CARLOS LOPES
A série “O Caminho dos Tormentos”, que o leitor poderá ver no Netflix, foi realizada pelo diretor Konstantin Khudyakov, em homenagem aos 100 anos na Revolução Russa, e lançada em novembro de 2017.
Khudyakov, hoje “cineasta laureado da Federação Russa”, é um veterano do cinema soviético: completa, em junho, 80 anos, com extensa filmografia – como ator (o primeiro filme em que atuou, a comédia “Crianças adultas”, do Mosfilm, é de 1961), roteirista, e, sobretudo, diretor (seu primeiro trabalho de direção, “Uma vida tão curta e tão longa”, é de 1971).
A produção de “O Caminho dos Tormentos”, possível devido ao apoio financeiro do Ministério da Cultura da Rússia, é da РВС (mais conhecida, fora da Rússia, pelas iniciais em inglês, RWS: Russian World Studios), uma das maiores produtoras privadas de cinema e televisão daquele país, e foi levada ao ar pela rede NTV, que pertence à estatal Gazprom, a maior empresa russa.
Konstantin Khudyakov é um excelente diretor de atores – mais ou menos no nível de um Bergman – o que é evidente pelos desempenhos de Anna Chipovskaya e Yulia Snigir, as atrizes que fazem as duas irmãs que são as personagens centrais da história (Daria e Katia), mas de todo o elenco, em especial, entre os homens, Anton Shagin, no papel do poeta decadente Alexey Bessonov.
E poderíamos, também, ressaltar que os figurinos e a reconstrução de época são minuciosos.
Mas, como essa não é nossa especialidade, queremos ressaltar outro aspecto – que implica, diretamente, na coragem implícita na escolha do diretor.
“O Caminho dos Tormentos” é uma trilogia, escrita por Alexei Tolstoy.
A série é uma versão para a TV dessa trilogia.
Alexei Tolstoy – como seu parente distante, o grande Tolstoy, aquele de “Guerra e Paz” e “Ana Karenina” – era realmente conde, título que lhe deixou o pai, o conde Nikolai Alexandrovich Tolstoy (a propósito, sua mãe, Alexandra Turguenieva, era parente de outro grande escritor russo, Ivã Turgueniev).
Apesar de conde, Alexei recebeu, por sua obra, três Prêmios Stalin: em 1941 (por “Pedro, o Grande”), em 1943 (exatamente por “O Caminho dos Tormentos”) e em 1946 (este último, póstumo, pela peça “Ivã, o Terrível”, pois o escritor faleceu, depois de vasta obra literária e quatro esposas, em fevereiro de 1945, aos 62 anos).
Alexei chegou a emigrar, após a Revolução Russa, e juntar-se aos “brancos”, aos contrarrevolucionários (uma experiência que, em “O Caminho dos Tormentos”, é condensada no personagem Vadim Roschin, encarnado, na série, por Pavel Trubiner).
A partir de 1923, Alexei Tolstoy inicia sua volta à Rússia (um retrato muito interessante dele durante a emigração foi traçado por Ilya Ehrenburg em suas memórias – existe uma edição em português, publicada pela Difel).
A trilogia “O Caminho dos Tormentos” foi traduzida para o português e publicada pela Civilização Brasileira, na década de 60 do século passado.
Lembro, na época, de uma certa comoção entre setores literários influenciados pelo trotsquismo – a obra, um painel da vida russa desde antes da Revolução, com o centro na Guerra Civil, não era leniente para com Trotsky -, algo que não consegui, adolescente que era, entender.
Mas entendi alguns anos depois, quando, sob a ditadura, conversei com um sujeito de uma organização que não se dizia trotsquista: “esse livro”, disse ele, “é uma ode ao stalinismo”.
Imagino o que esse sujeito diria se tivesse lido “Pão”, publicado por Alexei Tolstoy em 1937, que tem como pano de fundo a batalha de Tsarytsin (a futura Stalingrado), uma batalha realmente ganha por Stalin, durante a Guerra Civil.
Hoje, relendo alguns trechos de “O Caminho dos Tormentos”, é evidente que o conde (alguns o chamaram “camarada conde”, outros, “o conde vermelho”) tinha uma posição bastante definida sobre as lutas políticas na URSS.
O que fez com que muitos admiradores de Alexei Tolstoy, ao correr dos anos – e à medida em que eram curtidos em molho revisionista – se transformassem, essencialmente, em detratores, inclusive seu antes entusiasmado tradutor para o português, Miguel Urbano Rodrigues.
Tais são as metamorfoses do anti-stalinismo de beata carpideira.
“O Caminho dos Tormentos” é notável, aliás, pelo motivo oposto: como indivíduos nascidos em outra sociedade – nas classes privilegiadas de outra sociedade – podem se adaptar (ou não) à nova sociedade, à sociedade socialista.
Essa adaptação (ou não) é o “caminho dos tormentos” – mas o final do livro é uma demonstração de que esses tormentos podem ser deixados para trás, podem ser ultrapassados.
Alexei Tolstoy não é um grande escritor, no sentido em que seu distante parente, Lev Tolstoy, era um grande escritor – ou no sentido em que o antepassado de sua mãe, Ivã Turgueniev, era um grande escritor.
Mas isso não tem a menor importância. A maior parte dos escritores não são grandes escritores, ou seja, não são gênios. Basta que sejam bons escritores. E não é nada fácil ser um bom escritor. Aliás, é até mais difícil do que ser um “grande” escritor, pois exige mais esforço e mais estudo (se o leitor quiser tomar essa última frase por brincadeira, não ficaremos ofendidos).
Alexei Tolstoy foi um bom escritor – e sua participação, com seu amigo Máximo Gorky, na batalha do realismo socialista, deixou uma influência notável na literatura russa posterior.
É verdade que para encaixar algumas de suas tendências românticas, no caso de “O Caminho dos Tormentos”, Alexei falou de um “realismo monumental”.
Foi o que ele pôde arrumar… Não deixa de ser um modo de apresentar as coisas – e um esforço em direção ao realismo.
Além disso, mais importante, ele sabia escrever. Veja-se, por exemplo, como ele descreve Bessonov, o poeta decadente:
“… observou abruptamente que não existia arte, que era tudo falso, o velho truque do faquir que faz um macaco subir em uma corda e desaparecer no ar. Não existe poesia. Tudo foi extinto há muito tempo – pessoas, arte, tudo. A Rússia é mera miudeza, com um bando de corvos pairando sobre ela para banquetear-se. E todos os que escrevem poesia vão, um dia, encontrar-se no inferno.”
Quanto às outras obras mais conhecidas de Alexei Tolstoy, é forçoso reconhecer que “Pedro, o Grande” (o título russo é apenas “Pedro I”) tem um grave defeito: a obra nunca foi terminada. Os dois volumes que apareceram vão até a reconquista de Narva, tomada quatro anos antes (1700), pelos suecos.
Mas Alexei nunca terminou o livro.
“Ivã, o Terrível” – o romance, não a peça – é um equívoco do ponto de vista histórico e político. Seu herói, Nikita Serebryany, é um boiardo, um senhor feudal que se opõe ao czar Ivã IV, cuja grande obra foi, exatamente, a de unificar a Rússia, dividida pelos boiardos.
Apesar disso, se esquecermos esses problemas, trata-se de um tremendo romance de aventuras – afinal, “Os Três Mosqueteiros” também é, do ponto de vista histórico, uma catástrofe, e nem por saber disso nosso prazer é menor ao ler a obra de Dumas.
Não conhecemos os livros de ficção-científica de Alexei Tolstoy – mas esse é um crédito a mais: ele foi o fundador da literatura de ficção-científica russa, iniciada com seu livro “Aelita”, de 1923, geralmente traduzido como “Expedição a Marte”.
Ainda sobre o escritor, é preciso registrar seu trabalho, durante a II Guerra, na apuração e denúncia do genocídio nazista (ele fez parte da Comissão de Inquérito das Atrocidades dos Invasores Fascistas, e foi um dos autores de seu relatório final; esteve, também, presente ao processo de Krasnodar, que condenou 11 colaboracionistas, oito deles à morte por enforcamento, em 1943).
Por isso, Alexei Tolstoy foi condecorado com a Ordem da Bandeira Vermelha (1943), e, postumamente, com a medalha “Pelo valente trabalho na Grande Guerra Patriótica de 1941-1945”.
Fazer uma série de TV a partir de “O Caminho dos Tormentos” é uma façanha em qualquer época.
Mais ainda numa época em que a obra original tornou-se alvo dos que, total ou parcialmente, desistiram de suas convicções da juventude.
Porém, existe algo a saudar nesse rejuvenescimento da cultura soviética – pois se trata disso – na Rússia atual. Exatamente porque há convicções que não esmaeceram com o tempo – ou, mais exatamente, há pessoas que não esmaeceram com o tempo.
Que alegria ler uma crítica séria. Obrigada.
Gostei muito dessa novela histórica embora desconfiasse de critica gratuita ao novo regime instalado na velha e carcomida Russia. O caldeirão do diabo gerado nos dias sangrentos da revolução indicava essa bagunça eterna.
Será, leitor? E os franceses, que fizeram uma revolução em que até hoje aparece gente se queixando do excesso de sangue? Ou os ingleses, que, até antes dos franceses, decapitaram o rei?
Adorei essa serie!! Melhor que muita producao de Hollywood. Historia emocionante e rodeada por fatos reais, atores excelentes, cenario perfeito. nota 10!
Realmente espetacular essa série……….atores fantásticos .
Ótima crítica sobre uma ótima série.
Como em “Trotsky”, essa série esbanja qualidade em fotografia, roteiro, edição, interpretação, direção e trilha sonora.
Obrigado.