No próximo dia 5, a Constituição brasileira fará 30 anos.
Estas três décadas têm sido plenas de vicissitudes – e houve vários ataques à Carta de 1988.
No entanto, ela permanece como a cristalização das conquistas democráticas do povo brasileiro, com a derrubada da ditadura que infelicitou o país durante 21 anos.
Ao mesmo tempo, no dia seguinte, seis de outubro, Ulysses Guimarães – o presidente da Constituinte de 1988, que esteve à frente da luta contra a ditadura desde a primeira metade da década de 70 – faria 102 anos.
Neste momento em que alguns candidatos, no presente pleito eleitoral, atacam a Constituição de Ulysses – e não estamos falando apenas de Bolsonaro; pois o candidato do PT, Fernando Haddad, já propôs até uma nova Constituinte (e, certamente, na situação de hoje, não é para melhorar o atual texto) – republicamos, aqui, o discurso que encerrou a Constituinte de 1988.
Quando o pronunciou, Ulysses faria, no dia seguinte, 72 anos.
Esta, aliás, é a segunda vez que publicamos este discurso. A primeira foi quando do centenário de Ulysses, em 2016. Mas achamos completamente justificada a republicação de agora.
Mantivemos, abaixo, a introdução então elaborada, por sua atualidade:
A luta, dentro da Constituinte, já prenunciava o que veio depois: a atitude dos futuros tucanos – Fernando Henrique Cardoso, José Serra, Mário Covas – foi sempre um obstáculo à ampliação das conquistas populares.
O PT até mesmo se recusou a votar e assinar a Constituição.
O que ocorreu durante os dois mandatos tucanos e os 13 anos do PT na Presidência, já ali estava esboçado.
[Porém, é forçoso acrescentar que o lixo da ditadura foi banido para os esgotos e aterros sanitários da História – e somente agora, na atual campanha, emergiu desses esgotos.]
Na campanha eleitoral de 1989, em seu último pronunciamento, o próprio Ulysses definiu o destino daqueles que, então, o atacavam – e às conquistas democráticas da Constituição:
“Durante mais de vinte anos, [o PMDB] foi à nação com sua voz de liberdade. Ante o terror, não se aterrorizou. Não se sujou como cúmplice da ditadura. Não mamou nas tetas assassinas da opressão. Nosso partido foi às universidades e às passeatas dos estudantes amordaçados pelo famigerado Decreto nº 477, tendo Honestino Guimarães como mártir da resistência estudantil. Foi às greves para defender e solidarizar-se com os trabalhadores perseguidos e presos, transferindo sua sede para o ABC, em São Paulo, com a participação histórica de Teotônio Vilela. Foi, então, hasteada a destemida bandeira da desobediência civil, que revogou, de fato, o tirânico AI-5. Mas um preço de sangue e luto foi pago com o assassinato do operário Santo Dias.
“Com a anistia, abriu as portas das cadeias para libertar presos políticos e abriu as fronteiras do Brasil para o repatriamento dos exilados. Alguns, agora, nos jogam pedras. Confirma-se a dolorosa regra da precária conduta dos homens: o dia do benefício é a véspera da ingratidão. Não importa. Fizemos. Faríamos de novo. A paz da família brasileira supera qualquer ressentimento.
“Falamos no Congresso Nacional. Falamos na periferia do Brasil, em cima de caixas de querosene, porque outras tribunas nos eram negadas. Falamos pela imprensa, o rádio e a televisão, arrochados pela censura, velhista e velhaca, que calou para sempre a pena do massacrado Vladimir Herzog. Falamos em lugar e como protesto pelos artistas, pisoteados e amordaçados, como Geraldo Vandré, Chico Buarque de Holanda, Plínio Marcos, Gianfrancesco Guarnieri, Cacilda Becker, como símbolos.
“Nossa legenda teve como aliados a Ordem dos Advogados do Brasil, a Associação Brasileira de Imprensa, a Igreja de D. Hélder Câmara, D. Luciano Mendes, D. Paulo Evaristo Arns, na defesa dos padres que tombaram pelas mãos monstruosas dos grileiros de terras. Defendemos o empresariado nacional contra o saque colonizador. Denunciamos a dívida externa como espoliadora de nossa economia, aviltando-a como mutuária escravizada aos guichês imperialistas dos bancos estrangeiros.
“De nossos quadros, partiu a legião dos estropiados em seus direitos civis e políticos. Os cassados, os encarcerados, os torturados, os exilados, os supliciados, como o emedebista Rubens Paiva, evocação imortal do nojo à ditadura e aos ditadores.
“Dirijo-me agora aos desertores que abandonaram nossa trincheira, na hora incerta e de risco, fugindo para outras candidaturas, tangidos pelo canto de sereia das pesquisas. Ainda é tempo. Tempo de salvarem não a candidatura do PMDB, mas de se salvarem do castigo popular, que tem sido implacável com os traidores do Brasil. Quem não cumpre seus compromissos com o partido, não cumpre seus deveres para com a pátria. O povo sabe disso e pune por isso.
“A pátria não condecora os traidores.
“Por derradeiro, espero que os patriotas ouçam a súplica de um veterano combatente da liberdade, que juntos conquistamos e que separados não podemos perder.
“Não vote para presidente da República nos que, como cúmplices, conspiraram contra a República. Não vote nos reacionários do conservadorismo.
“Querem conservar a podridão da miséria, das desigualdades, da corrupção, dos privilégios.
“Não vote no estourado, no arrebatado, no imprevidente. A Presidência da República exige experiência, coragem e decisão.
“Meu beijo comovido nas crianças e meu abraço comovente nas mulheres do meu Brasil.
“Até logo, homens, mulheres, jovens do Brasil. Vamos nos encontrar nas urnas. Espero em Deus que não nos arrependamos de tanto lutar e esperar por elas.
“Da fé fiz companheira; da esperança, conselheira; do amor, uma canção.”
Era o dia 12 de novembro de 1989. Não é preciso dizer – embora não consigamos deixar de dizer – que o PMDB de hoje tem tanto a ver com o PMDB de Ulysses Guimarães, quanto Jesus Cristo tinha a ver com os vendilhões do templo.
Abaixo, o discurso de encerramento – condensado – de Ulysses na Constituinte, a 5 de outubro de 1988.
C.L.
ULYSSES GUIMARÃES
Dois de fevereiro de 1987: “Ecoam nesta sala as reivindicações das ruas. A Nação quer mudar, a Nação deve mudar, a Nação vai mudar.” São palavras constantes do discurso de posse como Presidente da Assembleia Nacional Constituinte.
Hoje, 5 de outubro de 1988, no que tange à Constituição, a Nação mudou. (Palmas.)
A Constituição mudou na sua elaboração, mudou na definição dos poderes, mudou restaurando a Federação, mudou quando quer mudar o homem em cidadão, e só é cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa. (Palmas.)
Num país de 30.401.000 analfabetos, afrontosos 25% da população, cabe advertir: a cidadania começa com o alfabeto.
Chegamos! Esperamos a Constituição como o vigia espera a aurora.
Não nos desencaminhamos na longa marcha, não nos desmoralizamos capitulando ante pressões aliciadoras e comprometedoras, não desertamos, não caímos no caminho.
A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo. (Palmas.)
A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa, ao admitir a reforma.
Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca.
Traidor da Constituição é traidor da Pátria. (Muito bem! Palmas.)
Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério. (Muito bem! Palmas.)
A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia.
Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o estatuto do homem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. (Muito bem! Palmas prolongadas.)
Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações, principalmente na América Latina. (Palmas.)
Assinalarei algumas marcas da Constituição que passará a comandar esta grande Nação.
A primeira é a coragem. A coragem é a matéria-prima da civilização. Sem ela, o dever e as instituições perecem. Sem a coragem, as demais virtudes sucumbem na hora do perigo. Sem ela, não haveria a cruz, nem os evangelhos.
A Assembleia Nacional Constituinte rompeu contra o establishment, investiu contra a inércia, desafiou tabus. Não ouviu o refrão saudosista do velho do Restelo, no genial canto de Camões. Suportou a ira e perigosa campanha mercenária dos que se atreveram na tentativa de aviltar legisladores em guardas de suas burras abarrotadas com o ouro de seus privilégios e especulações. (Muito bem! Palmas.)
Foi de audácia inovadora a arquitetura da Constituinte, recusando anteprojeto forâneo ou de elaboração interna.
Há, portanto, representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça, de favela, de fábrica, de trabalhadores, de cozinheiros, de menores carentes, de índios, de posseiros, de empresários, de estudantes, de aposentados, de servidores civis e militares, atestando a contemporaneidade e autenticidade social do texto que ora passa a vigorar. Como o caramujo, guardará para sempre o bramido das ondas de sofrimento, esperança e reivindicações de onde proveio. (Palmas.)
O inimigo mortal do homem é a miséria. O estado de direito, consectário da igualdade, não pode conviver com estado de miséria. Mais miserável do que os miseráveis é a sociedade que não acaba com a miséria. (Palmas.)
Tipograficamente é hierarquizada a precedência e a preeminência do homem, colocando-o no umbral da Constituição.
Não lhe bastou, porém, defendê-lo contra os abusos originários do Estado e de outras procedências. Introduziu o homem no Estado, fazendo-o credor de direitos e serviços, cobráveis inclusive com o mandado de injunção.
Tem substância popular e cristã o título que a consagra: “a Constituição cidadã”.(Palmas.)
Vivenciados e originários dos Estados e Municípios, os Constituintes haveriam de ser fiéis à Federação. Exemplarmente o foram. (Palmas.)
No Brasil, desde o Império, o Estado ultraja a geografia. Espantoso despautério: o Estado contra o País, quando o País é a geografia, a base física da Nação, portanto, do Estado.
É elementar: não existe Estado sem país, nem país sem geografia. Esta antinomia é fator de nosso atraso e de muitos de nossos problemas, pois somos um arquipélago social, econômico, ambiental e de costumes, não uma ilha.
A civilização e a grandeza do Brasil percorreram rotas centrífugas e não centrípetas.
Os bandeirantes não ficaram arranhando o litoral como caranguejos, na imagem pitoresca mas exata de Frei Vicente do Salvador. Cavalgaram os rios e marcharam para o oeste e para a História, na conquista de um continente.
Foi também indômita vocação federativa que inspirou o gênio do Presidente Juscelino Kubitschek, (palmas) que plantou Brasília longe do mar, no coração do sertão, como a capital da interiorização e da integração.
A Federação é a unidade na desigualdade, é a coesão pela autonomia das províncias. Comprimidas pelo centralismo, há o perigo de serem empurradas para a secessão.
É a irmandade entre as regiões. Para que não se rompa o elo, as mais prósperas devem colaborar com as menos desenvolvidas. Enquanto houver Norte e Nordeste fracos, não haverá na União Estado forte, pois fraco é o Brasil. (Palmas.)
As necessidades básicas do homem estão nos Estados e nos Municípios. Neles deve estar o dinheiro para atendê-las.
A Federação é a governabilidade. A governabilidade da Nação passa pela governabilidade dos Estados e dos Municípios. (Palmas.)
O desgoverno, filho da penúria de recursos, acende a ira popular, que invade primeiro os paços municipais, arranca as grades dos palácios e acabará chegando à rampa do Palácio do Planalto. (Palmas.)
A Constituição reabilitou a Federação ao alocar recursos ponderáveis às unidades regionais e locais, bem como ao arbitrar competência tributária para lastrear-lhes a independência financeira.
Democracia é a vontade da lei, que é plural e igual para todos, e não a do príncipe, que é unipessoal e desigual para os favorecimentos e os privilégios.
Se a democracia é o governo da lei, não só ao elaborá-la, mas também para cumpri-la, são governo o Executivo e o Legislativo.
É axiomático que muitos têm maior probabilidade de acertar do que um só. O governo associativo e gregário é mais apto do que o solitário. Eis outro imperativo de governabilidade: a coparticipação e a corresponsabilidade.
Nós, os legisladores, ampliamos nossos deveres. Teremos de honrá-los. A Nação repudia a preguiça, a negligência, a inépcia. (Palmas.)
Tem significado de diagnóstico a Constituição ter alargado o exercício da democracia, em participativa além de representativa. É o clarim da soberania popular e direta, tocando no umbral da Constituição, para ordenar o avanço no campo das necessidades sociais.
A moral é o cerne da Pátria. A corrupção é o cupim da República. (Palmas.) República suja pela corrupção impune tomba nas mãos de demagogos, que, a pretexto de salvá-la, a tiranizam.
Não roubar, não deixar roubar, por na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública. (Muito bem! Palmas.)
A exposição panorâmica da lei fundamental que hoje passa a reger a Nação permite conceituá-la, sinoticamente, como a Constituição coragem, a Constituição cidadã, a Constituição federativa, a Constituição representativa e participativa, a Constituição do Governo síntese Executivo-Legislativo, a Constituição fiscalizadora.
Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora. Será luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados. É caminhando que se abrem os caminhos. Ela vai caminhar e abri-los. Será redentor o caminho que penetrar nos bolsões sujos, escuros e ignorados da miséria.
Recorde-se, alvissareiramente, que o Brasil é o quinto país a implantar o instituto moderno da seguridade, com a integração de ações relativas à saúde, à previdência e à assistência social, assim como a universalidade dos benefícios para os que contribuam ou não, além de beneficiar 11 milhões de aposentados, espoliados em seus proventos.(Palmas.)
Agora conversemos pela última vez, companheiras e companheiros constituintes.
A atuação das mulheres nesta Casa foi de tal teor (palmas prolongadas), que, pela edificante força do exemplo, aumentará a representação feminina nas futuras eleições.
Quanto a mim, cumpriu-se o magistério do filósofo: o segredo da felicidade é fazer do seu dever o seu prazer. (Palmas.)
Todos os dias, meus amigos constituintes, quando divisava, na chegada ao Congresso, a concha côncava da Câmara rogando as bênçãos do céu, e a convexa do Senado ouvindo as súplicas da terra, (palmas) a alegria inundava meu coração. Ver o Congresso era como ver a aurora, o mar, o canto do rio, ouvir os passarinhos.
Sentei-me ininterruptamente 9 mil horas nesta cadeira, em 320 sessões, gerando até interpretações divertidas pela não-saída para lugares biologicamente exigíveis. (Risos. Palmas.)
Somadas as das sessões, foram 17 horas diárias de labor, também no gabinete e na residência, incluídos sábados, domingos e feriados.
Político, sou caçador de nuvens. Já fui caçado por tempestades. (Palmas.) Uma delas, benfazeja, me colocou no topo desta montanha de sonho e de glória. Tive mais do que pedi, cheguei mais longe do que mereço. (Não apoiado.) Que o bem que os Constituintes me fizeram frutifique em paz, êxito e alegria para cada um deles.
Adeus, meus irmãos. É despedida definitiva, sem o desejo de retorno.
Nosso desejo é o da Nação: que este Plenário não abrigue outra Assembleia Nacional Constituinte. (Palmas prolongadas.) Porque, antes da Constituinte, a ditadura já teria trancado as portas desta Casa.
Autoridades, Constituintes, senhoras e senhores,
A sociedade sempre acaba vencendo, mesmo ante a inércia ou antagonismo do Estado.
O Estado era Tordesilhas. Rebelada, a sociedade empurrou as fronteiras do Brasil, criando uma das maiores geografias do Universo.
O Estado, encarnado na metrópole, resignara-se ante a invasão holandesa no Nordeste. A sociedade restaurou nossa integridade territorial com a insurreição nativa de Tabocas e Guararapes, (palmas) sob a liderança de André Vidal de Negreiros, Felipe Camarão e João Fernandes Vieira, que cunhou a frase da preeminência da sociedade sobre o Estado: “Desobedecer a El-Rei, para servir a El-Rei”. (Muito bem!)
O Estado capitulou na entrega do Acre, a sociedade retomou-o com as foices, os machados e os punhos de Plácido de Castro e dos seus seringueiros. (Palmas.)
O Estado autoritário prendeu e exilou. A sociedade, com Teotônio Vilela, pela anistia, libertou e repatriou. (Palmas.)
A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram. (Muito bem! Palmas prolongadas.)
Foi a sociedade, mobilizada nos colossais comícios das Diretas-já, que, pela transição e pela mudança, derrotou o Estado usurpador.
Termino com as palavras com que comecei esta fala: a Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar.
A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança.
Que a promulgação seja nosso grito:
– Mudar para vencer!
Muda, Brasil!
(Muito bem! Muito bem! Palmas prolongadas.)