
“Trata-se de uma medida tributária mais do que justa e necessária. Apesar das três décadas de atraso, o fim da isenção de lucros e dividendos viria a corrigir essa enorme regressividade em nosso modelo de arrecadação”
PAULO KLIASS*
Em dezembro de 1995, o então Presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) sancionou a Lei nº 9.249. Na origem, tratava-se de um Projeto de Lei (PL 913/95) encaminhado por ele mesmo ao Congresso Nacional tratando de modificações na legislação relativa ao Imposto de Renda sobre Pessoas Jurídicas (IRPJ), em meio a outros assuntos. Dentre um conjunto amplo de facilidades oferecidas ao capital pela equipe do então Ministro da Fazenda, Pedro Malan, destaca-se a imensa generosidade proporcionada pelo dispositivo que isentava os lucros e dividendos do pagamento do tributo sobre a renda. O art. 10 da lei é muito claro a esse respeito:
(…) “Art. 10. Os lucros ou dividendos calculados com base nos resultados apurados a partir do mês de janeiro de 1996, pagos ou creditados pelas pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real, presumido ou arbitrado, não ficarão sujeitos à incidência do imposto de renda na fonte, nem integrarão a base de cálculo do imposto de renda do beneficiário, pessoa física ou jurídica, domiciliado no País ou no exterior.” (…)
No final do presente ano serão completadas três décadas de vigência desta verdadeira excrescência tributária. Neste quesito, o Brasil está acompanhado tão somente de outros dois países: Letônia e Estônia. A oferta de tamanha benesse ao capital representa um absurdo em termos de aumento do já elevado grau estrutural da regressividade do sistema tributário brasileiro. Contando com um modelo de impostos baseado essencialmente no consumo, nosso País quase não tributa o patrimônio e as rendas elevadas. No entanto, tal distorção que acompanha a regime de arrecadação desde sempre, foi ainda mais agravada quando o Congresso Nacional decidiu por isentar também os lucros e os dividendos.
GENEROSIDADE DE FHC EXISTE DESDE 1995
Para além da injustiça tributária flagrante e da perda de capacidade arrecadatória evidente, a novidade provocou um profundo rearranjo perverso no interior das próprias relações trabalhistas. As empresas passaram a estimular parte de seus assalariados a criarem pessoas jurídicas (PJs) de fachada para burlar a contratação formal via carteira de trabalho. Com isso, em especial os contratados de maior remuneração passaram a não mais pagar imposto de renda, que até então era recolhido na fonte. Seus ganhos derivados da relação de trabalho converteram-se em lucros apurados nas respectivas PJs. Daí o termo generalizado de “processo de pejotização” para caracterizar a nova realidade de segmentos do mercado laboral.
Os analistas que acompanhamos esse debate há muito tempo talvez não ficássemos tão surpresos quando a medida veio de um governo marcadamente neoliberal e que orientava suas ações em prol daquilo que hoje chamamos de “povo da Faria Lima”. Afinal, era a época de FHC no Palácio do Planalto. No entanto, o mais intrigante é que depois de quase 17 anos de governos dirigidos pelo Partido dos Trabalhadores (PT) nada foi feito a esse respeito. Na verdade, bastaria uma Medida Provisória para corrigir esta enorme distorção, mas ao que tudo indica isto nunca foi considerado como prioridade de política pública para Lula ou Dilma.
A ironia da História é que o primeiro governo a enviar alguma alteração da matéria foi justamente o de Jair Bolsonaro, uma gestão de extrema direita e marcada por uma profunda influência do neoliberalismo e dos interesses do sistema financeiro em sua pauta para a economia. O superministro Paulo Guedes apresentou um Projeto de Lei, o PL 2337 de 2021, tratando de vários aspectos da tributação, mas também eliminando a referida isenção e propondo uma alíquota considerada por muitos como bastante elevada (20%) com a volta de incidência de IRPJ.
(…) “Art. 10-A. A partir de 1º de janeiro de 2022, os lucros ou dividendos pagos ou creditados sob qualquer forma pelas pessoas jurídicas ficarão sujeitos à incidência do Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza retido na fonte à alíquota de vinte por cento na forma prevista neste artigo.” (…)
Ao longo da tramitação, no entanto, a própria base parlamentar do governo conservador considerou um exagero a proposta inicial e o Relator da matéria na Câmara dos Deputados apresentou um texto substitutivo incorporando uma das emendas que reduzia a alíquota do tributo para 15%. O texto foi aprovado em setembro daquele ano na primeira casa legislativa que o apreciou, mas terminou abandonado nas gavetas da tramitação quando chegou ao Senado Federal.
(…) “Art. 10-A. A partir de 1º de janeiro de 2022, os lucros ou dividendos pagos ou creditados sob qualquer forma, inclusive a pessoas físicas ou jurídicas isentas, […] ficarão sujeitos à incidência do Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza retido na fonte à alíquota de 15% (quinze por cento) na forma prevista neste artigo.” (…)
O interessante é que naquele período a Câmara dos Deputados estava sendo presidida por Arthur Lira, que havia sido eleito para o cargo em fevereiro de 2021. O parlamentar considerava a matéria da reforma dos tributos como uma questão de honra para sua gestão, mas a chamada “câmara alta” não colaborou para seu intento. Pois agora, quatro anos depois, ele retorna ao centro da cena política e consegue ser nomeado como Relator do Projeto do governo Lula de isenção de IR para os assalariados que recebem até R$ 5 mil mensais. Trata-se do PL 1.087/25.
10% É UMA ALÍQUOTA MUITO BAIXA!
O Relator já deu declarações de que poderia recuperar o projeto original de Paulo Guedes e que foi aprovado pela Câmara em 2021 como forma de garantir recursos para compensar a perda tributária decorrente da elevação do piso para isenção de IR para assalariados até R$ 5.000,00. A proposta original do governo Lula para efetuar essa compensação é a aplicação de uma alíquota de apenas 10% sobre a distribuição de lucros e dividendos, em uma versão bem mais restritiva de tais operações. O texto elaborado por Fernando Haddad prevê a aplicação do tributo apenas para transferências superiores a R$ 50.000 mensais e somente para casos de transferência de lucros e dividendos para pessoas físicas.
(…) “Art. 6º-A A partir do mês de janeiro do ano-calendário de 2026, o pagamento, o creditamento, o emprego ou a entrega de lucros e dividendos por uma mesma pessoa jurídica a uma mesma pessoa física residente no Brasil em montante superior a R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) em um mesmo mês fica sujeito à retenção na fonte do imposto sobre a renda das pessoas físicas mínimo – IRPFM à alíquota de 10% (dez por cento) sobre o total do valor pago, creditado ou entregue.” (…)
Ora, em pleno momento de aceitação popular do movimento para taxação dos super ricos, caberia a oportunidade para avançar ainda mais nos projetos que apontem para tal caminho. Ainda que cause estranheza o fato de Haddad ter enviado uma proposta inicial mais tímida do que a apresentada por Paulo Guedes e a que foi aprovada pela Câmara dos Deputados, o fato é que o governo conta com a opinião pública a seu favor no assunto. Assim, é perfeitamente plausível imaginarmos que Lula poderia orientar sua base aliada no Parlamento a elevar a alíquota de 10% e aceitar a sugestão de Arthur Lira para que seja adotada 15% ou 20% de IRPJ como a nova regra tributária para lucros e dividendos.
Trata-se de uma medida tributária mais do que justa e necessária. Apesar das três décadas de atraso, o fim da isenção de lucros e dividendos viria a corrigir essa enorme regressividade em nosso modelo de arrecadação. A campanha “BBB” prevê a imposição de tributos sobre bilionários, bancos e bets. Ainda que o retorno da imposição de IRPJ sobre lucros e dividendos seja uma proposta correta, ela não chega nem a fazer coceguinhas sobre o topo da nossa pirâmide da desigualdade. Ainda são aguardadas medidas de tributação efetiva do patrimônio e o estabelecimento de alíquotas mais elevadas de imposto de renda para os ganhos de milionários e bilionários. Afinal, pelas regras atuais, a maior alíquota é de apenas 27,5% e se aplica a todos os que recebem mais de R$ 4.668 mensais.
*Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal