MARCO CAMPANELLA (*)
No final do século 19, nos primeiros anos da jovem República, Campos Sales assumiu a Presidência e foi um dos principais responsáveis por consolidar os interesses da oligarquia rural de então, força econômica predominante naquele período de nossa história.
Muito se escreveu sobre seu tumultuado governo e sua política econômica servil (ao império inglês, especialmente), atrasada e desastrosa, que muito contribuiu para a desintegração social do país. À época, submeteu o Parlamento, fez um conchavo com os governadores dos estados economicamente mais poderosos e chegou a editar um decreto proibindo qualquer participação do povo nas decisões do governo. Segundo Sales, as “multidões tumultuam”.
Sales e seu ministro da Fazenda, Joaquim Murtinho, o Guedes de então, pressionados pelos credores internacionais, valorizaram artificialmente a moeda nacional para conter qualquer tentativa de industrialização do país, reduziram drasticamente as despesas públicas, estancaram os investimentos no setor industrial, criaram novos tributos e comprimiram brutalmente os salários dos trabalhadores.
A tragédia do governo de Campos Sales, guardadas as circunstâncias de cada época, repetiu-se em outros momentos de nossa trajetória, seja na República Velha ou na que se inaugurou a partir de 1930 com Getúlio Vargas, mas, provavelmente, foi o mais caricato desses fenômenos que hoje identificamos no governo Bolsonaro: a vassalagem ao grande império, a ojeriza ao Estado Nacional e ao seu patrimônio, o ódio às conquistas sociais e a repulsa ao povo.
Novas informações da economia e da política reforçam essa convicção.
Na área econômica, a estimativa do mercado financeiro para o crescimento da economia este ano caiu novamente, para abaixo de 1%, após 16 reduções consecutivas. É o que mostra o boletim Focus, resultado de pesquisa do Banco Central (BC) a instituições financeiras, divulgado nesta segunda (17), em Brasília. A projeção para a expansão do PIB desta vez foi reduzida de 1% para 0,93%.
O indicador mostra como no mínimo é risível a expectativa do chamado mercado de que a economia terá melhor desempenho em 2020 e, mais ridículo ainda, a previsão de um crescimento em torno de 2,5% para 2021/2022 diante do andar da carruagem.
É o pibinho da dupla Bolsonaro/Guedes definhando a cada dia por conta da absoluta prostração do governo frente à crise, herdada por eles, é verdade, mas para a qual só contribuem com seu agravamento diante da aposta doentia na solução mirabolante do desmonte das aposentadorias, no aviltamento dos salários, no estímulo à informalidade nas relações do trabalho, nas privatizações e desnacionalizações alucinantes e, enfim, na manutenção da velha política fiscalista inibidora dos investimentos públicos e sociais e alimentadora de abominoso e irrefreável rentismo.
Até mesmo os presidentes das duas casas do Legislativo e o chamado centrão recorrem à prudência e mantêm distância de um governo que é, na definição deles, uma “usina de crises”, afinal o que esperar de Bolsonaro e sua falange miliciana, iluminados pela figura energúmena de Olavo de Carvalho. Agora mesmo, livraram-se de Joaquim Levy, um notório neoliberal, da presidência do BNDES por suspeição de fazer o jogo do PT – mais uma boçalidade acusada de “covarde” pelo próprio Rodrigo Maia.
Aliás, nesse ponto, não há notícia na literatura política do país de um governo eleito com manifesto e entusiástico liame com as milícias, os torturadores, entre outras excrescências, muito menos com cavalgaduras forâneas que tentam reescrever a história pela ótica do obscurantismo e pelo método da falsificação.
Nem mesmo Campos Sales, cuja despedida do governo foi melancólica diante da gigantesca impopularidade. Saiu do Catete sob uma chuva de vaias, ovos e legumes podres e teve que recorrer a forte aparato policial para chegar até a estação ferroviária – protestos que se repetiram ao longo de toda trajetória da viagem até o portão de sua residência em Campinas (SP).
A vibrante e histórica greve geral do dia 14 de junho, o crescente desgaste social e os sinais evidentes de isolamento político de Bolsonaro indicam que a tragédia que se abateu sobre Campos Sales poderá se repetir agora numa dimensão ainda maior – e também como farsa, como diria Marx.
Resta a dúvida se haverá algum militar ou policial, segmentos recorrentemente enxovalhados pelo bolsonarismo (vide episódio da demissão do general Santos Cruz), disposto a proteger o representante mor de um governo cuja decrepitude avança celeremente, pois vaias, legumes e ovos não faltarão, como não faltaram a Campos Sales.
(*) Jornalista, foi Editor-chefe da Hora do Povo