento para manter ladrões fora da cadeia).
Quanto ao mais, os recursos julgados pelo TRF-4 na segunda-feira (tanto o de Lula quanto o de Cunha) já eram uma manobra para adiar o cumprimento da pena.
“Embargos declaratórios” são pedidos de esclarecimento sobre uma decisão judicial. No entanto, as questões levantadas por Lula, e o mesmo pode-se dizer das alegações de Cunha, já tinham sido esclarecidas no voto do relator de ambos os processos, desembargador João Pedro Gebran Neto, quando dos julgamentos (ocorridos em novembro e em janeiro), porque a defesa, então, já havia levantado as mesmas questões.
Assim, insistiu-se na mesma coisa, como se o papel da Justiça fosse responder sempre às mesmas questões, porque a defesa dos réus faz sempre os mesmos pedidos de esclarecimento – e somente para que o processo não saia do mesmo lugar.
Do ponto de vista da sociedade – ou seja, do cidadão normal ou comum – tudo foi uma perda de tempo, em que aquilo que foi esclarecido voltou, como se nunca tivesse sido esclarecido.
Fora a tentativa de exaurir a paciência do público, há outra característica nessas questões: todas são completamente irrelevantes para o que interessa: as provas apresentadas contra Lula e Cunha. Estas ficaram intocadas – porque nenhum dos réus quer tocar nessas provas, nem tem como tocar nelas, exceto se algum resolver confessar os crimes que elas expõem.
Na segunda-feira, a defesa de Lula anunciou que fará outros recursos ao TRF-4. Serão “embargos de embargos”, ou seja, pedidos de esclarecimento das respostas aos pedidos de esclarecimento.
O nome disso, na Justiça, é procrastinação – a tentativa de postergar a decisão de um processo, sem outro objetivo senão adiar interminavelmente a execução da pena, seja a cadeia ou a inelegibilidade pela lei da ficha limpa.
Disse o advogado de Lula, José Roberto Batochio, que “não há postergação nenhuma. Recursos não são inventados pela defesa de Lula. Estão previstos na Constituição no ordenamento jurídico brasileiro”.
É óbvio que, para postergar, ele só poderia usar algo que pertence ao “ordenamento jurídico brasileiro” – é exatamente isso que se chama procrastinação: usar recursos que existem (já que não se pode usar os que não existem) para um objetivo ilícito, qual seja, o de adiar a execução da pena.
Os casos de Lula e Cunha são muito parecidos. Nos processos que foram julgados pelo TRF-4, um recebeu propina sob a forma de um triplex em Guarujá, redimensionado e aparelhado sob medida; o outro recebeu propina em dinheiro, encontrado em suas contas no exterior.
Os dois receberam propina para a mesma coisa: permitir e facilitar o assalto à Petrobrás.
Os dois dizem que são inocentes.
Lula diz que o triplex nunca foi seu, apesar de tê-lo visitado, com o dono da OAS, e orientado as modificações que, em seguida, foram feitas.
Cunha diz que as contas no exterior não são suas. Ele é apenas “beneficiário” delas (literalmente: “Não há elementos de prova que seja titular, dono da conta, que possa movimentar a conta. Não escondi nada. O que efetivamente existe é um trust, ao qual o patrimônio não me pertence, não fui autorizado a movimentar a conta, não tenho titularidade… Não possuo investimentos não declarados. O que possuo é ser beneficiário de um trust, com expectativa de direito”).
É difícil descobrir qual é o mais cara de pau, pois o triplex e o dinheiro existem.
Mas há, realmente, diferenças entre eles. Uma delas é que Lula tinha mais poder – e, agora, tem o privilégio provisório, dado pelo STF, que Cunha não conseguiu, de ficar solto, apesar da condenação pelo TRF-4 (ou seja, da condenação em segunda instância).
Aliás, os advogados de Cunha planejam entrar no STF – assim como os advogados de Geddel já entraram (v. matéria nesta página) – para que seja concedido a ele o mesmo privilégio de Lula. Afinal, dizem eles, a lei é para todos. Exceto, talvez, para os cidadãos honestos e decentes…
A lei, portanto, de acordo com essa concepção de isonomia, deve beneficiar a todos os ladrões do dinheiro público. Nada de privilégios para alguns (ou algum).
Sendo assim, não parece absurdo – ou aí mesmo é que tudo se torna um absurdo – que um promotor de Brasília haja pedido, para um ladrão de automóveis, o mesmo privilégio concedido a Lula:
“Se esta regra vale para o ex-presidente Lula, a de que ele não pode ser preso por qualquer atraso da Justiça, este princípio deve valer para todos”, explicou o promotor Valmir Soares Santos. E completou: “A maioria dos réus que passa pela primeira instância são réus pobres, são pessoas que não terão recursos para levar o julgamento até o Supremo. Então, aquilo que o STF decidir para o ex-presidente Lula, penso que será um princípio que valerá para todos os casos semelhantes”.
O juiz Osvaldo Tovani, da 8ª Vara Criminal de Brasília, concordou com o promotor – e mandou soltar o ladrão de automóveis.
Voltemos, então, aos outros ladrões, muito maiores que esse ladrão de automóveis, pois roubam todo um povo, todo um país.
A semelhança entre os casos de Lula e Cunha não é meramente exterior. Essa semelhança é uma consequência da identidade moral entre ambos. Nem um nem outro acha que receber propinas para permitir que a propriedade do povo – a Petrobrás – seja assaltada é um problema, um crime, sequer um erro. Pelo contrário, acham que política é esse esgoto.
Portanto, essa é uma semelhança na essência – e não apenas na aparência.
As diferenças entre eles, estas, sim, são meramente exteriores.
O juiz Márlon Reis, principal elaborador da Lei da Ficha Limpa, declarou na segunda-feira, após o julgamento do recurso ao TRF-4, que Lula é inelegível. Aliás, já estava inelegível:
“A inelegibilidade já havia acontecido quando houve a condenação, mesmo antes dos embargos de declaração. O que houve foi uma manutenção do estado de inelegibilidade do ex-presidente Lula. A Lei da Ficha Limpa estabelece que após a condenação pelo órgão colegiado ocorre inelegibilidade mesmo que ainda caibam recursos. Esta é a situação dele hoje: de inelegível.”
Mas é exatamente isso que Lula – e, evidentemente, Cunha e os demais corruptos – quer derrubar. Se querem ficar soltos após a condenação em segunda instância (“órgão colegiado”), por que não iriam querer, também, concorrer às eleições, contra uma lei que ambos aprovaram?
Na véspera de grandes explosões populares, a atitude daqueles contra os quais o povo se levanta, via de regra, é de completa inconsciência. De Luís XVI ao czar Nicolau II – e, claro, até Washington Luís – eles sempre acham que o povo tolerará infinitamente os seus abusos.
Mas isso não é verdade.
CARLOS LOPES