O vice-presidente dos EUA, Mike Pence, entrou em choque com a primeira-ministra alemã Ângela Merkel e a chanceler da União Europeia, Federica Mogherini, ao exigir nada menos que vassalagem total aos desígnios dos EUA, particularmente em relação ao Irã e ao gasoduto Nord Stream 2. O embate ocorreu na 55ª Conferência de Segurança de Munique, em andamento até domingo.
Em discurso neste sábado (16), Pence demandou que as nações europeias “parem de minar as sanções dos EUA” contra o Irã, decretadas por Trump após se retirar unilateralmente do acordo nuclear com Teerã assinado por seu antecessor, Obama, os demais integrantes permanentes do Conselho de Segurança da ONU e Alemanha, e cujo cumprimento, por Teerã, segue sendo atestado pela Agência Internacional de Energia Nuclear.
Na Conferência sobre o “Oriente Médio”, em Varsóvia, Pence havia rechaçado na quinta-feira o recém adotado mecanismo europeu para proteção das empresas europeias que comerciam com o Irã, o “Veículo de Propósito Específico”. “Nós chamamos isso de esforço para romper as sanções americanas contra o regime revolucionário assassino do Irã”.
A Conferência de Segurança de Munique surgiu no auge da Guerra Fria, buscando criar um fórum que ajudasse a evitar o agravamento dos conflitos. 35 chefes de Estado e 80 ministros da Defesa e do Exterior participam este ano.
Na sexta-feira, a chanceler europeia Mogherini se reuniu com o ministro do Exterior iraniano, Mohammad Javad Zarif, e reiterou que o acordo nuclear com o Irã (JCPOA, na sigla em inglês), “continua cumprindo seus objetivos, é crucial para a segurança regional e global”.
Em seu ataque ao Nord Stream 2, Pence afirmou que os EUA “saúdam” as nações “que tomaram posição” contra o gasoduto e instam “as outras a fazerem o mesmo”. Trump não tem escondido sua intenção de forçar os europeus a comprarem o muito mais caro gás norte-americano. O Nord Stream 2, que ficará pronto até o final do ano, fornecerá 55 bilhões de metros cúbicos de gás por ano, direto da Rússia até a Alemanha, pelo Báltico.
Profilaticamente, Merkel havia falado antes de Pence, mas, é claro, o alvo era o vice de Trump. A agência de notícias estatal Deutsche Welle considerou o discurso dela uma “defesa ferrenha do multilateralismo” e do Nord Stream 2.
“Se, durante a Guerra Fria, nós importamos grandes quantidades de gás russo, não sei por que agora os tempos são tão ruins que não podemos dizer que a Rússia continua um parceiro”, argumentou Merkel.
“Nós queremos tornar a Rússia dependente apenas da China?”, questionou a líder alemã. “São esses nossos interesses europeus? Não creio”.
Diante dos rumores de que Trump irá decretar sobretaxa de 25% sobre os carros alemães, a primeira-ministra disse que os alemães “têm orgulho” de seus carros. Ela também lembrou que muitos carros alemães são montados nos EUA e exportados para a China. “Mas se isso é visto como uma ameaça para a segurança americana, é um choque para a gente”, ressaltou, sob aplausos.
“A exclusão política deliberada da Rússia está errada, acho que isso está estrategicamente errado para nós”, sublinhou Merkel, embora Berlim siga acatando todas as sanções anti-Rússia de Washington desde o golpe de Estado da CIA na Ucrânia.
Por sua vez, o chanceler russo Sergei Lavrov disse que a Rússia “está interessada em uma União Europeia forte, independente e aberta”, mas acrescentou que “o quanto a UE pode cumprir isso é outra questão”. Ele também assinalou que as tentativas de forçar a Rússia a tomar decisões sob diktats estão “condenadas ao fracasso”.
Em seu discurso, o vice de Trump também advertiu – o recado era para o presidente turco Erdogan – que os EUA “não ficarão de braços cruzados” diante daqueles, da Otan, que compram armas “dos nossos adversários”. Ancara recentemente comprou o sistema de mísseis de defesa aérea russo S-400.
O Relatório de Segurança de Munique 2019, preparado pelos organizadores da conferência, alerta para a nova situação, que está aumentando o risco de guerra em uma escala impensável há duas décadas. “Uma nova era de grande competição de poder está se desenrolando entre os EUA, China e Rússia”, destaca, apontando um “vácuo de liderança” na “ordem internacional liberal” e concluindo que ninguém pode dizer “como será a futura ordem”.
O documento, que registra que a China se tornou “o concorrente mais dinâmico e formidável na história moderna”, registra a acusação de Pence de que Pequim tenta “corroer a vantagem militar dos EUA em terra, no mar, no ar e no espaço” e conclui que muitos viram nesse discurso “o anúncio de uma nova guerra fria”.
Também levanta, no capítulo ‘Da Pax à Crux Americana’, que a “crescente incerteza” sobre o papel futuro dos EUA leva a uma discussão renovada “sobre a ‘autonomia estratégica’ da Europa”. E conclama os formuladores europeus a atuarem para que a Europa seja “mais do que apenas ‘um teatro de competição estratégica’ para outros atores”.
O relatório inclui interessante pesquisa sobre como a população percebe a política externa das principais nações do mundo.
Perguntados sobre qual poder e influência eles achavam que representava o maior perigo para seu país, 49% dos alemães disseram que os EUA, em comparação com 30% que disseram Rússia e 33%, a China. Na França, o resultado foi semelhante.
Questionados sobre quem eles achavam que faria a coisa certa nos assuntos mundiais, 10% dos alemães nomearam Trump, em comparação com 35% que disseram Putin e 30% que escolheram Xi Jinping.
Nos EUA, só 48% dos entrevistados deram o nome de Trump, em comparação com 39% para Xi e 21% para Putin, demonizado pela mídia noite e dia. Resultados que, sob uma perspectiva mais de fundo, sinalizam para uma oposição generalizada à ameaça de guerra, inclusive nuclear, que os EUA – e agora, Trump – significam.
ANTONIO PIMENTA
Não é gás russo, mas dos países que a Rússia invadiu e que se adonou de seus recursos.
Não é verdade. A Sibéria, onde está a maior reserva de gás, sempre foi território russo.