Ele insiste no muro com o México, insulta a Coreia, doura a decadência dos EUA, louva Wall Street e diz que “nunca houve momento melhor para viver o sonho americano”
Para quem gosta mesmo é de tuitar, um discurso de 80 minutos – haja teleprompter – é quase uma eternidade, com Donald Trump – em meio à demissão do vice do FBI que protegia Hillary, ao memorando que flagra a interferência das agências de espionagem nas eleições americanas e à intensificação do cerco do investigador Robert Muller – chamando no maior cinismo “republicanos e democratas” à “unidade”. Além de pedir mais dinheiro para o Pentágono, voltar a ameaçar a Coreia e anunciar que vai manter aberto o campo de concentração de Guantánamo.
Tradição iniciada pelo primeiro presidente, George Washington, o “Estado da União” tem se tornado a cada ano um ritual mais vazio, porém cheio de loas aos “nossos valores”, “aos nossos militares” e ao imperialismo americano. Trump chegou a pedir – e foi atendido – uma ovação para seu chefe do Pentágono, general “Cachorro Doido” Mattis, principal momento de consenso de democratas e republicanos durante o discurso.
Se há dúvida sobre a crise e a decadência dos EUA, a maior evidência disso é exatamente que uma nulidade como Trump – “personalidade buraco de merda” segundo os manifestantes anti-Davos – seja o presidente. O que não seria muito diferente se Wall Street houvesse emplacado sua palestrante preferida, Hillary.
Deixadas para trás as promessas de “drenar o pântano” da posse, o primeiro bilionário a ocupar em pessoa a Casa Branca vangloriou-se de que “nunca houve um momento melhor para começar a viver o sonho americano”. Assertiva com a qual o 1% mais rico, e ainda mais o 0,1% de magnatas como ele, não têm do que discordar. Afinal, três biliardários (Jeff Bezos, Bill Gates e Warren Buffett) têm tanta riqueza quanto a metade mais pobre da população dos EUA, 160 milhões de pessoas.
Não é todo dia que a plutocracia é agraciada com US$ 1,5 trilhão em corte de impostos. Nem que o imposto de renda das corporações caia de 35% para 21%. Ou haja uma anistia para repatriar o dinheiro mantido em paraísos fiscais sem pagar imposto.
Para Trump, outra demonstração desses tempos magníficos é a euforia em Wall Street, com as ações nos píncaros. Ele também voltou a alardear seu plano de infraestrutura de US$ 1,5 trilhão – em grande parte dinheiro privado, segundo ele -, que, asseverou, vai fornecer a infraestrutura “segura,rápida, confiável e moderna que nossa economia precisa e nossa gente merece”. Asseverou que as fábricas “estão de volta” e que não haverá mais acordos comerciais danosos.
Dos seus feitos de primeiro ano de governo, referiu-se à confirmação do juiz arquirreacionário Neil Gorsuch para a Suprema Corte, à revogação de regulamentação aos bancos, corporações e meio ambiente, e a “100%” da derrota do Estado Islâmico.
Como mesmo na encenação é preciso, para aparentar veracidade, deixar algum elemento de realidade, Trump se referiu à catástrofe dos 64 mil mortos por ano de overdose de opiáceos – que são principalmente brancos pobres –, que revela a profundidade do desespero e da degradação econômica e social da América após a transferência das indústrias ao exterior. Questão sobre a qual seu governo essencialmente não fez nada, exceto demagogia.
Já o racismo e a perseguição aos imigrantes – temas tão caros a Trump – não poderiam ficar de fora do discurso, com o presidente propondo que os imigrantes que chegaram crianças aos EUA passem um calvário de 12 anos até quem sabe a cidadania.
Isso, claro, em troca de muitos bilhões no orçamento federal para seu muro na fronteira com o México, contratação de mais Patrulhas da Fronteira e mais policiais da imigração.
Ainda, cortes drásticos na imigração legal, ao dificultar a reunificação das famílias que já vigora. O que chamou de “compromisso médio”, onde ninguém recebe tudo o que quer. As costumeiras ameaças às “cidades santuário”, que protegem os imigrantes, foram deixadas, por agora, de fora.
ATAQUE A IMIGRANTES
No lugar dos “estupradores e assassinos mexicanos” dos comícios, Trump atacou os salvadorenhos, que devem ser expulsos em massa até 2019, dizendo que foi a imigração que trouxe a gangue MS 13 aos EUA, quando na verdade esta surgiu nas favelas de Los Angeles e presídios americanos. No discurso, Trump não chegou a dizer diretamente que “meu botão nuclear é maior”, mas insistiu nas ameaças e ofensas à Coreia Popular, e enalteceu o rearmamento nuclear – como se os EUA houvesse em algum instante deixado de chantagear os demais povos com seu arsenal atômico.
“Um poder sem par é a melhor forma de defesa”, asseverou, como se 1000 bases no exterior, mais de uma dezena de frotas de porta-aviões e gasto militar que é maior do que o dos 14 países que vêm em seguida tivesse alguma coisa a ver com “defesa”. Mas, apesar disso, vivem sendo surrados por povos muito menos armados e estão atolados no Afeganistão há 16 anos.
Além de plagiar aquela encenação de Obama sobre a “unidade” suprapartidária, Trump também repetiu o costume deste de citar algumas figuras, como forma de aparentar proximidade com a plebe. Teve até um débil mental que se prestou a jogar para o alto as muletas.
De passagem, Trump falou sobre o Pentágono ter reparado que China e Rússia têm a dimensão de adversários estratégicos, mas voltou a ameaçar países que insistem em sua soberania, como Cuba, Irã e Coreia Popular – contra esta, ele despejou o máximo de rancor. Recebeu como resposta de Pyongyang que não passa de um “racista”.
ANTONIO PIMENTA