
“Zelensky e os europeus, que há um ano se preparavam com todo afinco para organizar uma conferência de paz na Suíça, sem a presença da Federação Russa, se desesperaram agora por um convite para se sentarem à mesa das negociações, apesar de não terem qualquer proposta de paz para apresentar”, analisa o general Carlos Branco
MAJOR-GENERAL CARLOS BRANCO (*)

Os últimos fatos políticos relacionados com a guerra na Ucrânia estão sendo marcados pelo encontro entre os presidentes Donald Trump e Vladimir Putin (15 de agosto), em Anchorage, no Alasca, e pelas reuniões, em Washington, entre os presidentes Trump, Volodimyr Zelensky e vários dirigentes europeus, a pedido destes. Apesar da ligação entre os eventos – os segundos decorrem do primeiro – eles merecem ser analisados separadamente.
O ambiente em torno da reunião no Alasca contrasta com o dos tempos de Obama e de Biden. Assistimos às duas maiores potências nucleares do mundo tentando estabelecer um clima de confiança mútua. A Rússia foi reconhecida como um par pelos EUA, abrindo as portas a um novo ciclo de diálogo e de normalização das relações diplomáticas entre os EUA e a Rússia baseado em reuniões de alto nível, em que Putin foi recebido como um igual.
NOVA ABORDAGEM
O Alasca poderá ter sido o início de uma nova abordagem ao debate sobre a “indivisibilidade da segurança”. Para desgosto dos europeus, Trump não se alinhou na política de isolamento de Moscou alimentada pelo seu antecessor. Não por preconceito, mas por necessidade.
Percebeu que a estratégia da administração anterior se tinha tornado insustentável. Não só não conduziu à tão almejada derrota estratégica da Rússia, como está longe de o conseguir, sonho que os alucinados dirigentes europeus ainda alimentam, depois de 18 ineficazes pacotes de sanções. É do interesse da América obter uma solução para o conflito. Neste cálculo, Trump sabe, embora não o diga, que os EUA não dispõem da capacidade e dos recursos que tiveram no passado. Por isso, a América tem de voltar a ser grande outra vez, porque deixou de o ser, por enquanto. Trump está ciente de que não é tão poderoso quanto alardeia publicamente.
Seria ingenuidade concluir que os EUA abandonaram o projeto da primazia global. Como alguém afirmou, “o sistema funciona, leia-se o estado profundo, independentemente de quem está na Casa Branca”. Permanece no ar até que ponto esse projeto foi abandonado depois dos recentes acontecimentos no Cáucaso do Sul, e da assinatura de um acordo de princípios, relativamente ao futuro das relações entre a Arménia e o Azerbaijão, mediado por Trump.
Trump sabia que a ameaça de tarifas contra a Rússia e os países com que Moscou mantém relações comerciais, utilizada para calar os neocons republicanos, não era exequível. A marcação da conferência no Alasca foi uma fuga para a frente inteligente, furtando-se a uma derrota humilhante. Trump sabia que Moscou ia fazer ouvidos de mercador às ameaças, como o fez. Putin encontrava-se numa situação favorável.

Estão ainda por se saber os assuntos discutidos no Alaska. A guerra na Ucrânia foi apenas um deles. Não se sabe qual foi o empenho de Trump na renegociação do Novo Tratado START e de outras ações no âmbito do controle do armamento nuclear, ou a resposta à recente colocação de armas nucleares na Europa, em particular no Reino Unido, de onde tinham sido retiradas há 15 anos.
ATAQUES À RÚSSIA
Ainda não foram ultrapassados os vários tópicos que têm prejudicado as relações entre as duas potências, como seja a já acordada restituição das reservas russas arrestadas pela Administração Biden. E também o desnecessário e inconveniente anúncio do general Christopher Donahue, comandante do Exército dos EUA na Europa e África, da existência de um plano da OTAN para tomar rapidamente o enclave russo de Kaliningrado, no momento em que se encontram em curso iniciativas diplomáticas desanuviadoras das relações políticas entre as duas maiores potências nucleares do planeta.
Do encontro se ressaltou uma clarificação da posição de Trump quanto ao futuro do conflito: o acordo de paz deve preceder o cessar-fogo; aceitação das linhas vermelhas russas, em particular, aquelas com implicações securitárias. Em função disso, Trump colocou em Zelensky o ônus da paz, caso não ceda às condições russas. A ideia continua válida mesmo depois da reunião de Trump com Zelensky, na Casa Branca (18 de agosto). Trump abandonou o plano do general Keith Kellogg e as ameaças de sanções a Moscovo.
ACORDO FORMAL
Alguns analistas minimizam a importância da conferência devido à ausência de um acordo formal, fazendo vista grossa às declarações de Trump relativamente à adesão da Ucrânia à OTAN, ao abandono das ilusões que Kiev ainda mantém relativamente à recuperação da Crimeia e de outros territórios do Donbass, em linha com os objetivos de Moscou, que não podem, de modo algum, ser desconsideradas. Ganharam ainda maior relevância quando foram repetidas uma semana mais tarde em Washington, a Zelensky e aos dirigentes europeus que o acompanharam, aparentando Trump seriedade nas suas convicções.
Depois de uma reunião dos embaixadores dos 27 países da União Europeia (UE), no início da manhã de 16 de agosto, a UE não foi capaz de adotar prontamente uma declaração conjunta sobre a cimeira. Em vez disso, os líderes de cinco dos 27 Estados-membros da UE e do Reino Unido – emitiram uma declaração, que a presidente da Comissão Europei,a Ursula von der Leyen, publicou no X, em que reiterava o discurso conhecido de Bruxelas sem apresentar uma proposta de paz.
O encontro Trump/Putin veio igualmente evidenciar a irrelevância da justiça penal internacional. Está perdendo eficácia como ferramenta de manobra política para penalizar líderes não alinhados com as políticas do Ocidente. Apesar de a Rússia e dos EUA não serem signatários do Acordo de Roma, não deixa de ser significativo o fato de mais um líder indiciado com um mandado de captura do TPI ser recebido com honras de estado e passadeira vermelha.
AS REUNIÕES NA CASA BRANCA
Zelensky e os europeus, que há um ano se preparavam com afinco para organizar uma conferência de paz na Suíça, sem a presença da Federação Russa, se desesperaram agora por um convite para se sentarem à mesa das negociações, apesar de se desconhecer qualquer proposta de paz da sua parte, como acima referido, mesmo que essa aventura pudesse envolver desconsiderações.
O modo como foram recebidos contrasta com a recepção dada a Putin. Trump não cumprimentou pessoalmente nenhum dos dirigentes europeus quando chegaram à Casa Branca. Não satisfeitos com o tratamento que receberam em Pequim, submeteram-se voluntariamente a um novo vexame. Foram propositadamente recebidos por um membro do staff para lhes mostrar o seu papel subalterno na presente reestruturação em curso da ordem mundial.
Não se registraram progressos tangíveis na reunião de Trump com Zelensky na Casa Branca e nas que se seguiram com a presença dos dirigentes europeus. A conversa de Trump com os seus homólogos, ao vivo e a cores para o mundo assistir, assumiu aspetos verdadeiramente bizarros e patéticos. Enquanto os dirigentes europeus regurgitavam as “lines” acordadas nas reuniões preparatórias com Zelensky, dias antes na Europa, Trump os contradizia. O chanceler alemão Friedrich Merz falava na necessidade de um cessar-fogo e Trump contrariava-o dizendo que se devia avançar de imediato para um acordo de paz, como condição para negociações futuras. Enquanto a presidente da Comissão Europeia Ursula Von Der Leyen mostrava preocupação com as crianças ucranianas, Trump informava-a que que não estavam ali para discutir esse assunto.
EUROPEUS ENSANDECIDOS
Atingiu-se o clímax com as intervenções do presidente francês Emmanuel Macron e do presidente finlandês Alexander Stubb. O primeiro obcecado por umas inexequíveis garantias de segurança, advogava a presença de “forças de dissuasão” em território ucraniano, reiteradamente vetadas pela Rússia. Como disse o presidente do Conselho Europeu, Antonio Costa, seria algo “similar ao Art.º 5.º da OTAN” conjuntamente com os EUA continuando a fornecer armamento a Kiev e treinando as forças armadas ucranianas.” A parte americana esclareceu, uma vez mais, que não fornecerá armas nem dinheiro à Ucrânia. “Agora vendemos-lhe armas, e os países europeus pagam-nas.” Segundo a porta-voz da Casa Branca, “os EUA não enviarão tropas para a Ucrânia como parte das garantias de segurança concedidas ao país.”

Para não ficar atrás dos seus homólogos, contradizendo tudo o que tem dito antes e depois da reunião, provavelmente sem ter a noção do alcance das suas palavras, e com base na longa experiência de relações da Finlândia com a Rússia, Stubb aconselhou a Ucrânia a seguir o exemplo da Finlândia. Sem o vocalizar, estava a sugerir que a Ucrânia, à semelhança da Finlândia, declarasse neutralidade e cedesse territórios, como teve de fazer em 1944 relativamente à URSS, depois de ter combatido durante a segunda guerra mundial ao lado das forças hitlerianas.
UCRÂNIA QUER GUERRA
Como observou o Washington Post, “a reunião de várias horas não eliminou as evidentes divergências entre os líderes europeus e Trump, que afirmou estar Putin pronto para a paz e exigiu a Kiev amplas e dolorosas concessões para acabar com a guerra”. A Ucrânia e os seus apoiadores europeus não moveram um milímetro da sua posição inicial, demonstrando claramente os limites da influência de Trump.
Numa conferência de imprensa, imediatamente após as reuniões com os seus homólogos, defronte da Casa Branca, Zelensky admitiu abandonar a ideia do cessar-fogo. Terá sido a única evolução tangível. Foi intransigente no restante, nomeadamente em relação à cedência dos territórios.
Trump quer realizar uma reunião com Putin e Zelensky, em 22 de agosto, mas Putin deixou bem claro que só se reunirá com Zelensky depois de os detalhes da rendição ucraniana terem sido acordados, o que está longe de acontecer. As condições não se encontram ainda maduras para que tal possa acontecer. Trump está erradamente convencido de que basta reunir Putin e Zelensky para se chegar a um acordo.
Moscou referiu a possibilidade de estudar a proposta de reunião para que, jogando com a ambiguidade estratégica, confira espaço de manobra a Trump para «trabalhar» com os europeus e Zelensky.
ATÉ A EXAUSTÃO
Portanto, a guerra continuará até à exaustão de uma ou das duas partes. Entretanto, a propaganda continua com os mesmos argumentos de há três anos. A economia da Rússia está em dificuldades, a vitória é possível porque a economia russa está numa situação desesperada, à beira do colapso; as forças armadas russas não conseguem derrotar os soldados ucranianos, os soldados russos morrem diariamente aos milhares, e a situação militar encontra-se num impasse, etc. Os propagandistas só devem conseguir dormir mais relaxados depois de regurgitarem as suas verdades. Entretanto, os combates ucranianos continuarão até ao último ucraniano. Por fugas de informação provenientes do lado ucraniano, já terão perecido, segundo fontes ucranianas, cerca de 1,7 milhões de ucranianos. Excluem-se deste valor mercenários e amputados.
(*) Carlos Branco é Major General do Exército Português. Tem uma vasta experiência em assuntos político-militares e relações internacionais obtida através de várias missões internacionais. Serviu na ONU, nos Balcãs, antes de Dayton, como observador militar
Publicado originalmente no Resisir.info e Estátua de Sal