“A governabilidade está no social. A fome, a miséria, a ignorância, a doença inassistida são ingovernáveis. A injustiça social é a negação e a condenação do governo.”
Como observamos na edição anterior, quando publicamos o discurso de conclusão da Constituinte de 1988, de seu presidente, Ulysses Guimarães, além da ameaça explícita de Bolsonaro e sequazes, também o candidato do PT, Fernando Haddad, propôs substituir a Constituição atual – por meio de uma “constituinte exclusiva”.
O PT não votou nem assinou, em 1988, a atual Constituição.
Algo significativo, pois a Constituição-cidadã de Ulysses Guimarães é a mais democrática, a mais popular e a mais nacional de todas as Cartas que o Brasil já teve, desde a primeira, de 1824.
É verdade que ela sofreu alterações – via de regra para pior – durante os governos Fernando Henrique, Lula, Dilma e Temer.
Exatamente por isso, não há necessidade de “nova constituição” alguma. O necessário é eliminar as alterações feitas para pior, durante esses governos.
Porque o país ainda não superou o marco democrático e nacional consagrado pela Constituição de 1988.
Pelo contrário, o que se viu, ainda antes do fim de sua realização, foi a oposição e os ataques do que havia de mais conservador e reacionário no país à Constituição – exatamente por seu caráter democrático, nacional, popular.
Há 30 anos esses “velhos do Restelo” – como chamou-os Ulysses, lembrando “Os Lusíadas”, de Camões – dizem que a Constituição tornou o país ingovernável. No entanto, não foi a Constituição que devastou o país, desde o governo Fernando Henrique. Pelo contrário, para devastá-lo, tiveram que fazer 99 mudanças constitucionais.
O próprio Ulysses, no dia 27 de julho de 1988, antes de iniciar-se a votação em segundo turno da Constituição, denunciou essa conspiração – que, a bem dizer, durante a Constituinte, abarcou das viúvas da ditadura até o PT, passando pelos futuros tucanos.
Disse, então, Ulysses Guimarães, da cadeira de presidente da Constituinte:
“Quando iniciamos a votação do segundo turno do projeto da futura Constituição, testemunho o trabalho competente e responsável dos constituintes nas subcomissões, comissões temáticas, comissão de sistematização e no plenário. São tecelões do tecido constitucional. Trinta e nove mil emendas estudadas e apresentadas documentam esse extraordinário esforço e o empenho posto pelos constituintes em contribuir conscienciosamente para a qualidade do texto.
“Foi longa a travessia de dezoito meses.
“Cerca de 5.400.000 pessoas livremente ingressaram no edifício do Congresso Nacional. Quem leva, sem discriminação, contribuição ou crítica a fazer, pode ou pôde, tempestivamente, fazê-lo. As portas estavam e continuam abertas. É só transpô-las.
“A Constituinte teve o foro de multidões.
“Saúdo o relator Bernardo Cabral, que confirmou seu renome de jurista e sua espartana dedicação, coadjuvado pelos relatores adjuntos Konder Reis, José Fogaça e Adolfo Oliveira, também dignos de reconhecidos encômios, bem como os eficientes membros da Mesa.
“Sem a compreensão e o talento dos líderes partidários, não chegaríamos à fase atual de nossos trabalhos. Os funcionários, representados pelo secretário-geral da Mesa, Dr. Paulo Afonso Martins de Oliveira, e pelo diretor-geral, Dr. Adelmar Silveira Sabino, bem como a imprensa, rádio e televisão, com justiça, integrarão este evento histórico.
“O projeto submetido a segundo turno é longo – 321 artigos –, versando matéria complexa e tantas vezes controvertida.
“Inevitavelmente abriga imperfeições, previstas pela instituição de um segundo turno revisionista e pelo avultado número de emendas e destaques apresentados.
“Existem imprecisões, reconheço. Vamos corrigi-las, estou certo.
“Mas, mesmo na fase atual, o projeto tem muito mais do que nos orgulharmos do que nos arrependermos. Impõe-se mais defendê-lo do que reformá-lo.
“Assinale-se sua coragem em inovar, a começar pela arquitetura original de sua confecção, rompendo padrões valetudinários e enfrentando a rotina do status quo.
“Dissemos não ao establishment, encarnado no Velho do Restelo conclamando, na praia alvoroçada da partida, Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral e Camões a permanecerem em casa, saboreando bacalhau e caldo verde, ao invés da aventura das Índias, do Brasil e dos Lusíadas, e amaldiçoando ‘O primeiro que, no mundo, nas ondas, velas quis em seco lenho’.
“Esta Constituição terá cheiro de amanhã, não de mofo.
“Para não me alongar, reporto-me a alguns aspectos, que reputo inaugurais, do texto ora submetido ao crivo da revisão constituinte.
“A soberania popular, sem intermediação, poderá decidir de seus destinos. Os cidadãos apresentarão proposta de lei, portanto terão a iniciativa congressual e também poderão rejeitar projetos aprovados pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal. Portanto, os cidadãos propõem e vetam. São legisladores, exercitam a democracia direta.
“Poucas Constituições no mundo democrático têm essa presença direta e atuante da sociedade na elaboração dos preceitos de império em seu ordenamento jurídico. O Brasil será, assim, uma república representativa e participativa. Teremos a convivência e a fiscalização de mandatos e mandatários a serviço da sociedade.
“Após quase quinhentos anos, o projeto redime a geografia do Brasil.
“Nossa geografia é violentada pela concentração nacional de rendas e de competência. Nossa geografia é regional, é local, é municipal, com municípios maiores do que muitos países.
“As urnas dão votos para os governadores e prefeitos administrarem. Mas só a autêntica federação, que estamos organizando, dá o dinheiro para que tais governos deem respostas às necessidades localizadas.
“Federação é governo junto com o homem. Não homem correndo atrás do governo estadual ou de Brasília, frequentemente longínquo e indiferente.
“Esta alforria do homem e de seus governantes foi decretada pela transferência de 47% dos recursos da União para os estados e municípios, 21,05% àqueles e 22,5% para estes.
“Se não tivéssemos feito mais nada, só com isso teríamos feito muito.
“Cooperamos para a reversão da instável e irracional pirâmide social brasileira de 130 milhões de brasileiros carentes na base, projetada para o ar e apoiada em seu vértice em Brasília, onde estão os recursos.
“Com os hodiernos conceitos de seguridade, estamos entre os sete países que a adotam, instituindo a universalidade dos beneficiários, mesmo aos que, comprovadamente, não possam contribuir.
“Desobstruiu-se a Previdência, sem desequilíbrio, às donas de casa, arrendatários e pescadores.
“Diminui-se pela equivalência a separação entre o trabalhador rural, com oito benefícios, e o urbano, com trinta e dois.
“Governar é encurtar distâncias. Governar é administrar pressões, e as pressões primárias e diretas são as do lugar onde se vive, trabalha, estuda, sofre e ama.
“Quanto aos onze milhões de aposentados, foi-lhes garantido o valor real dos proventos através do tempo, para que não sejam destroçados pela inflação, como hoje ocorre, ocasionando a humilhação, o desesperoe a morte.
“Sras. e Srs. Constituintes, a Constituição, com as correções que faremos, será a guardiã da governabilidade.
“A governabilidade está no social. A fome, a miséria, a ignorância, a doença inassistida são ingovernáveis.
“Governabilidade é abjurar, o quanto antes, uma Carta Constitucional amaldiçoada pela democracia e jurar uma Constituição fruto da democracia e da parceria social.
“A injustiça social é a negação e a condenação do governo.
“A boca dos constituintes de 1987-1988 soprou o hálito oxigenado da governabilidade pela transferência e distribuição de recursos viáveis para os municípios, os securitários, o ensino, os aposentados, os trabalhadores, as domésticas e as donas de casa.
“Repito: esta será a Constituição Cidadã, porque recuperará como cidadãos milhões de brasileiros vítimas da pior das discriminações: a miséria.
“Cidadão é o usuário de bens e serviços do desenvolvimento. Isso hoje não acontece com milhões de brasileiros, segregados nos guetos da perseguição social.
“Esta Constituição, o povo brasileiro me autoriza a proclamá-la, não ficará como bela estátua inacabada, mutilada ou profanada.
“O povo nos mandou aqui para fazê-la, não para ter medo.
“Viva a Constituição de 1988!
“Viva a vida que ela vai defender e semear!”
Esta é a Constituição que alguns querem acabar – ao invés de restaurar a sua plenitude. É verdade que sempre foram contra ela. Mas isso apenas demonstra como estão atrasados na História.
C.L.