Sem sequer uma única audiência pública de discussão, a Câmara de Deputados dos EUA aprovou a jato proposta de reforma fiscal patrocinada pelo presidente Donald Trump que transfere US$ 3 trilhões dos mais pobres para os magnatas e corporações em dez anos, através do corte de imposto e outras regalias. Para entrar em vigor a medida ainda depende de aprovação no Senado.
“Um grande e lindo presente de Natal” – supostamente para “o povo americano”-, assim Trump descreveu no início do mês sua reforma fiscal. O campeão da “drenagem do pântano” teve a desfaçatez de chamar de “Lei dos Empregos e Corte de Impostos” essa transfusão de US$ 3 trilhões para monopólios e rentistas, que agrava a já descomunal e obscena desigualdade de renda nos EUA.
A reforma – há quem chame de fraude – fiscal de Trump visa também manter sua base de apoio entre os magnatas e especuladores num momento em que o investigador especial Robert Mueller vai tecendo sua teia na chicana do “Russiagate” e no impeachment.
Conforme estudo citado pelo New York Times, os 1% dos contribuintes mais ricos serão beneficiários de mais de 50% da redução de impostos. A surrada alegação de Trump para a pilantropia é que, ao desviar dinheiro dos impostos nessa monta para monopólios e rentistas, advirá uma enxurrada de investimentos produtivos privados, criando novos empregos de salários melhores, na enésima versão do conto neoliberal do “gotejamento” inaugurado por Madame Thatcher.
Não é por falta de dinheiro que as corporações ianques não investem – só no exterior detêm US$ 2 trilhões em paraísos fiscais -, mas porque a ‘recuperação’ pós-2008 tem pés de barro, e a única coisa que realmente cresce nos EUA é a bolha de tudo de Wall Street e a recompra de ações para pagar mais dividendos a executivos e especuladores.
Aliás, 400 bilionários – um deles um Rockefeller – chegaram a enviar carta ao Congresso dizendo que não precisavam de mais cortes de impostos e afirmando que, se tiverem mais dinheiro, não vão produzir a mais, vão é especular – “poupar”, como disse um dos signatários.
MANÁ
O maná de US$ 3 trilhões se distribui entre corte de impostos para monopólios (US$ 1,5 trilhão), corte de imposto adicional (ATM) às famílias abastadas (US$ 696 bilhões) [as de renda anual entre US$ 200.000-1.000.000], redução do imposto ‘pass through’ de pequenos e médios empresários (US$ 597 bi) via taxa menor de 25%, aumento do limiar para pagamento do imposto de herança e sua supressão até 2025 (US$ 151 bilhões) e mais US$ 250 bilhões em bondades diversas arroladas nas 400 páginas da lei.
Esses US$ 1,5 trilhão em dez anos se deve a que o imposto de renda das corporações será rebaixado de 35% para 20% – o patamar mais baixo desde 1939 – embora já fosse na prática bem abaixo, graças aos inúmeros buracos na legislação e à prática de manter no exterior o dinheiro das subsidiárias para não pagar imposto.
Bancos, fundos de hedge, e todo tipo de agiota praticam o esporte da evasão fiscal e, como diz o banqueiro Warren Buffet, a secretária dele paga uma taxa de imposto mais alta que ele. Na lei da Câmara, o imposto de renda pessoal é reduzido de sete faixas para quatro, com a mais elevada mantida em 39,6% mas com limite duplicado, para US$1.000.000.
O pouco que o projeto de lei dá com uma mão à classe média e aos pobres, como a elevação da dedução padrão (que dobrou) e do subsídio para os filhos, é subtraído com a outra, através da redução ou eliminação de deduções fiscais existentes, como na saúde, educação e nos juros dos empréstimos estudantis. Ainda de acordo com muitas análises, dezenas de milhões de pessoas de renda média acabarão pagando impostos mais altos sob a reforma de Trump.
Assim, enquanto uma família dos 0,1% mais ricos terá um corte médio de US$ 800.000 por ano, uma família – um casal com um filho – que ganha menos de US$ 24.850 por ano não terá desconto algum. E uma com renda de US$ 48.700 anual verá um corte de míseros US$ 180. A minúscula redução fiscal que muitas famílias da classe trabalhadora experimentarão em 2018 – ano de eleições – depende de um crédito temporário que daqui a cinco anos se transformará automaticamente em aumento da carga fiscal.
É o Robin Hood às avessas. Isso, quando, conforme o Federal Reserve (Pesquisa do Consumidor Financeiro), os 10% mais ricos nos EUA detém 77% da riqueza, sendo que o 1% superior chegou a 38,5%. Os 90% inferiores caíram dois pontos percentuais entre 2015 e 2016, para 22,9%.
IDOSOS ATINGIDOS
Os idosos também são atingidos. A lei da Câmara elimina as deduções fiscais por despesas médicas que excedam 10% da renda total do contribuinte. Mais da metade dos 8,6 milhões de pessoas que requerem a dedução têm mais de 65 anos, sendo que 49% têm renda anual inferior a US$ 50.000 e 69%, a US% 75.000 de acordo com a AARP, a entidade de aposentados com 38 milhões de membros.
Também revoga a dedução fiscal para pagamentos de juros sobre empréstimos estudantis [ a que tinham direito mutuários com renda anual até US$ 65.000 ou casados com até US$130.000] que beneficiou 12 milhões de pessoas em 2015.
No Senado, a possibilidade de que um projeto 100% Trump de reforma fiscal passe, escapando à sorte que sua revogação do Obamacare teve, é igualmente frágil, dada a pequena maioria republicana. Mas os democratas não querem de forma alguma ficar mal com as altas rodas, nem com Wall Street, e ao invés de cortar o imposto das corporações de 35% para 20%, querem 25-28%. Já quanto a cortar recursos para o Medicare e para os programas sociais, juram fazê-lo sempre com “dor no coração”.
Conforme o NYT, o presidente Trump afirmou a seus correligionários que, resolvida a reforma fiscal, estará na ordem do dia a “reforma do bem estar social”. Traduzindo, como vão cortar em dez anos US$ 3 trilhões na receita, vão alegar que é preciso sangrar os programas sociais, o Medicare, o Medicaid e a previdência por causa do “déficit”. Para o que bem serve aquela lei de 2010 – aprovada ainda sob Obama – que força cortes automáticos em caso de déficit.
No mais, a grande explicação para o que o NYT chamou de “estonteante” velocidade de aprovação da reforma fiscal na Câmara dos Deputados acabou vindo mesmo foi do senador republicano Lindsey Graham: se o Congresso não conseguir um corte de imposto “as contribuições financeiras [para as campanhas] vão parar”.
ANTONIO PIMENTA