A Universidade de São Paulo (USP) anulou o resultado do concurso público para docente de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, no qual a professora Érica Cristina Bispo, doutora em Literatura, havia sido aprovada em primeiro lugar. A decisão, tomada em 26 de março, veio após um recurso judicial apresentado por seis candidatos brancos, que alegaram suspeita de parcialidade da banca e questionaram a idoneidade do processo — mesmo depois de o Ministério Público de São Paulo ter concluído que não houve ato de improbidade nem favorecimento.
Única mulher negra inscrita, Érica relatou ter sido alvo de ataques racistas e desproporcionais. “Eu fui a única candidata preta a me candidatar a fazer esse concurso, e seis candidatos brancos entraram com recurso, alegando, dentre outras coisas, que eu não tinha capacidade para me tornar professora da USP. Eles alegaram que eu tinha um certo favorecimento. Tem um caráter discriminatório. Eu passei por mérito, em primeiro lugar”, declarou nas redes sociais.
O grupo de concorrentes chegou a criar um grupo de WhatsApp para organizar a contestação, segundo um professor que participou do concurso. Ele afirmou ter sido expulso do grupo por se recusar a assinar o recurso, e relatou que os colegas “caçavam minúcias” para tentar deslegitimar a aprovação de Érica, vasculhando suas redes sociais em busca de qualquer pretexto.
Mesmo após o arquivamento do caso pelo MP-SP, a Procuradoria da USP manteve a contestação e defendeu a anulação.
ARGUMENTOS FRÁGEIS
O recurso foi sustentado em seis fotografias públicas de eventos acadêmicos em que Érica aparecia ao lado de duas professoras da banca — encontros em congressos, viagens e seminários de literatura africana. Numa dessas imagens, Érica escreveu a legenda “entre amigos é muito bom”. Para a Procuradoria, isso bastou para sugerir “convivência íntima” e justificar a anulação.
O parecer reconheceu que não havia discrepância de notas, mudanças nas provas nem desempenho inferior da candidata, mas concluiu que “a mera presença das professoras nas reuniões e deliberações do concurso ofende a moralidade administrativa”. O Conselho Universitário seguiu essa orientação: por 59 votos a favor, um contrário e quatro abstenções, anulou todo o processo seletivo.
A Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), que havia homologado o resultado e rejeitado os recursos internos, foi contrariada pela instância superior. “Esse órgão superior, que é o máximo da universidade, anulou o concurso porque considerou que havia indícios de relações de proximidade da candidata aprovada e indicada com pessoas integrantes da banca. Essa conclusão teve embasamento em postagens em redes sociais em que, além de fotos, havia expressões de amizade. O concurso será refeito”, informou a unidade.
No dia 30 de setembro, a USP publicou novo edital para a mesma vaga. O advogado Raphael de Andrade Naves, que defende a professora ao lado de Carlos Barbosa Ribeiro, criticou: “O que torna a situação ainda mais grave é que, enquanto a legalidade de seus atos é questionada na Justiça, a USP publicou o edital para a mesma vaga conquistada pela professora Érica Bispo”.
CERCEAMENTO DE DEFESA
A defesa afirma que houve cerceamento de defesa, uma vez que manifestações técnicas apresentadas dentro do prazo não teriam sido incluídas no julgamento. Mesmo assim, o Conselho deliberou sem considerar esses documentos. Os advogados pediram urgência judicial para reverter o ato, mas o pedido foi negado até o momento.
A repercussão do caso tem crescido entre intelectuais e movimentos acadêmicos, que denunciam racismo institucional e desigualdade estrutural. Diversas entidades, como a Associação de Escritores da Guiné-Bissau e o Congresso Internacional de Literaturas e Culturas Africanas, divulgaram notas em solidariedade à docente. “Nem se precisa revisar de frente para trás o curriculum lattes de Érica Bispo para se confirmar a sabedoria majestosa em suas falas-conferências, palestras, comunicações orais, sempre pautada em uma seriedade exemplar diante de seu legado como profunda estudiosa das epistemologias africanas no Brasil”, afirmou o Congresso em nota.
A deputada Leci Brandão (PCdoB-SP) também manifestou apoio:
“Hoje queremos manifestar total apoio à professora Érica Bispo. Uma mulher negra, doutora em Literatura, aprovada em primeiro lugar para lecionar Literaturas Africanas de Língua Portuguesa na USP. Mesmo com seu desempenho impecável, a universidade anulou sua aprovação após recurso de candidatos que questionaram a sua qualificação. Érica foi a única candidata negra no concurso e cumpriu todas as exigências do edital. Seus méritos foram desconsiderados e sua conquista, deslegitimada por argumentos frágeis. Essa situação mostra que ainda existem barreiras invisíveis que dificultam o acesso de pessoas negras a espaços de ensino e liderança. Nosso compromisso é com a justiça e a valorização do mérito. Não podemos permitir que conquistas legítimas sejam desconsideradas. Érica Bispo representa competência, dedicação e excelência, e seu trabalho merece reconhecimento e respeito.”
EXCELÊNCIA ACADÊMICA IGNORADA
Graduada em Letras pela UFRJ, com doutorado em Literaturas Portuguesa e Africanas e pós-doutorado em literatura guineense, Érica leciona desde 2015 no Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ). Especialista em literaturas africanas e epistemologias negras, ela é considerada referência em seu campo de pesquisa — um universo acadêmico ainda marcado por predominância branca e resistência à representatividade negra.
Mesmo com o mérito comprovado, a professora vê sua trajetória interrompida por uma decisão baseada em interpretações subjetivas e inconsistentes. “Desconsideraram totalmente que a banca é composta por cinco professores e que os cinco me deram notas superconsistentes e bastante altas o tempo inteiro”, disse ela, ao comentar que o espaço de sua área é pequeno, o que naturalmente explica as fotos em eventos acadêmicos com outras pesquisadoras do mesmo campo.
A USP, por sua vez, informou que não pretende se manifestar sobre o caso.
Enquanto isso, Érica move uma nova ação judicial e avalia denunciar a universidade ao Ministério Público, na tentativa de reverter uma decisão que, segundo pesquisadores e parlamentares, escancara o racismo estrutural e a desigualdade de oportunidades ainda persistentes na mais prestigiada universidade pública do país.