
Nesta segunda-feira (24), o Estado brasileiro reconheceu publicamente sua negligência na preservação e identificação dos restos mortais encontrados na Vala Clandestina de Perus. O anúncio ocorreu no Cemitério Dom Bosco, na zona norte de São Paulo, ao lado do Memorial aos Mortos e Desaparecidos. A escolha da data não foi por acaso: celebra-se o Dia da Memória, pela Verdade e pela Justiça, reforçando o compromisso com a reparação histórica.
Durante a cerimônia, a ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania, Macaé Evaristo, representou o governo federal e dirigiu um pedido formal de desculpas aos familiares das vítimas da ditadura militar. Em seu discurso, ela reconheceu a falha estatal no processo de identificação das ossadas entre os anos de 1990 e 2014.
“O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, em nome do Estado Brasileiro, pede desculpas aos familiares dos desaparecidos políticos durante a ditadura militar brasileira, iniciada em 1964, e à sociedade brasileira pela negligência, entre 1990 e 2014, na condução dos trabalhos de identificação das ossadas, encontradas na vala clandestina de Perus, localizada no Cemitério Dom Bosco em São Paulo”, declarou.
A Vala Clandestina de Perus, descoberta em 1990, é um dos mais emblemáticos vestígios da repressão no Brasil. Ali foram enterrados de maneira irregular corpos de indigentes, desconhecidos e opositores do regime militar, vigente desde 1964. “A abertura da vala clandestina, em setembro de 1990, no Cemitério Dom Bosco, localizado no bairro de Perus, zona norte de São Paulo, marca a descoberta de uma face das violações perpetradas durante a ditadura militar brasileira. Ela foi utilizada ilegalmente durante a década de 1970 para enterro de corpos de pessoas indigentes, desconhecidas e daquelas consideradas opositoras da ditadura militar”, acrescentou a ministra.
Para simbolizar o reconhecimento da responsabilidade estatal, Macaé Evaristo entregou uma placa de desculpas a Gilberto Molina, irmão de Flávio Carvalho Molina, militante político torturado e assassinado em 1971. Seu corpo foi enterrado como indigente na vala clandestina e identificado somente em 2005. “A minha busca desde quando o Flávio saiu de casa até a identificação [de seu corpo] e o sepultamento dele em um jazigo da família no Rio de Janeiro durou praticamente 44 anos”, relatou Gilberto. Ele descreveu o longo processo de identificação como um luto prolongado: “De 1990, quando a vala foi aberta, até 2005, quando ele foi identificado, se passaram 15 anos. Isso foi um velório interminável.”
A ministra destacou que esse pedido de desculpas não encerra o compromisso do governo com a busca pela verdade e justiça. “Quando falamos de direito à verdade, falamos de direitos muito concretos das vítimas e de seus familiares. O direito de conhecer, de forma plena e completa, as circunstâncias em que as violações de direitos humanos ocorreram e suas razões. A verdade é um caminho para emendar e restabelecer os laços entre passado, presente e futuro”, afirmou. Além disso, mencionou que o governo prepara novos pedidos de desculpas, como nos casos da Guerrilha do Araguaia e do assassinato do jornalista Vladimir Herzog. Também foi anunciada a alocação de recursos para retomar as investigações sobre as ossadas da vala e para corrigir certidões de óbito de vítimas da ditadura.
A existência da vala foi revelada em 1990 pelo jornalista Caco Barcellos, durante uma investigação sobre execuções cometidas por policiais militares. Analisando documentos do Instituto Médico Legal (IML), ele percebeu que alguns laudos continham a letra “T” em vermelho, sinalizando a palavra “terrorista”. Ao comunicar o fato à então prefeita de São Paulo, Luiza Erundina, ela determinou o início das escavações, que revelaram 1.049 ossadas sem identificação, incluindo vítimas de esquadrões da morte, indigentes e presos políticos.
Desde a abertura da vala, os esforços para identificar as vítimas avançaram lentamente. Em 2014, uma parceria entre o Ministério dos Direitos Humanos, a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania e a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) possibilitou a retomada dos trabalhos, mas a identificação dos corpos ainda é um desafio. Até o momento, apenas cinco ossadas de pessoas possivelmente assassinadas pela ditadura militar foram identificadas:
- Denis Casemiro (1991)
- Frederico Eduardo Mayr (1992)
- Flávio Carvalho Molina (2005)
- Dimas Antônio Casemiro (2018)
- Aluísio Palhano Pedreira Ferreira (2018)
Em 2024, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania firmou um novo Acordo de Cooperação Técnica com a Unifesp e a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo. Esse acordo garantirá financiamento para a contratação de peritos e a continuidade dos esforços para identificar as ossadas da Vala Clandestina de Perus. A iniciativa reafirma o compromisso do Estado brasileiro com a memória, a verdade e a justiça, buscando reparar as violações cometidas no passado.