Em 25 de janeiro de 2019, o rompimento da Barragem I da Mina Córrego do Feijão, na cidade de Brumadinho, em Minas Gerais, provocou um verdadeiro tsunami de lama de rejeitos de minério que devastou toda a região. A barragem pertencia à mineradora Vale, como passou a ser chamada a Companhia Vale do Rio Doce, após a sua privatização em 1997.
259 pessoas morreram e 11 ainda permanecem desaparecidas, a maioria deles trabalhadores da mina e funcionários da Vale, que estavam em um refeitório localizado poucos metros abaixo da barragem.
Após um ano, executivos da Vale gastam milhões de reais tentando convencer que o que ocorreu foi uma tragédia que não poderia ser evitada. Entretanto, as provas coletadas pela Polícia Federal, a Polícia Civil de Minas Gerais e o Ministério Público de Minas Gerais demonstram o crime premeditado que foi cometido pela Vale em Brumadinho.
Risco de rompimento 20 vezes maior
O laudo elaborado por peritos criminais da Polícia Federal (PF) em Minas Gerais demonstra que a Barragem I apresentava risco de rompimento 20 vezes maior do que o limite considerado aceitável internacionalmente. Segundo os peritos da PF, os relatórios apresentados pela Vale, que eram assinados pela empresa de consultoria alemã Tüv Süd eram apresentados com “informações inverídicas”.
Segundo a perícia, os engenheiros da Tüv Süd falsificaram um estudo de 2015 que seria utilizado como referência.
“A empresa TÜV SÜD, para oferecer um embasamento técnico para justificar suas conclusões sobre a estabilidade da Barragem I, com FS mínimo calculado de 1,09 (um vírgula zero nove), apresentou uma informação tecnicamente inverídica sobre um FS de limite mínimo ou de aceitação de 1,05 (um vírgula zero cinco), atribuindo-o ao artigo de Ben Leshchinsky e Spencer Ambauen (2015), sem que esse critério de aceitação constasse de tal publicação”.
Os peritos apontam ainda que a Vale possuía conhecimento da falsificação e portanto, agiu em conluio com a Tüv Süd:
“Toda essa situação não era ignorada pela VALE S.A. que, conforme conteúdo de diversos documentos técnicos, produzidos por seus consultores contratados, estava ciente da necessidade de se atingir o FS de limite mínimo ou de aceitação de 1,3 (um vírgula três), bem como acerca de valores de probabilidade de risco anual de falha serem inaceitáveis perante os parâmetros internacionais de aceitabilidade, face ao número estimado de perda de vidas humanas”.
CENÁRIOS
A perícia da Polícia Federal apurou três cenários diferentes do que poderia acontecer com a barragem de Brumadinho, e em todos eles, as chances de rompimento da barragem a montante ultrapassam 90%. Em um dos cenários, a chance de rompimento chega em 100%.
A barragem se rompeu quatro meses após a empresa de consultoria alemã Tüv Süd atestar a sua estabilidade. Os peritos afirmam que como consequência do empenho da Vale em não trazer a verdade na ‘Declaração de Condição de Estabilidade’, os órgãos competentes não puderam ser informados sobre a real situação da barragem.
E mesmo que não fosse possível evitar o rompimento e a tsunami de lama, isso seria suficiente para “reduzir, principalmente, a perda de uma quantidade tão expressiva de vidas humanas, além de reduzir danos materiais e financeiros”.
“A Vale promoveu uma ditadura corporativa“
No dia 21 de janeiro, o Ministério Público de Minas Gerais (MP-MG) denunciou 16 funcionários da Vale e da Tüv Süd por homicídio duplamente qualificado, levando em conta que as vítimas não tiveram possibilidade de defender suas vidas, e crimes ambientais, dentre eles o então presidente da Vale, Fabio Schvartsman.
“A Vale promoveu ditadura corporativa na medida em que impôs à sociedade e ao poder público suas decisões, com as informações que detinham, mas que ocultavam”, afirmou o promotor de Justiça William Garcia Pinto Coelho, do MP-MG, durante a coletiva de imprensa em que a denúncia foi apresentada.
Para o MP, as duas empresas sabiam da situação crítica da barragem que se rompeu, mas não compartilharam as informações com o Poder Público, com a sociedade e assumiram os riscos. Segundo Coelho, a Vale tinha uma lista sigilosa e interna de dez barragens em “situação inaceitável de segurança”.
A estrutura que se rompeu em Brumadinho era uma delas. A lista fazia referência ainda a barragens que, após a tragédia, tiveram seu nível de emergência elevado e demandaram a evacuação de comunidades. Tais estruturas são as mesmas que aparecem em outros documentos classificadas como “em zona de atenção”.
Segundo apontou o promotor, o crime em Brumadinho não ocorreu no dia 25 de janeiro de 2019, mas em novembro de 2017, quando se iniciou o conluio para ocultar as reais condições da barragem.
“Baseava-se na retaliação e recompensa. As empresas que não aceitavam entrar no conluio e demonstravam eventualmente discordância com os objetivos corporativos do trabalho eram retaliadas e afastadas dos contratos. Em sentido contrário, a Tüv Süd cedeu ao ser pressionada pela Vale. Ela optou deliberadamente por adentrar no conluio ilícito e foi recompensada por isso. A Tüv Süd passou a adotar um protagonismo na gestão de riscos daquela barragem, numa posição contraditória à independência e autonomia que deveria se dar numa auditoria”, explicou Coelho.
SCHVARTSMAN
De acordo com a denúncia, Fábio Schvartsman teve participação no crime ao canalizar esforços corporativos para atingir uma das metas de sua gestão: alcançar a liderança mundial em valor de mercado entre as empresas do setor. Segundo o MP-MG, sua atuação foi determinante no crime.
“O presidente se manifestava em público, incluindo aí eventos voltados para acionistas e investidores, nos quais afirmava que as barragens estavam em condição impecável de segurança, quando internamente ele já sabia que isso não era verdade”, acrescentou o promotor.
O MP-MG ainda descobriu que a Vale calculava o valor de vidas perdidas em ‘eventuais desastres’, como uma medida de avaliar o risco do empreendimento. A Vale chegava ao ponto de calcular o valor de um colchão de uma cama de casal para as classes C, D e E.
A denúncia cita que um estudo interno da Vale chegou a calcular que o valor de uma vida humana seria US$ 2,56 milhões. Pelas práticas adotadas pela empresa, fica claro que para ela esse valor era válido, considerando sua ganância e os lucros que empreendimentos como a Mina Córrego do Feijão trazem. Mesmo que para isso, ela mate, deliberadamente 270 pessoas de uma única vez.
A VERDADE
O MP-MG e a Polícia Civil questionaram o motivo de Schvartsman ignorar um e-mail que alertava sobre os riscos das barragens da empresa, duas semanas antes de Brumadinho submergir na lama.
Diante da mensagem, que foi enviada anonimamente à presidência da empresa, a reação de Schvartsman foi a de caçar o remetente. Em email enviado a outros membros da diretoria, o presidente disse que era necessário retirar este “cancro de dentro da corporação.
Abaixo, o trecho do interrogatório em que Schvartsman confessa ter ignorado completamente o alerta:
Delegado – Tem um e-mail de 9 de janeiro de 2019 que tem um assunto chamado ‘A verdade’
Schvartsman – Eu acabei de recordar dele
O delegado então lê um trecho do e-mail para o presidente da Vale durante o depoimento – Nossas instalações são carentes de investimentos correntes para adequação mínima. Estamos com recursos humanos deficitários e mal remunerados nas áreas de operação, manutenção e engenharia, plantas incendiando, equipamentos quebrando, barragens no limite. Nos próximos anos precisamos resgatar isso para que as condições mínimas de operação segura para as pessoas e instalações sejam garantidas. Não há como reduzir mais o custo na área operacional, isso precisa e deve ser feito no corporativo.
Delegado – Como foi tratada, por exemplo, essa informação?
Schvartsman – Essa informação é uma informação absolutamente inespecífica. Atira em todas as direções. Eu tenho em minha posse informações que são totalmente contraditórias com tudo que ele está dizendo.
Delegado – A partir daí, o que aconteceu? Qual a providência que o senhor tomou?
Schvartsman – Na verdade eu tenho que descobrir quem era esse camarada.
Delegado – O senhor mandou uma mensagem, em 13 de janeiro, com o seguinte conteúdo: “Gostaria de descobrir quem é esse camarada que acha que pode escrever essa montanha de desaforos impunemente. O sujeito é um cancro (câncer) em nossa empresa e pode fazer mal a toda organização. Grato” e na seqüência o senhor também afirma: “Nós esgotamos todos os caminhos para identificar o camarada? Inclusive todos os recursos de TI?”.
Qual o objetivo dessa movimentação?
Schvartsman – O objetivo era identificar quem era uma pessoa que ia contra uma diretriz que eu acreditava que era fundamental para que houvesse mais fluidez de informações dentro da companhia.
Delegado – Ele menciona, no dia 9 de janeiro, que tinham barragens no limite.
Schvartsman – O que significa barragens no limite?
Delegado – Eu que lhe pergunto, eu não sou diretor, não sou presidente de uma empresa. O senhor pesquisou o que é uma barragem no limite?
Schvartsman – Barragem no limite significa o seguinte: As barragens que a Vale têm em Minas Gerais estavam operando chegando próxima ao seu limite de capacidade.
Delegado – O senhor apurou isso?
Schvartsman – Não, mas eu sabia disso.
Delegado – O que me parece curioso é que no dia 9 de janeiro tem uma representação em que tem diversas informações, consta lá que existem barragens no limite. Pouco dias depois rompe uma barragem com toda fúria que todos nós já conhecemos.
Schvartsman – É que isso não foi visto como uma denúncia. O normal é que todas as denúncias sejam apuradas. O sigilo deve ser mantido, mas aqui era inespecífico. Portanto, não havia denúncia.
Executivos comemoram valor de mercado
Um ano depois da tragédia de Brumadinho, o valor de mercado da Vale está próximo ao que era antes do desastre. A empresa, que valia R$ 287,8 bilhões no dia do rompimento da barragem, despencou para R$ 215,4 bilhões em 11 de fevereiro, ponto mais baixo da cotação em 2019. Na última cotação, em 24 de janeiro de 2020, o valor ficou em R$ 275,9 bilhões.
A busca desenfreada por lucros dizimou Brumadinho. Foi com este objetivo que a Vale assumiu a responsabilidade da morte de 270 pessoas.
O que importa é ganhar dinheiro. Este foi – e continua sendo – o pensamento da corporação privada que atua numa área que deveria ser de monopólio estatal.
Desde que foi fundada por Getúlio Vargas, em 1942, nenhuma tragédia como a de Brumadinho, ou a de Mariana, foi registrada.
Em 1997, a Companhia Vale do Rio Doce foi privatizada “na bacia das almas” pelo governo do Fernando Henrique Cardoso. A privatização demonstra com clareza as consequências da entrega dos recursos naturais e do patrimônio do povo à sanha de meia dúzia de “executivos” do mercado, que foram capazes de matar 270 brasileiros.
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