Após ter conseguido, em plena revolta contra o racismo nos EUA, marcar seu comício da retomada da campanha de reeleição justo na data da emancipação dos escravos – 19 de junho – e em Tulsa – cenário do maior massacre de negros no país no século passado –, o presidente Donald Trump recua com relação à data e marca para sábado, 20, mas mantém o mesmo local.
O anúncio de que o primeiro comício de Trump depois da irrupção da pandemia de Covid-19 seria em Tulsa e logo no “Juneteenth” – como a data é conhecida – havia causado enorme indignação, com líderes dos direitos civis e antirracistas considerando o anúncio “um tapa na cara”, um “insulto premeditado”.
Tulsa, cidade do estado de Oklahoma, foi palco em 1921 de um massacre contra negros, com um bairro inteiro, Greenwood, destruído e mais de 300 mortos. Foi também a primeira vez que uma cidade dos EUA foi bombardeada por avião.
Turbas de racistas incineraram praticamente todas as casas de famílias negra, igrejas e os estabelecimentos comerciais. O massacre de Tulsa passou à história como “o pior incidente de violência racial na história americana”. Foram devastados 35 quarteirões do que era a comunidade negra mais próspera do país, conhecida como a Wall Street Negra.
Mais de 1200 casas, uma escola, igrejas e um hospital foram incendiados até o chão. 6 mil negros foram presos, 10 mil ficaram desabrigados, depois de 18 horas de ataque a tiros e bombas incendiárias.
“Nova Batalha Agora em Progresso”, registrou em 1 de junho de 1921 o Tulsa World, em edição extra. Mais informações: “Brancos avançam na ‘Pequena África’, lista de negros mortos é de 15”. Ainda: “Prisão de um Jovem Negro sob Acusação Estatutária causou batalha entre raças”. “Guerra Racial Grassou por Horas Depois da Irrupção no Tribunal”. “Tropas e Homens Armados Patrulham as Ruas”. “Movimento para Linchar um Engraxate Deu Início ao Problema”.
O massacre, mantido no esquecimento por 75 anos, só voltou a ser discutido em 1996, quando a assembleia estadual formou uma comissão para enfrentar a questão.
“TAPA NA CARA”
“Escolher a data, vir a Tulsa, é totalmente desrespeitoso e um tapa na cara”, disse Sherry Gamble Smith, presidente da Câmara de Comércio de Wall Street de Tulsa, uma organização que leva o nome da próspera comunidade negra que os racistas brancos queimaram no ataque de 1921.
A presidente do Partido Democrata de Oklahoma, Alicia Andrews, considerou o comício de Trump “um insulto premeditado”. “Um dia reservado para comemorar a liberdade das pessoas escravizadas não deve ser marcado pelas palavras ou ações de um presidente racista”, acrescentou.
No mínimo, assinalou Gamble Smith, o comício deve ser mudado “para sábado, dia 20, se eles vão mantê-lo”.
Dois dias depois, na sexta-feira, deu-se o recuo da campanha Trump, quando pesquisas de opinião já davam uma queda na popularidade do presidente, de dez pontos percentuais, para 39%, após chamar de “terroristas”, “incendiários” e “bandidos” os manifestantes que nas ruas rechaçaram mais um linchamento de um negro desarmado.
A mudança de data também foi pedida a Trump pelo único senador negro republicano eleito até hoje, Tim Scott, e por seu secretário da Habitação, Ben Carson, que também é negro. Como observou a CNN, dar o braço a torcer não é muito típico de Trump.
Antes disso, porta-vozes do trumpismo defenderam o comício, asseverando que os republicanos “como o partido de Lincoln” estão “orgulhosos do Juneteenth”. Recentemente, Trump, um racista notório e que vive chamando os supremacistas brancos de ‘gente de bem’, declarou que nenhum presidente depois de Lincoln fizera “tanto” pelos negros.
Outras analistas apontaram que pesaram na escolha de Tulsa a vitória fácil em Oklahoma de Trump em 2016, com um governador próximo ao presidente e um número de casos de coronavírus não tão grande.
O comício será no BOK Center de Tulsa, um local fechado com capacidade para 19 mil pessoas. A página do BOK Center no Facebook mostra que por causa da pandemia foram cancelados shows de vários artistas marcados para meados de julho.
ISENTO EM CASO DE CONTÁGIO
A diretora de marketing da arena, Meghan Blood, disse na quinta-feira que ainda não sabia sobre quaisquer planos de distanciamento social ou outras precauções quanto ao coronavírus para o comício de Trump, que seria uma das maiores reuniões públicas dos EUA em meio à pandemia.
Os fanáticos que comparecerem serão convidados a assinarem um termo isentando, em caso de contágio da Covid-19, de qualquer responsabilidade a campanha de Trump, a arena e os organizadores do evento.
Em Tulsa, vêm se repetindo os incidentes de racismo relacionados com policiais. Vídeo datado de 4 de junho mostra policiais mantendo um de dois adolescentes não identificados com o estômago voltado para o chão. O garoto grita “me larga! Eu não consigo respirar! Eu não consigo respirar! Eu não consigo respirar!”. “Você pode respirar muito bem”, retruca o policial.
Na semana passada, um major da polícia de Tulsa minimizou a quantidade de negros que são baleados por policiais nos EUA, afirmando que “estatisticamente, estamos atirando em afroamericanos 24% menos do que provavelmente deveríamos estar, com base nos crimes que estão sendo cometidos”.
Já o prefeito de Tulsa, GT Bynum, que comemorou a vinda do comício de Trump como uma evidência do progresso da cidade contra a Covid-19, teve o bom senso de pedir desculpas por seu comentário de 2016 sobre a morte de um negro por um policial. “Era realmente mais sobre a natureza insidiosa da utilização da droga do que sobre a raça”, dissera na época.
JACKSONVILLE, ANO 60
A coincidência de Trump marcar o comício em Tulsa justo para uma data em que ofende a consciência antirracista, voltou a se repetir com a mudança, para Jacksonville, na Florida, da convenção republicana que formalmente indicará seu nome à reeleição.
Será no dia 27 de agosto, exatamente no dia em que, há 60 anos, em Jacksonville, um grupo de jovens negros que acabara de se dispersar de um protesto pacífico no centro da cidade foi cercado e espancado por uma turba de brancos racistas. Episódio que ficou marcado como “Sábado das Machadadas”.
A mudança de local, segundo os trumpistas, se deve a que, na Carolina do Norte, governada por um democrata, normas rígidas de distanciamento social seriam incompatíveis com o que Trump espera da convenção de consagração.