O livro China: o socialismo do século XXI (Boitempo/FMG, 2021), de Elias Jabbour e Alberto Gabriele, é a história de uma luta – não apenas uma obra de teoria geral sobre o socialismo e uma descrição do socialismo chinês (ou “com características chinesas”), mas a crônica da acirrada luta que está, inevitavelmente, implicada nestes temas, ontem e hoje.
A formação econômico-social chinesa – isto é, a China – é composta por vários modos de produção, desde o modo de produção socialista até modos de produção pré-capitalistas (por exemplo, a pequena produção mercantil camponesa), passando pelo modo de produção capitalista.
Não entramos, aqui, porque não é necessário para esta resenha, no grau de abstração contido no conceito de modo de produção. No mundo real – isto é, na vida – esses modos de produção encontram-se em luta. O que se realiza através da vida concreta dos seres humanos. É essa expressão da luta de classes que os autores revelam na China e em sua história recente.
Por exemplo:
“Essa participação de atores capitalistas no financiamento dos GCEE [Grandes Conglomerados Empresariais Estatais], e também nas finanças dos governos locais, cria grandes contradições políticas, dentre as quais a crescente pressão interna pela liberalização da conta de capitais, o que, a nosso ver, seria um passo razoável no sentido da quebra da soberania financeira chinesa e, mais, do fortalecimento político de uma forte classe capitalista interna em oposição aos interesses gerais da sociedade chinesa – reproduzindo contradições muito presentes em países como o Brasil, onde há um alto grau de financeirização. É dessa contradição que depende muito o futuro do socialismo na China” (pp. 199-200, grifo nosso).
Isto, quanto ao futuro. Quanto ao passado, escrevem Jabbour e Gabrieli sobre a reforma nas empresas estatais:
“Houve um verdadeiro choque entre diferentes modos de produção em uma mesma formação econômico-social, colocando em xeque a própria viabilidade do socialismo no país. Se o setor estatal tivesse ‘morte súbita’, a restauração capitalista se imporia” (p. 190, grifo nosso).
Entretanto, o extraordinário na China foi a construção de um setor socialista – o representante concreto do modo de produção socialista – que subordina os demais modos de produção, inclusive o capitalismo.
Este setor socialista tem como pilares:
1) A propriedade estatal da terra (“… a principal característica da agricultura chinesa não é a produção orientada para o mercado, mas sim a predominância da propriedade estatal da terra” – p. 159).
2) As empresas rurais (estatais, cooperativas e privadas), formadas desde a instituição dos contratos de responsabilidade com as famílias camponesas, em um esforço para substituir a pequena produção mercantil por empreendimentos mais produtivos (p. 164).
3) Os Grandes Conglomerados Empresariais Estatais (GCEE), principal base industrial da China, “coração da formação econômico-social” chinesa.
4) Um setor financeiro estatal poderoso, que tornou o país independente da financeirização imperialista, com “restrição total ao livre fluxo de capitais” (p. 198). Como dizem os autores: “Dados demonstram que 95% do endividamento chinês é em moeda nacional. (…) a soberania monetária chinesa talvez seja a maior capacidade estatal construída ao longo de quatro décadas de desenvolvimento” (p. 205, grifos nossos).
5) Do ponto de vista institucional, a ação da Comissão de Supervisão e Administração de Ativos do Estado (sigla em inglês: Sasac) como gerente (“manager”) do setor socialista.
6) Um setor de comércio exterior como “instituição pública, planificada e de Estado” (p. 212).
Há outro elemento – este tão decisivo que preferimos colocá-lo à parte, porque está acima dos anteriores: a direção do Partido Comunista da China (PCCh) sobre a economia e o Estado chinês.
Jabbour e Gabriele delineiam um setor socialista orientado para o mercado, que leva em consideração e atua de acordo com a lei do valor. Aliás, é inteiramente correto considerar que a lei do valor não é própria somente do capitalismo. A questão, aqui, é a existência da mercadoria – inclusive sua persistência (ou não) no socialismo.
Não é uma questão nova na teoria marxista, de forma explícita ou subjacente, desde a Crítica do Programa de Gotha (1875), do próprio Marx, até Problemas Econômicos do Socialismo na URSS (1952), de Stalin, passando por alguns trechos do Anti-Dühring (1878), de Engels, e O Estado e a Revolução (1918), de Lenin. Por fim, esse também é o fundo dos artigos de Che Guevara reunidos em Temas Economicos (La Habana, 1988) e as suas anotações ao Manual de Economia Política da Academia de Ciências da URSS (v. HP 08/10/2020, Apontamentos de Che sobre um livro famoso).
Os chineses construíram um setor socialista orientado para o mercado. Mais do que isso, utilizaram o capitalismo como modo de produção auxiliar do socialismo. Apesar da existência de um setor privado, razoavelmente grande, não impedir que este sirva de apoio ao setor estatal, socialista, da economia, claro que isso implicou – e implica –, também, numa luta entre os dois modos de produção (além de outros).
O que tem uma consequência, do ponto de vista da lei do valor, que não escapa aos autores:
“… a própria existência, hoje, de um setor socialista na economia sob a forma de GCEE e de um sistema financeiro nacional estatal – além de uma série de formas de controle direto e indireto do Estado sobre a economia – é um instrumento que restringe potencialmente a ação da lei do valor” (p. 180, grifo nosso).
Aqui, chamamos a atenção do leitor para o advérbio “potencialmente”. Em suma, apesar da economia chinesa estar submetida à lei do valor e estar orientada para o mercado, o setor socialista é um limite (pelo menos, “potencial”) à sua livre ação.
Nesse sentido, esse limite, ainda que sob a luta a que nos referimos, vem se consolidando nos últimos anos:
“Orientada para o mercado, anabolizada por uma soberania monetária única, a atual conjuntura das relações intrassetoriais da economia chinesa é comumente referida como um organismo no qual o setor estatal avança e o setor privado recua” (p. 193, grifo nosso).
No núcleo do setor socialista, não apenas o setor privado, mas o próprio mercado, apontam os autores, é um instrumento auxiliar:
“Nas grandes empresas estatais, priorizou-se a utilização do mercado como instrumento auxiliar , e não como o principal” (p. 218).
O livro, porém, não esconde, honestamente, os problemas e vicissitudes, hoje em processo de resolução. Por exemplo, se o que citamos acima foi verdade – e é verdade – para as grandes empresas estatais, foi diferente nas pequenas e médias empresas do Estado:
“… houve muitas influências neoliberais no processo de privatização em massa de pequenas e médias empresas estatais chinesas na década de 1990” (p. 218).
Entretanto, não houve, na China, após as reformas de 1978 – e após as mudanças instituídas em 1992 – nada parecido com a privatização na antiga URSS e no Leste europeu, que levaram à morte milhões de pessoas e à ruína daquelas economias. A transição que houve na China foi alicerçada naquilo que fora já construído no período anterior e “pode ser considerado uma forma oposta aos programas de privatização em massa que ocorreram nos países do antigo bloco socialista” (p. 183).
Acrescentemos aqui, de passagem, que o espetacular crescimento chinês não se deveu ao capital estrangeiro, nem sob a forma de IEC (Investimento Estrangeiro em Carteira – ou seja, dinheiro estrangeiro no mercado financeiro) ou IED (Investimento Estrangeiro Direto – ou seja, em empresas).
“Não se conclua, porém, que a China cresceu com base na política de crescimento com endividamento externo. Entre 1980 e 2018, o país só apresentou déficit em conta corrente (ou seja, usou sua poupança externa) em três anos. A China não cometeu o erro de tentar crescer com poupança externa, assim evitou que a taxa de câmbio se apreciasse e as empresas nacionais perdessem competitividade” (p. 145, grifo nosso).
Nós, aqui no Brasil, conhecemos muito bem esse erro e suas consequências…
Na China, pelo contrário, houve “um processo vigoroso de substituição de importações e de forte empuxe das exportações” (idem).
O que é rigorosamente verdadeiro e coerente com o “fortalecimento da demanda doméstica” (p. 150, grifo nosso) a partir de 1997. Correlacionado com isso, e para frisar a condição de um preço da economia e de um termômetro – que, no Brasil, são martelados pela reação na sua tentativa de nos manter em uma camisa de força:
“… os juros reais, reagindo ao aumento de oferta de moeda e refletindo a estratégia de mudança do drive de investimento para consumo, caíram de 7,2% a.a. em média em 1997-1999 para 2,1% a.a. em 2000-2018. A inflação, medida pelo índice de preços ao consumidor, após o repique em 1993-1995 com taxa média de 18,6% a.a. mantém-se em patamares baixos desde o fim da década de 1990, com média de 1,9% em 1997-2017” (p. 146).
Jabbour e Gabrieli definem a economia chinesa como “socialismo de mercado”, mas delineiam uma fase superior do socialismo de mercado, a qual chamam “nova economia do projetamento”, em alusão ao colocado por Ignácio Rangel em seu livro Elementos de Economia do Projetamento.
Porém, em que condições existe o socialismo de mercado?
Sucintamente, numa situação em que o modo de produção capitalista ainda é dominante mundialmente; em que as exportações chinesas têm que ser comerciadas no mercado capitalista; em que, portanto, a lei do valor e o mercado subsistem em geral.
Os autores trabalham com o conceito de “metamodo de produção”, sendo este algo que vai além do capitalismo e do socialismo – mas impõe um limite ao modo de produção socialista dentro de uma determinada formação econômico-social (como a China), entre eles a lei do valor e o mercado.
Esta situação, no entanto, não é estática nem eterna. No seu delineamento de um estágio superior do socialismo de mercado, a “nova economia do projetamento”, é dito:
“Neste século, as políticas industriais chinesas tornam-se mais proativas no que concerne à produção de inovações endógenas, buscando constantemente o estado da arte em matéria de desenvolvimento técnico. É essa natureza proativa que abre espaço para o projeto como provável sucessor do mercado enquanto núcleo do funcionamento da economia” (p. 238, grifo nosso).
Ou seja, ainda que mantida a orientação para o mercado, este torna-se secundário, em relação ao projeto, como motor econômico.
Mais adiante:
“A face do organismo econômico chinês avança a passos largos para patamares superiores de produção e produtividade. A nosso ver, mudam também as problemáticas da planificação, que deve se adequar a uma economia centrada no projeto, e não mais no mercado em si” (p. 239, grifo nosso).
Não se trata, bem entendido, de uma negação do mercado. Na opinião dos autores, “respostas realistas [para a construção do socialismo], dadas as características do metamodo de produção, passam pela possibilidade ou não de a planificação ser compatível com o mercado”, considerando uma “lei de funcionamento das formações econômico-sociais de orientação socialista a impossibilidade de superar a lei do valor sob o socialismo” (p. 248, grifo nosso).
Trata-se, colocada de modo geral, de uma discussão (v., por exemplo, Claudio Campos, A História Continua, 2ª ed., Fundação Instituto Claudio Campos, 2015, pp. 57 e segs.).
Mas essa discussão não pode fazer com que a construção do socialismo na China, com as características descritas por Jabbour e Gabriele, sejam ignoradas, o que seria, aliás, uma aberração.
É verdade, os soviéticos, sob cerco e, inclusive, com a invasão mais brutal e sangrenta que o mundo já conhecera, não tiveram a mesma oportunidade que os chineses.
No início da década de 50, Stalin, no livro que citamos acima, constatou que o mercado e a lei do valor existiam na URSS – ainda que sob restrição do setor estatal da economia e da planificação.
Mas a URSS jamais pôde existir dentro do mesmo mercado que os EUA, exceto tangencialmente. Foi obrigada a resistir ao cerco imperialista – a vários cercos imperialistas – em oposição completa à esfera de influência econômica e política dos países capitalistas centrais.
Assim, as condições eram outras. Mas não apenas as condições, pois a capacidade do PCCh de deduzir outra política dessas outras condições não foi algo espontâneo nem demandou pouco esforço.
Por fim, os sacrifícios que isso exigiu dos chineses. Jabbour e Gabrieli se referem a isso em vários trechos de seu livro, a começar pelo desmonte das comunas rurais e da respectiva estrutura de assistência social.
Nas cidades, o processo teve, por esse lado, ainda maior dificuldade:
“As empresas estatais passaram a se ocupar única e exclusivamente de sua agenda nuclear – o que na prática significou o fim do sistema danwei, isto é, a concentração de todos os encargos sociais nas empresas. Uma década de aprofundamento de desigualdades entre as diferentes regiões, e entre as classes sociais, teve custos sociais e políticos imensos e apenas recentemente começou a ser revertida” (p. 252, grifo nosso).
Porém, as reformas econômicas “fizeram o setor privado crescer de forma quantitativa, enquanto a participação do Estado cresceu de forma qualitativa” (p. 253).
Do ponto de vista da política econômica, isto significa que o desenvolvimento colossal do setor produtivo chinês permite agora – e já vem permitindo – uma transferência de recursos para o setor improdutivo (saúde, educação, previdência social, em suma, o bem-estar geral da população).
Esta é uma questão que já fora sublinhada pelo Che em sua conferência no Uruguai (v. HP 08/10/2021, Che: “o desenvolvimento é dado pela industrialização”).
A primeira parte do livro de Jabbour e Gabriele é uma teorização geral sobre o socialismo, diga-se de passagem, muito interessante.
Pelas limitações de uma resenha para jornal, focamos na segunda parte, que é a análise do processo chinês.
Apesar disso, tocamos em algumas questões – como a lei do valor, a possibilidade de utilização do mercado na construção do socialismo, a existência do capitalismo mesmo sob o socialismo, com a constituição de uma formação econômico-social complexa.
Deixamos de lado as considerações dos autores sobre o modo de produção comunista, embora tenhamos uma opinião sobre o assunto.
Mas essa opinião não é essencial para a leitura do livro de Jabbour e Gabrieli – nem a polêmica em torno do tema nos parece importante no contexto da obra.
Além disso, abordar a questão exigiria muito mais do que o tamanho e as pretensões deste artigo…
Preferimos, portanto, recomendar ao leitor a fruição prazerosa (existe fruição que não seja prazerosa?) do livro.
Até porque, além de prazerosa, ela será muito útil a quem pretenda conhecer a China, o socialismo atual – e o mundo de hoje.
CARLOS LOPES