Deixando de lado qualquer vislumbre de imparcialidade no julgamento do pedido dos EUA de extradição do jornalista Julian Assange, a juíza Vanessa Baraitser recusou na quinta-feira permitir que o fundador do WikiLeaks deixasse a jaula de vidro em que está exposto no tribunal de Woolswich, e sentasse normalmente ao lado de seus advogados. A próxima audiência sobre a extradição irá ocorrer em maio.
A questão, que expõe todo o arbítrio que envolve o julgamento, foi levantada pelo próprio jornalista na parte da tarde. Mais conhecido preso político do mundo, Assange é acusado de ‘espionagem’ pelo regime Trump, por ter denunciado os crimes de guerra dos EUA no Iraque e Afeganistão, inclusive o vídeo ‘Assassinato Colateral’, que expõe o massacre por um helicóptero dos EUA de 11 civis em Bagdá, dois deles, jornalistas da Reuters. Nos EUA o espera uma sentença de 175 anos de cárcere no canto mais escuro do sistema penal norte-americano e tortura.
No quarto dia no tribunal dentro da jaula de vidro, Assange questionou o descarado arbítrio, dizendo: “Qual o sentido de perguntar se posso me concentrar, se não posso participar? Sou tão participante desse processo quanto um espectador em Wimbledon”. Ele denunciou ainda que não podia se comunicar com seus advogados “sem o outro lado assistir”. Assange disse, também, “que o outro lado tem cerca de 100 vezes mais contato com seus advogados por dia”.
Baraitser ficou tão atarantada com a denúncia de Assange e com a solicitação da defesa de que o tribunal permitisse que ele sentasse ao lado de seus advogados – como em qualquer julgamento digno desse nome -, que se voltou para o promotor – o acusador, Lewis – para lhe perguntar se ela, a juíza, “tinha jurisdição para emitir tal ordem”.
Situação tão vexatória que o promotor Lewis disse que a acusação ficaria “neutra” na questão. Mais tarde, já refeita, Baraitser manteve Assange da jaula de vidro e tentou lhe impor o uso de fones de ouvido, como se esse fosse o problema.
A audiência foi encerrada com um dia de antecipação ao programado.
No momento em que esteve em discussão a abrangência do tratado de extradição e implicações com a constituição inglesa, o direito internacional e os direitos humanos, Fitzgerald enfatizou que as 17 acusações dos EUA contra Assange sob a Lei de Espionagem “são ofensas políticas puras”.
“Trata-se de políticas em Guantánamo, políticas na guerra do Iraque, políticas na guerra do Afeganistão, perda de vidas civis, tortura e crimes de guerra”, assinalou o chefe da equipe de defesa.
Fitzgerald voltou a pedir que o tribunal barre a extradição de Assange, apontando que é o que determina o artigo 4 do Tratado de Extradição Inglaterra-EUA: “a extradição não será concedida se a ofensa pela qual a extradição for solicitada for uma ofensa política”.
Diante da insistência do promotor Lewis em asseverar que sob a lei de extradição a entrega de Assange a Washington era líquida e certa, e nenhuma outra lei o protegeria, Fitzgerald o lembrou de que a Carta Magna ainda está em vigor.
A defesa também rebateu a curiosa tese da promotoria de que a parte do tratado de extradição que diz que não são passíveis de extradição “ofensas políticas” não se aplicaria a Assange.
“JORNALISMO NÃO É CRIME”
Nos outros dias, a defesa de Assange demoliu as alegações, em prol do regime Trump, do promotor Lewis. Nas imediações do tribunal, aliás arremedo de tribunal, manifestantes se mantêm mobilizados exigindo “liberdade para Assange” e afirmando que “jornalismo não é crime”, apesar do frio e da chuva.
A maior delegação de apoiadores é de coletes amarelos franceses, uma centena deles, mas há também manifestantes vindos dos EUA, Bélgica, Alemanha, Suíça, Itália e outros lugares, além de muitos ingleses.
Fitzgerald também enfatizou que Chelsea Manning “não é um ‘co-conspirador’” [na invasão de computador] – como a promotoria alega -, mas uma denunciante que assumiu corajosamente essa condição perante uma corte marcial, e o que está em jogo é a liberdade de imprensa. Mais: Manning foi absolvida dessa acusação na corte marcial em 2013.
Como o advogado de defesa destacou, em duzentos anos, nenhum governo dos EUA colocou na prisão um editor [‘publisher’, no termo em inglês], em respeito à primeira emenda, apesar de milhares e milhares de documentos terem sido vazados, como os Papeis do Pentágono.
Ele acrescentou que a operação contra Assange casou como uma luva na tática do governo Trump de chamar a imprensa de ‘inimiga do povo’ e as denúncias dos jornais, de ‘impatrióticas’, dentro de sua arenga sobre a ‘America First’.
EXTORSÃO
Como outro exemplo do caráter político da investida contra Assange, o advogado de defesa revelou a oferta feita pela Casa Branca em agosto de 2017, por intermédio do deputado republicano Dana Rohrabacher, de um “perdão preventivo” ao jornalista em troca de “assistência pessoal” ao presidente Trump no inquérito então em andamento sobre o envolvimento da Rússia no hacking e vazamento dos e-mails do Comitê Nacional Democrata”. Rohrabacher foi até à embaixada em Londres, e a visita foi testemunhada pela advogada Jennifer Robinson; o jornalista recusou o ‘quid pro quo’.
“Todo esse incidente de perdão mostra que, assim como a acusação foi iniciada em dezembro de 2017 por motivos políticos, o governo Trump também estava preparado para usar a ameaça de acusação como meio de extorsão para obter de Assange vantagem política”, sublinhou.
TRIBUNAL À BEIRA DE UM PÂNTANO
O arbítrio também se repete no fato – observado pelo ex-embaixador Craig Murray – de como a audiência, que nominalmente está na Corte de Westminster, no centro de Londres, está sendo realizada no que é praticamente um puxadinho da penitenciária de segurança máxima em que Assange é mantido, com apenas 16 lugares para o público, a dezenas de quilômetros da capital inglesa, de acesso difícil, e num pântano varrido pelo vento.
Na realidade um “tribunal para terroristas”, embora, oficialmente, isso sequer exista na constituição britânica. “Woolwich nada mais é que a negação física da presunção de inocência, a própria encarnação da injustiça no aço inflexível, concreto e vidro blindado”, assinalou.
ALGEMADO 11 VEZES NUM SÓ DIA
Também se tornou público que Assange foi algemado 11 vezes no primeiro dia de audiência e passou por duas revistas nu, apesar de o tribunal ficar quase dentro da penitenciária, o que teve o objetivo claro de intimidar e perturbar o jornalista. Baraitser se negou a tomar qualquer providência.
Nos tempo dos “Troubles” – a luta no norte da Irlanda pelos direitos civis -, costumava-se dizer que nem um cachorro merecia ser levado a um tribunal inglês, tamanha era a quantidade de desmandos, condenação de inocentes e operações de abafa de tortura.
Para tirar Assange da solitária na ala ‘hospitalar’, foi preciso que seus advogados e os próprios presos exigissem. Só assim, e meses depois de arrancado do direito de asilo, trancafiado e isolado, ele pôde pelo menos ter a impressão de que há gente por perto. Uma situação tão abjeta, que Assange na audiência de outubro mal conseguia falar e coordenar o pensamento.
Como comprovou o Relator Especial da ONU, Nils Melzer, após aplicação dos chamados “Protocolos de Istambul” em visita a Assange no presídio, o jornalista tem todos os sinais de grave tortura psicológica.
MALABARISMO DE LEWIS SE ESBOROA
Na acusação, o promotor Lewis tentou convencer os principais jornais, como o New York Times e o Guardian, que co-participaram na divulgação do WikiLeks dos arquivos do Pentágono e do Departamento de Estado, de que nada teriam a temer, porque a acusação contra Assange não era de que “publicou os documentos”, mas de que “publicou nomes” de supostos dissidentes, pondo-os em risco – a espionagem. O que teria sido feito “só por ele”, e não pelos jornais. Insistiu, ainda, que Assange “não era jornalista”.
Nessa questão, a juíza Baraitser achou por bem intervir, ao que parece por considerar que Lewis tinha deixado sua argumentação com um rombo do tamanho de uma cratera. Ela o alertou de que, sob a lei de espionagem de 1989, de Thatcher, que usara para dizer que a acusação a Assange era válida também sob a lei inglesa, acabaria pegando todos os jornalistas e jornais.
É que a lei de Thatcher diz que obter e publicar segredos de Estado – não importa como – é crime. O que Lewis teve que admitir, depois de ter tirado e colocado os óculos várias vezes e catado ‘colas’ nos bolsos sobre o caso. Não havia mais como recuar, apesar de seu esforço até ali ser manter a cunha entre a liberdade de Assange e a liberdade de imprensa em geral.
ARBÍTRIO SEM MAQUIAGEM
Como analisou Murray, essencialmente a questão apresentada por Baraitser era que, se Assange puder se extraditado sob a dupla criminalidade, do ponto de vista do Reino Unido, apenas por publicar, tenha ele conspirado ou não com Chelsea Manning, todos os jornalistas que publicaram também poderiam ser acusados.
A magistrada foi mais longe e perguntou ao promotor se um ponto tão extremo não poderia vir a ser invalidado pela Lei de Direitos Humanos.
Arrogantemente, Lewis declarou que a lei de direitos humanos e a liberdade de imprensa eram irrelevantes nos processos de extradição.
Concluindo, o promotor disse que o tribunal não tinha o que discutir, e sim extraditar. Já que – sublinhou – o ‘crime’ passara no teste de dupla criminalidade (ser crime nos EUA e no Reino Unido), e o tribunal estava proibido pela lei de extradição de examinar se há alguma evidência que sustente as acusações. A Lei de Extradição, de 2003, foi assinada por Tony Blair, o poodle de W. Bush.
SEM FATO NOVO
Durante o intervalo, o editor atual do WikiLeaks, Kristinn Hrafnsson, afirmou aos jornalistas e aos manifestantes que a promotoria fracassara em trazer qualquer “fato novo” que comprovasse sua tese de que vidas teriam sido postas em risco por causa das denúncias publicadas.
A questão já fora tratada na corte marcial de Manning em 2013, e em juízo a acusação reconheceu que não tinha como apresentar um nome sequer.
Mais ainda, Hrafnsson disse que o que deveria estar sendo discutido eram os crimes de guerra mostrados pelo WikiLeaks no Iraque e Afeganistão, não acusações vazias de “espionagem” contra Assange.
JORNALISTA LAUREADO
A alegação de Lewis de que Assange “não era jornalista” foi desmontada por Fitzerald, que demonstrou que ele é membro do Sindicato dos Jornalistas Australianos desde 2009, e também da Federação Europeia de Jornalistas. Ganhou alguns dos mais cobiçados prêmios da mídia – inclusive o maior prêmio de jornalismo da Austrália – e também publicou artigos nos principais jornais do mundo.
Publicações pelas quais sua extradição está sendo pedida foram consultadas e confiadas em tribunais de todo o mundo, incluindo a Suprema Corte do Reino Unido e a Corte Europeia de Direitos Humanos.
SENHA VIRA TÍTULO DE LIVRO
Quanto à suposta responsabilidade por “divulgar nomes” à luz do dia, a defesa demonstrou que isso não foi feito pelo WikiLeaks, e sim por um jornalista do Guardian, que publicou um livro em que usou como título de capítulo uma senha de um arquivo bruto, sem edição, fornecida por Assange ao jornal inglês.
Revelou, ainda, sem ser contestado, os esforços de Assange de discutir a questão com autoridades norte-americanas, a fim de tentar uma solução. Foi outro site, não o WikiLeaks, que publicou esse arquivo em bruto.
‘AMERICA FIRST’ CONTRA ASSANGE
O advogado Edward Fitzgerald situou a investida judicial contra Assange dentro da estratégia do regime Trump de chamar jornalistas de “inimigos” e de execrar os vazamentos e de como as denúncias dos crimes de guerra e tortura, feitas pelo WikiLeaks, se chocam com a ideologia do “America First”.
Fitzgerald também mostrou como na época do julgamento de Chelsea Manning e novamente em 2013 o governo Obama havia tomado decisões específicas para não processar Assange pelos vazamentos de Manning, por que iria atingir jornais como o New York Times.
O que foi revertido pelo governo Trump por razões inteiramente políticas.
SEM DEVIDO PROCESSO
Se enviado para os EUA, Assange seria julgado no Distrito Leste de Virgínia, em um tribunal com taxa de condenação de 97%. Assange não seria capaz de se defender, ele não seria julgado de maneira justa e provavelmente seria enviado para a prisão perpétua sob condições horríveis, denunciou a defesa.
Fitzgerald também destacou a declaração do governo Trump de que estrangeiros não receberão proteção da Primeira Emenda.
CIA ESPIONOU ASSANGE NA EMBAIXADA
Sobre abuso de processo, Fitzgerald se referiu às evidências apresentadas aos tribunais criminais espanhóis de que a CIA havia encomendado uma empresa de segurança espanhola para espionar Julian Assange na embaixada, e que essa espionagem incluía especificamente a vigilância das reuniões privilegiadas de Assange com seus advogados para discutir extradição.
Fato que por si faria qualquer juiz decente rejeitar o caso sumariamente pela espionagem ultrajante dos advogados de defesa.
Fitzgerald antecipou que a defesa irá apresentar provas de que a CIA não apenas espionou Assange e seus advogados, mas também considerou ativamente sequestrá-lo ou envenená-lo.
“AGENCIA NÃO-ESTATAL HOSTIL”
Assange é “é um dos principais defensores de uma sociedade aberta e da liberdade de expressão”, “é anti-guerra e anti-imperialismo”, e “é um campeão de renome mundial da transparência política e do direito do público a acessar informações sobre questões importantes – questões como corrupção política, crimes de guerra, tortura e maus-tratos aos detidos de Guantánamo”, destacou Fitzgerald, citando nomes como o de Noam Chomsky.
Foram essas crenças e ações – acrescentou – que o colocaram em choque com estados poderosos, incluindo o atual governo dos EUA, por razões políticas. “Portanto, o impacto positivo de Julian Assange no mundo é inegável. A hostilidade provocada pelo governo Trump é igualmente inegável. Por esse motivo, a caracterização de Julian Assange e do WikiLeaks como “agência de inteligência hostil não-estatal” por Mike Pompeo deixa claro que ele foi alvo em razão de suas opiniões políticas”.
GUERRA DE TRUMP AO JORNALISMO
Para a defesa, Assange se tornou o “alvo óbvio” para Trump, que repetidamente “se referiu à imprensa como ‘o partido da oposição’ e ‘inimigo do povo ”. Também chamou a mídia como um todo de ‘doente’, ‘desonesta’, ‘enlouquecida’, ‘antipatriótica’, ‘totalmente corrupta’ e de ‘fornecedora de ‘notícias falsas’”.
“Portanto, não é surpresa que, em fevereiro de 2017, o presidente Trump se reuniu com o diretor do FBI James Comey e concordou que deveriam ‘colocar a cabeça em um pique’ – como uma mensagem aos jornalistas por vazamentos – e ‘na cadeia’. Como mostra o professor Feldstein [testemunha de defesa], o presidente Trump instruiu seu procurador-geral a ‘investigar’ vazamentos criminais’ de ‘notícias falsas’ que incomodavam a Casa Branca. “Os crimes de guerra americanos expostos à atenção do mundo, corrupção e abuso de poder que anteriormente estavam escondidos do público”. Foi nesse contexto que o presidente Trump e seu governo decidiram pela investida contra Assange.
ANTONIO PIMENTA