LEONARDO WEXELL SEVERO
Com o cronômetro ligado para definir neste sábado (25) sobre o seu afastamento pela Assembleia Nacional (AN), – diante dos crescentes protestos que inundam as ruas de Quito desde o início da greve nacional no último dia 13 -, o presidente Guillermo Lasso decidiu apelar. Já não bastava ter lançado bombas contra a Casa da Cultura do Equador, retomada pelos movimentos sociais, na noite desta sexta-feira (24) decidiu despejar bombas de gás lacrimogêneo ao redor da creche da Universidade Central que abrigava 200 filhos de manifestantes. As crianças só não sofreram as graves consequências porque foram prontamente retirados do prédio pelos professores até um local próximo, contando com o apoio da Cruz Vermelha.
Renomado intelectual, escritor e ativista, o ex-ministro da Cultura, Ramiro Noriega condenou ambos os “crimes” e alertou para a gravidade dos “atos que carregam consigo uma simbologia muito grande”, ainda mais por terem sido “cometidos por um governo eleito pelo voto popular”.
“A Casa da Cultura é a mais antiga do país e só uma vez foi ocupada: durante a ditadura militar. Ela é sede de vários eventos artísticos, do Museu Nacional, do arquivo da Cinemateca do Equador, com seus bens audiovisuais e documentários, carrega consigo muitos elementos simbólicos. É um ataque direto contra o sentido das identidades, da construção de um espaço de diálogo”, avaliou. Noriega ressaltou que a localização da Casa tem um “elemento estratégico político-militar”, pois se constitui numa das sedes mais amplas da união e confraternização de milhares de pessoas.
“É um espaço de acolhimento para pessoas do campo, agricultores, que vêm com suas famílias para manifestar suas opiniões. Quando o governo lhes retira os centros de diálogo e descanso, busca com isso enfraquecê-los. Atacar a Casa da Cultura tem um duplo sentido: golpear simbolicamente o diálogo entre diversos, mas também atingir a capacidade de organização dos povos originários”, frisou.
De acordo com o ex-ministro, “o que temos visto nos últimos seis anos, seja no governo anterior de Lenin Moreno, como no do primeiro ano do atual, Guillermo Lasso, é que são mentirosos e traiçoeiros, que não cumprem com suas palavras de negociação frente à grave crise social e econômica”.
“Como confiar em governos que não cumprem com a palavra? Temos aqui uma sociedade traída”
Em outubro de 2019, recordou Ramiro Noriega, “já tínhamos vivido com Moreno uma crise de imensas proporções, quando também houve mortos, muitos feridos e jovens que perderam a visão”. “Este é o antecedente: como confiar em governos que não cumprem com a palavra? Temos aqui uma sociedade traída”.
Diante desta realidade, ponderou o ativista, “um cenário seria que houvesse um verdadeiro diálogo, que acredito ser o mais proveitoso, como foi proposto” pelos movimentos. Afinal, destacou, “é preciso lembrar que nosso país tem vivido uma situação crítica que se expressa no fato de que só três em cada dez equatorianos têm emprego. Os índices de desnutrição infantil são gravíssimos, cada vez há mais pobreza, que afeta sobretudo os povos indígenas”.
Frente a este quadro, informou, aparece uma saída como a que chamam de “morte cruzada”, que significa cessar com as funções do presidente da República e da Assembleia Nacional [parlamento equatoriano] e “convocar imediatamente novas eleições”. “Acredito ser esta a opção mais favorável no sentido constitucional e democrático, e pela qual vários grupos parlamentares têm se somado nos últimos dias”, relatou o ativista, embora defendeu “que esta postura não deve se confundir com a de um grupo de tomar o poder, mas de restaurar o diálogo democrático que se perdeu pela traição e pela mentira do governo”.
Ramiro Noriega lembrou que “a mobilização não é restrita a homens fortes e valentes, mas envolve as famílias. E isso significa milhares de camponeses e indígenas que estão em Quito com suas famílias: homens, mulheres, anciãos e muitas crianças, um deslocamento comunitário”.
Sendo assim, esclareceu, “o que estamos denunciando é que a repressão é impiedosa, as tropas agem indiscriminadamente contra todos os que se manifestem em oposição”. “Na Universidade Central onde trabalhamos com a brasileira Bya Braga [professora da Universidade Federal de Minas Gerais], há uma creche que acolheu centenas de meninos e meninas que foi atacada na noite desta sexta por ‘forças da ordem’ que lançaram bombas de gás lacrimogêneo ao redor destes espaços de acolhimento”. “A polícia já está lançando as bombas não apenas da posição horizontal, mas também vertical. É algo escandaloso, criminoso! É isso o que está ocorrendo no Equador. Era uma manifestação pacífica, como costumam ocorrer os protestos, quando a polícia atacou em vez de dialogar, como deveria ser em qualquer país democrático. Aqui dissolvem as manifestações à força. Não há direito à resistência, à livre expressão”, informou.
“Os meios de comunicação das grandes empresas se encontram blindados, não estão do lado da verdade”
Na avaliação do ex-ministro isso faz com que haja necessariamente uma maior reflexão sobre o papel dos conglomerados midiáticos, que têm jogado cada vez mais como braço das forças mais retrógradas. “Em toda a América Latina, e no mundo em geral, os meios de comunicação das grandes empresas se encontram blindados, não estão do lado da verdade, nos retiraram o direito à informação. Isso já vimos há muitos anos e, no caso do Equador, está acontecendo o mesmo. Por isso estamos procurando meios alternativos, sob os quais também exercem enorme pressão, principalmente contra os comunitários, organizados por entidades da sociedade civil e especialmente integrados por jovens”, denunciou.
Para Ramiro Noriega, “estes estão sendo atacados permanentemente nas redes, são censurados e têm os seus sinais cortados”. “Há um processo de dupla censura de cooptação da verdade, seja através dos meios de comunicação até a censura pura e dura que consiste na anulação do seu sinal”, concluiu.