Recentemente, nosso amigo e colaborador Eduardo Costa – esta figura de médico, professor, secretário de Saúde do governo Brizola, político e intelectual brasileiro – esteve no Vietnã. O texto abaixo, consequência desta viagem ao país de Ho Chi Minh e Vo Nguyen Giap, celebra uma das maiores vitórias da Humanidade sobre a barbárie imperialista, um episódio de heroísmo somente comparável à Stalingrado e outras vitórias soviéticas na II Guerra – ou, em outra época, ao combate de Leônidas e seus bravos nas Termópilas. Com a diferença que, como em Stalingrado, o inimigo foi derrotado, e de forma inapelável – a tal ponto que se pode dizer que ali se decidiu a guerra. Portanto, leitores, sem mais delongas, ao texto de Eduardo.
C.L.
EDUARDO COSTA*
Em 30 de janeiro de 1968 se celebrava o início do “Tet”, ano novo lunar no Vietnã, então dividido pela ONU na altura do paralelo 17, com uma estreita zona desmilitarizada que separava o sul (capital Saigon) do norte (capital Hanoi).
O General Giap do Exército Popular do Vietnã, herói da expulsão dos franceses em Dien Bien Phu, em 1954, Comandante do Exército Popular do Vietnã (do norte) e da Frente de Libertação Nacional do Vietnã (do Sul), os vietcongs, em resposta à ditadura brutal implantada pelo Governo de Thieu e Cao Ki, que como a maioria de seus antecessores eram militares a serviço da Embaixada dos EUA, e em resposta aos bombardeios americanos ao Vietnã do Norte, planifica a “Ofensiva Global e Levante”, em tres fases.
A primeira, iniciando-se no dia 30 de janeiro, atacava de surpresa todo o território controlado pelas forças americanas e sul-vietnamitas ao mesmo tempo. A inteligência americana e a informação obtida sob tortura sul-vietnamita não detectaram a movimentação. Os americanos não tinham ideia da capacidade militar Vietcong, a quem tratavam como ratos em tocas, e falavam da vitória iminente, por seu alto poder de fogo e modernas armas e equipamentos.
A presença americana no Vietnã, à época de Eisenhower, era só com assessores e dinheiro “leve” para corrupção (fora do orçamento controlado pelo parlamento americano), suprimentos e armamento. Visava assegurar seu abastecimento de tungstênio e estanho, além dessa posição estratégica na Ásia, e atender aos propósitos na Guerra Fria.
Em 1962, no Governo Kennedy, o número de “assessores” americanos no Vietnã do Sul pularia de 1.500 para 15.000, infiltrando, como Defesa Civil, agentes militares. Em 1965, com Johnson, começaram os ataques aéreos às posições ao norte do paralelo 17. O ano acabaria com 200 mil soldados americanos em solo vietnamita. Logo, em 1966, o Comandante Westmoreland da operação dos EUA no Vietnã, descobriu que não adiantava “procurar e destruir” (Search and Destroy) os guerrilheiros. Os vietcongs ocupavam áreas e, se atacados, ofereciam pouca resistência e escapavam; depois voltavam. Por isso, visando cortar os suprimentos ao Vietcong, bombardeios sistemáticos de cidades da República Democrática do Vietnã, mesmo sem foco militar direto, começaram, destruindo moradias, escolas, asilos, hospitais. Nada a procurar: só contabilizar mortos nas terras estrangeiras que tivessem olhos mais puxados.
Perto da zona desmilitarizada, a principal base americana era Khe Sanh, na província de Quang Tri, muito próximo de Hué, a antiga capital imperial, de extrema importância pois se situa na parte mais estreita do território vietnamita, entre o mar da China e a fronteira com o Laos, que possibilitava a evasão de guerrilheiros. Da Nang, não muito longe, servia como aeroporto para os suprimentos militares e, em especial, para as armas incendiárias e químicas (especialmente napalm e os desfoliantes contendo dioxinas) que começaram a ser usadas para desalojar guerillheiros das florestas e para destruir plantações. Dela saiam também os aviões (B52) para bombardeios, que despejaram 60 toneladas de bombas em cidades como HaiPhong e Hanoi.
Khe Sanh e Da Nang foram atacadas duramente, com artilharia e morteiros, pelo Exército Popular Norte-vietnamita. A base foi sitiada por cinco meses, apesar da concentração militar pelo envio de mais e mais reforços aéreos americanos.
Mais de 100 cidades e vilas foram atacadas, inclusive as maiores capitais de províncias do sul, desafiando e imobilizando grande parte do Exército sulvietnamita e norte americano. O objetivo não era ocupar indefinidamente, senão por dias as cidades (de fato já havia áreas liberadas no delta do Mekong de forma permanente), mas, sim, tornar visível a todos a dimensão da resistência, mostrar a força e a ética revolucionária – uma estratégia de propaganda nacional e mundial, em particular à ONU. Saigon foi cercada e foram feitas ações relâmpagos, algumas suicidas, por grupos pequenos, sendo a de maior repercussão a ocupação da Embaixada americana por algumas horas para o show fotográfico. Os vietongs chegaram a controlar cerca de 80% da cidade, instalando um tribunal popular.
Com a repercussão, os objetivos estratégicos de Ho Chi Minh se consolidavam e U Thant já advogava o fim dos bombardeios americanos às cidades norte-vietnamitas. Já em 8 de fevereiro, um dos candidatos potenciais às eleições americanas, Senador Robert Kennedy, se manifestava em Chicago, dizendo que o Governo de Saigon “é totalmente inepto”, e que os ataques comunistas no Vietnã “destruiram a máscara oficial que ocultava a verdadeira situação”.
O primeiro balanço, há menos de um mês do início da ofensiva (em março começaria a fase II), dava conta que as forças americanas já haviam perdido 2.769 aviões (JB de 25 de fevereiro de 1968). O número de mortos divulgado pelo departamento de estatística americano foi 45 mil soldados americanos e um milhão e meio de vietnamitas do sul e norte, sem distinguir população civil e militar, incluindo as crianças (os fatos apontam para uma guerra étnica e genocida empreendida pelo Governo dos EEUU).
Completamente acuado, quando o sítio foi aberto pelo sul da base de Khe Sanh, o General americano Westmoreland mandaria desativa-la às pressas, destruindo tudo para que não caísse nas mãos dos norte-vietnamitas, enquanto os combatentes do sul desertavam. Ainda assim, comemorava como se fosse vitorioso: o Governo de Thieu não caira e não ocorrera uma sublevação geral no sul. Essa “vitória” de Pirro americana levou a que Jonhson, com seus problemas nos Estados Unidos pela opinião pública alertada para o tamanho do conflito, com passeatas contra a guerra e muitos chorando seus jovens mortos, decidisse em outubro suspender os bombardeios ao Vietnã do Norte e assim oferecer um diálogo para restabelecer a paz “com honra”.
A saída total dos Estados Unidos do território vietnamita ainda demoraria cerca de quatro anos quando houve o acordo de cessar-fogo tomado em Genebra, em 1973. Em mais dois anos, o Vietnã seria reunificado, passando a se chamar República Socialista do Vietnã. Saigon passaria a se chamar Cidade de Ho Chi Minh.
Nesses dias um filme de Steven Spielberg, chamado “Post”, abre uma fresta para os mais jovens, pela janela do direito à informação, às mentiras dos governos americanos sobre a Guerra do Vietnã – como se isso não mais acontecesse. Mais antigo, de 1974, o documentário “Corações e Mentes” de Peter Davis, mostra a iniquidade da Guerra infligida de maneira torpe pelos governos americanos.
O acesso, sem responsabilização, aos arquivos americanos é sempre uma esperança: daqui a 50 anos saberemos melhor o que se passa hoje no Brasil, como já ficamos sabendo do conluio de Kennedy e Johnson com o golpe militar de 1964.
A celebração pelo Governo do Vietnã pelos 50 anos da Ofensiva do Tet, ao que se referem como “Mâu Thân 1968”, contou com um artigo do Presidente Trân Dai Quang, que diz: “O grande espírito da ofensiva continuará a encorajar fortemente o Partido, o povo e o exército do Vietnã a superar as dificuldades e desafios enquanto busca novas oportunidades para desenvolver o Vietnã num país moderno, industrializado.” Discursos do Secretário Geral do Partido Comunista, Nguyen Phu Trong, e do primeiro-ministro Nguyen Xuan Phuc, ressaltaram o patriotismo e a auto-determinação de unificar o país de modo soberano.
Hoje, o Vietnã vive outros tempos. No Museu dos Vestígios da Guerra, em Saigon, podem-se ver fotos e até, com grande sutileza, fetos e bebes deformados preservados, que morreram em consequência dos desfoliantes jogados pelos aviões americanos sem pudor. Mas, nenhum rancor transparece nos contatos que se faz com vietnamitas: “a guerra acabou, não temos mais inimigos”; “os americanos não são mais os mesmos!” “sempre lutamos pela paz – a paz chegou, agora a luta é pela vida melhor”.
A paz afinal mudou tudo: o Vietnã cresce a taxas elevadas (2017: 6,7%). O PIB per cápita é ainda 40% menor do que o Brasil. Ainda que seja um dos maiores exportadores de arroz e café, a sua industrialização é crescente, no modelo que chamamos de asiático ou nacional-desenvolvimentista. Já é o primeiro destino turístico da Ásia em termos de número de visitantes.
Alguns dados sociais são comparáveis aos do Brasil, desde 2015: expectativa de vida de 75 anos, mortalidade infantil de 17 por mil nascidos vivos. A prioridade máxima é para educação, o que se reflete nos gastos do país: 15% do PIB (Brasil 6%), enquanto que para a saúde é de 4% (Brasil, 6%).
Digno de registro nessa comparação são os índices de mortes violentas: a taxa de mortalidade por acidentes em geral é de 9,42 por cem mil habitantes (Brasil: 24,3) e a taxa de mortalidade por assassinatos (intencionais) é de 1,4 por cem mil (Brasil: 29,9).
Os 50 anos do Tet devem ser comemorados também no resto do mundo pelos efeitos que teve na arrogância dos Governos americanos na década de 60 e 70. De outro lado, não há como não reconhecer o patriotismo, inteligência e coragem do povo vietnamita. Em 30 anos (de 1945 a 1975) eles não só expulsaram japoneses, franceses e americanos, como deram um chega prá lá na China.
* Eduardo de Azeredo Costa, (medico-sanitarista, professor titular da Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz – aposentado), escreve como cidadão.
Excelente artigo !
Parabéns Eduardo Costa e ao HP !
Parabéns pelo artigo cheio de informação sobre um fato tão importante na história da humanidade e sobre a situação atual do Vietnã.