Os heróis do nosso Exército são homens como Caxias, Osório, Sampaio, Rondon, Mallet, Villagran Cabrita – e tantos outros.
Homens a quem repugnava qualquer ato de covardia, sobretudo contra adversários indefesos e já rendidos no campo de batalha.
Homens de tal estatura moral, que foram admirados pelos próprios adversários contra os quais lutavam.
Homens sem rancor e sem ressentimento – pois lutavam pelo Brasil e para construir o Brasil.
Estes grandes brasileiros conformaram os ideais de nosso Exército.
No entanto, recentemente, surgiu uma divergência.
O candidato Jair Bolsonaro, do PSL, e seu candidato a vice-presidente, Antonio Hamilton Mourão (PRTB), propugnaram conceder o título de herói a um covarde, assassino e torturador – o falecido Carlos Alberto Brilhante Ustra.
Se dependesse de nós, consideraríamos que certos episódios passaram à História, com o acordo tácito que redundou na Anistia de 1979. Não somos a favor de rever esse acordo, nem de nenhuma perspectiva “revanchista”.
Entretanto, quem está reabrindo a ferida é Bolsonaro e seu vice, Mourão.
Para que não haja equívocos, já que Bolsonaro está afastado da campanha, transcrevemos um trecho da entrevista de Mourão à GloboNews:
ENTREVISTADORA: O senhor tem dito, e também o candidato Bolsonaro, que o coronel Carlos Brilhante Ustra é um herói. No período em que ele ficou no DOI-CODI, 47 pessoas morreram. Elas estavam sob a custódia do Estado. O senhor acha isso normal? Um herói deve fazer isso? Comandar um estamento militar, um local do Estado em que 47 pessoas morrem, sob a custódia do Estado?
MOURÃO: Olha, os meus heróis não morreram de overdose, e Carlos Alberto Brilhante Ustra foi meu comandante quando eu era tenente em São Leopoldo. Um homem de coragem, um homem de determinação e que me ensinou muita coisa. Tem gente que gosta de Carlos Marighella, um assassino, terrorista, autor de um manual que é explorado…
ENTREVISTADORA: Eu pergunto pelo Estado, o papel do Estado brasileiro naquele momento.
MOURÃO: Houve uma guerra. Houve uma guerra. Excessos foram cometidos? Excessos foram cometidos.
ENTREVISTADORA: Então o seu herói matou pessoas.
MOURÃO: Heróis matam.
[Silêncio geral.]
Como disse alguém, só faltou Mourão acrescentar, entre os seus heróis, o delegado Fleury e o capitão Guimarães.
Homenageamos muitos heróis que morreram pela liberdade da Pátria, a começar pelo alferes José Joaquim da Silva Xavier.
Mas nenhum herói nacional assassinou alguém, sobretudo pessoas que não podiam se defender.
No entanto, a crença de Mourão e de Bolsonaro é que heróis podem – logo, devem – assassinar pessoas.
Pois Brilhante Ustra não matou ninguém no campo de batalha. Matou pessoas que estavam presas e, sob a sua chefia, inclusive com sua participação, foram submetidas à tortura até a morte.
Por isso, é uma falácia – e uma falácia monstruosa – a consequência que Mourão quer tirar da afirmação de que “houve uma guerra”.
Desde quando é permitido, em uma guerra, torturar e matar prisioneiros de guerra?
Aliás, mesmo admitindo a duvidosa afirmação de que apenas houve “excessos”, desde quando “excessos” garantem aos seus perpetradores o título de heróis?
Brilhante Ustra, rigorosamente, desonrou a farda que vestia – e sob a direção dos esbirros norte-americanos, que treinaram os torturadores daqui.
Nenhum herói do Exército e do Brasil, jamais, torturou ou assassinou alguém.
Além do século XIX, lembremos, por exemplo, as revoltas tenentistas – homens como Siqueira Campos, assim como Juarez Távora e Eduardo Gomes, estiveram presos em dependências militares. Nenhum deles foi vítima de tortura ou sofreu ameaça à vida quando estava preso.
Este é o nosso Exército. O Exército do povo brasileiro. O Exército de Caxias e de Osório.
CONTRA A PÁTRIA
Não é surpreendente, no entanto, que Mourão tenha esse distorcido conceito de quem são os heróis do Exército.
Há meses, pouco antes do Comando do Exército puni-lo pela segunda vez – por defender publicamente posições incompatíveis com um comandante militar – Mourão defendeu a “liberalização financeira e comercial”, a venda de terras a estrangeiros na Amazônia e nas fronteiras, a privatização geral – em meio a frases como “ninguém pode temer investimento estrangeiro” (como se o problema fosse temor e não a defesa da soberania nacional) e “se nós não temos a poupança interna, nós temos que usar a poupança externa” (como se o nosso problema fosse falta de recursos e não o roubo deles, em suma, a drenagem da nossa poupança para fora do país).
Portanto, o que há de surpreendente é tanta falta de patriotismo em alguém que ocupou um cargo no Alto Comando de nosso Exército. Embora, é verdade que foi destituído duas vezes: a primeira, do Comando Militar do Sul; a segunda, da Secretaria de Economia e Finanças do Exército.
Na mesma conferência, pronunciou o seu conhecido juízo sobre a nacionalidade:
“E aqui, minha gente, existe a maior de todas as reformas, que é a reforma moral, em cima dos valores da sociedade, a reforma cultural: nós carregamos dentro de cada um uma herança cultural tripla. Nós temos a herança cultural ibérica, que é a do privilégio e da sinecura – todo mundo quer se dar bem; temos a herança cultural indígena, que é a da indolência – é o índio deitado na rede e a mulher cavando lá, carregando filho; e temos a herança cultural africana, que é da magia – ‘vai dar certo, vai dar tudo certo’ – a malemolência, o samba, a embaixadinha. Nós temos que romper esse círculo, essa é realidade.”
Em discurso posterior, Mourão substituiu a “malemolência” pela “malandragem” (“a malandragem é oriunda do africano”) e acrescentou: “por isso essa crise política, econômica e psicossocial”.
Na entrevista da GloboNews, Mourão negou que sua menção à “malandragem” como característica intrínseca do negro (depois de 400 anos de trabalho escravo!) fosse pejorativa.
Pelo contrário, disse ele, é uma qualidade do brasileiro.
Nos limitamos, aqui, a recomendar a releitura dos trechos que reproduzimos acima.
Seu herói, Brilhante Ustra, quando denunciado por uma de suas vítimas – a atriz Bete Mendes – até mesmo falou da humanidade com que tratou a prisioneira. Mourão, parece, é da mesma escola.
A propósito, Ustra afirmava que “ninguém morreu quando eu era comandante do DOI-CODI” – e, também, que ninguém foi torturado (veja-se o bate-boca aprontado por ele, na Comissão da Verdade, quando o vereador Gilberto Natalini disse, na sua frente, que fora torturado por ele, pessoalmente).
Porém, Bolsonaro e Mourão se encarregaram de desmentir a versão de Ustra – e ainda transformaram o assassinato na tortura em heroísmo…
DEMOCRATA
Mourão, também há poucos dias, atacou a Constituição de 1988, isto é, a Constituição atual – que, apesar dos remendos que lhe pespegaram os governos Fernando Henrique, Lula, Dilma e Temer, ainda é, em seu arcabouço geral, a “Constituição-cidadã” de Ulysses Guimarães.
A Constituição de 1988 foi a cristalização legal do fim da ditadura.
Porém, disse Mourão que essa Constituição foi um “erro” e que “seria muito bom que pudéssemos trocá-la”.
Disse, também, que uma outra Constituição “não precisa ser feita por eleitos pelo povo”.
Sobre isso, os comentaristas se ativeram ao aspecto formal do problema. Nenhum, dos que tomamos conhecimento, se ateve às modificações propostas por Mourão.
Voltaremos aos aspectos formais. Antes, no entanto, é melhor examinar o conteúdo da questão.
Pois o problema é: por que Mourão acha que “representantes do povo” devem ser dispensados de fazer a Constituição?
Obviamente, porque as alterações que quer fazer não seriam aprovadas por representantes do povo.
Essas modificações, segundo ele, seriam um expurgo, de fio a pavio, na Constituição, deixando apenas “princípios e valores imutáveis”.
Algo, portanto, tão imutável (?) quanto perfeitamente inútil para a vida do povo brasileiro, uma declaração com nenhum efeito prático.
Ou com o efeito prático de abolir qualquer barreira para a espoliação do país e a exploração do povo.
Tanto assim que Mourão foi capaz de mencionar apenas que pretende expurgar da Constituição as vinculações de gastos (as verbas para a Saúde e Educação e outras menores). Disse ele: “Tudo virou matéria constitucional. A partir dela, surgiram inúmeras despesas. A conta está chegando, está caindo no nosso colo. Chegou o momento em que temos que tomar uma decisão a respeito”.
Esse é exatamente o sonho longamente acalentado pelos rentistas – bancos, fundos e outros parasitas: acabar com as vinculações constitucionais para que mais dinheiro seja transferido a eles sob a forma de juros.
Somente mencionaremos, de passagem, que, além disso, essa ideia de uma Constituição apenas com declarações genéricas de supostos “princípios e valores imutáveis”, sempre foi a conversa de todos os americanófilos no Brasil, desde, pelo menos, a Proclamação da República.
Vamos resumir a questão, do ponto de vista do conteúdo: as alterações de Mourão significariam expurgar da Constituição todas as conquistas democráticas do povo brasileiro com a derrubada da ditadura.
Seria mais fácil – e mais honesto – que Mourão dissesse logo o que lhe vai no bestunto: voltar à Constituição de 1967, aquela que ficou conhecida como o “Estatuto do Capital Estrangeiro”, aquela que até os parlamentares do partido do governo (isto é, da ditadura) recusaram-se a assinar.
Porém, voltar à Carta de 1967 é voltar à ditadura em seu momento mais entreguista.
Na época, um jurista escreveu o seguinte:
“Se o Presidente da República [Costa e Silva] encontrar dificuldades em defender o interesse nacional, impedido pela Carta Política e decidir-se a cumprir seus deveres para com a Pátria, ver-se-á obrigado a promover a anulação daquela, unindo-se ao povo, para a realização da tarefa.
“Só assim os compromissos poderão ser executados e o Presidente passará à História, sem a insignificância e a mediocridade dos capatazes, muito autoritários e decididos, porém, apenas na defesa do dono da fazenda que mora longe, na metrópole” (cf. Osny Duarte Pereira, “A Constituição do Brasil 1967”, Civ. Bras., 1967, pp. 348-349).
Por fim, vejamos o aspecto formal, pois, nos últimos dias, as comparações com outras Constituições do Brasil foram muito inadequadas, a começar pelo próprio Mourão, que apresentou a Constituição de 1946 como exemplo de uma Carta que não foi feita por “representantes do povo”, como se a Constituinte daquele ano não tivesse existido.
Como diz o jurista que citamos, as constituições brasileiras, com exceção daquela de 1967, tiveram sempre um poder constituinte:
“Em toda a História do Brasil, nossas constituições foram subscritas pelo Poder Constituinte, fosse o Imperador, fosse Getúlio Vargas em 1937, sempre foi um Poder Constituinte o que subscreveu as Cartas Políticas. Em 1967, ninguém quis referendá-la. Todos exprimiram sua repulsa, pela forma que a pressão política autorizava a um congressista exprimir-se. Cerca de 106 representantes, dados como integrantes da maioria, antes mesmo de promulgada a Constituição, assinaram um compromisso de colocá-la abaixo” (idem, pp. 350-351).
É esse prodígio, essa ditadura contra o povo, que Bolsonaro e Mourão querem exumar – e de forma piorada.
SERVILISMO
Para ser inteiramente justo, o que Mourão e Bolsonaro defendem é algo pior que a ditadura de 1964, que não privatizou a Petrobrás, nem o Banco do Brasil – e até, no governo Geisel, implementou uma política econômica próxima do interesse nacional.
Porém, Mourão esclareceu, na entrevista à GloboNews, que rejeita essa parte da ditadura. Prefere o encarceramento, a submissão e a exploração do governo Medici.
O programa de Bolsonaro, entretanto, também é pior que o governo Medici, prometendo a privatização geral – e somente para entregar o dinheiro aos bancos. Literalmente:
“Em nossa proposta, todos os recursos obtidos com privatizações e concessões deverão ser obrigatoriamente utilizados para o pagamento da dívida pública” (cf. Bolsonaro 2018, programa registrado no TSE).
Não é preciso dizer quais são os métodos que Bolsonaro e Mourão querem utilizar para implementar tal programa, porque eles mesmos não escondem quais são.
Entretanto, na sexta-feira, 14/09, o candidato a vice-presidente de Bolsonaro declarou que “não sei por que eu sou antidemocrático”.
Segundo Mourão, “é um carimbo que querem colocar em mim, que eu rejeito”.
A prova, ainda segundo Mourão, é que “se eu fosse antidemocrático, não estaria participando de uma eleição. Estaria limpando as armas e aguardando o momento”.
A prova de que é um democrata, apresentada pelo candidato a vice-presidente de Bolsonaro, infelizmente, não é uma prova.
Hitler também participava de eleições – e chegou ao poder por via parlamentar, é verdade que em minoria.
As eleições, nesse caso, foram o meio de chegar ao poder para, em seguida, instalar a mais feroz e sanguinária ditadura sobre o povo.
Não sabemos o que Bolsonaro e Mourão acham de Hitler, mas, dificilmente alguém levantará que se tratava de um democrata.
Como diria Mourão, estamos falando em tese.
CARLOS LOPES
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