O capitão Rafael Acosta Arévalo, preso na Venezuela em 21 de junho sob a acusação de envolvimento num suposto plano de golpe de Estado e atentado contra o presidente Nicolás Maduro, morreu no sábado (29), em consequência de torturas, conforme denunciaram a esposa da vítima, ativistas de direitos humanos e membros da oposição.
Confirmando a morte do oficial mais de 12 horas depois das primeiras denúncias, o promotor geral venezuelano, o membro do governo, Tarek William Saab, anunciou uma investigação “exaustiva” sem fazer referência às denúncias de torturas, nem explicar os movimentos que faria.
O jornalista Vladimir Villegas, ex-embaixador da Venezuela no Brasil de 2002 a 2003, escreveu o artigo que publicamos a seguir denunciando a política do governo de Nicolás Maduro. Villegas teve ainda um importante papel nas comunicações do governo chavista, ocupando a presidência da estatal Venezuelana de Televisão nos anos de 2003 e 2004. Em 2006 foi nomeado vice-chanceler do governo Hugo Chávez, cargo que ocupou até 2007.
S. L.
Tortura, impunidade e morte na Venezuela
VLADIMIR VILLEGAS
A tortura é abominável, detestável, miserável, nojenta. É sinônimo de baixeza, covardia, indignidade, crueldade e ausência da mínima dose de humanidade. Tão torturador é aquele que a aplica fisicamente como quem a ordena, a planeja e a sugere. E inclusive é torturador em potencial quem a dissimula, a justifica ou a relativiza.
A alma do torturador deve ser uma mistura de vomitivos ingredientes, que se misturam para fazer aflorar a bestialidade que leva a infligir sofrimento a um detento para que confesse, delate, acuse ou assuma a autoria de fatos que constituam delitos. Se o detido é culpado ou não do que se lhe acusa isso pode passar a um segundo plano, porque o importante é que a partir das declarações obtidas na porrada, no choque elétrico, asfixia ou outras formas de selvagem coação pode armar-se um mapa verdadeiro ou simulado de grupos conspirativos ou bandos delitivos.
Cada vez é mais difícil ocultar que na Venezuela a tortura é uma prática cotidiana. E o caso do capitão de corveta Rafael Acosta Arévalo, assassinado por torturadores dos corpos de segurança do Estado, confirma o que já não é um segredo, mas uma tenebrosa realidade. Morreu por causa dos abusos físicos recebidos, depois de permanecer incomunicável desde sua detenção, e antes de sua audiência de apresentação, segundo uma das várias versões que têm surgido de porta-vozes oficiais. É um crime de Estado? Cabe outra denominação? Estava sob custódia de funcionários de segurança do Estado e não houve um promotor, nem civil nem militar, e menos ainda um funcionário da paraplégica Defensoria Pública que saísse em defesa do direito à vida deste oficial da Força Armada Nacional Bolivariana.
O grande aliado do torturador, e talvez muitas vezes se trata da mesma pessoa, é quem ordena a incomunicabilidade de um detido. Incomunicar é o passo prévio para deixar o caminho livre para a tarefa do esbirro que enche de porradas um preso, que dá choque de eletricidade em seus genitais ou, se preferir, que lhe arranca as unhas. Perdoem-me a crueza, mas há que se pôr na pele de um torturado mesmo que seja só por um minuto. Meu pai foi torturado em várias oportunidades, e só o fato de lembrar que ele passou, junto a inumeráveis venezuelanos, por esse tipo de tratamentos cruéis e degradantes me obriga a elevar minha voz diante da terrível realidade de saber que hoje vivemos episódios que supostamente eram patrimônio exclusivo da chamada quarta República.
Disse que a incomunicabilidade é o passo prévio para abrir caminho para a tortura. Talvez devo corrigir essa afirmação, e afirmar que já a incomunicabilidade é em si uma forma de tortura, para o detido e para sua família. Soube de casos terríveis de detidos na polícia política que passaram meses sem ver sua família, nem seus advogados.
Também é tortura negar atenção médica a um preso que a necessite, e inclusive submetê-lo a confinamentos prolongados, sem acesso a um raiozinho de sol sequer. Aqui, na Venezuela, há material suficiente para falar desse tema. O que acontece é que alguns velhos amigos e companheiros de militância de outrora preferem falar da tortura que sofreram em seus tempos de perseguidos, antes que Chávez chegasse ao poder, e optam por negar a realidade ou ignorá-la ao invés de admitir que o governo que apoiam ou do qual formam parte acabou fazendo coisas iguais ou piores.
A impunidade é outra aliada do torturador. No caso do capitão assassinado por agentes de segurança do Estado, seguramente haverá alguns detidos. Porque o escândalo gerado dentro e fora da instituição castrense não permitirá outra coisa. Porém, não há garantias na Venezuela para a plena vigência dos direitos humanos consagrados na Carta Magna de 1999 e nos tratados subscritos pela nação.
Não há forma de gerar investigações independentes e realmente autônomas que permitam ir à medula desta nojenta realidade. Sob o argumento de que se trata de “casos isolados”, busca-se esconder o lixo embaixo do tapete. Mas já dá para perceber o que acontece. Quantos presos, dos que permanecem incomunicáveis, estarão recebendo sua “dose de pátria” enquanto você lê estas linhas? Não há diferença no caráter daqueles que torturam e assassinam neste tempo e o dos assassinos de Alberto Lovera, Noel Rodríguez ou Jorge Rodríguez pai [patriotas assassinados durante a ditadura anterior ao governo de Hugo Chávez]. Quem responde hoje, nesta data, pelos abusos e atropelos cometidos pelos corpos de segurança? Ou perdemos o medo de pôr o dedo na ferida desta situação ou teremos que nos acostumar a assumir a tortura, e inclusive a morte, como algo natural que pode ocorrer a todo aquele que seja detido. O assassinato do capitão Rafael Acosta Arévalo obriga a Alta Comissária de Direitos Humanos das Nações Unidas, Michelle Bachelet, a manter a lupa sobre o que acontece em nosso país, e a fazer uma firme reclamação contra o governo de Nicolás Maduro. Já que a Defensoria do Povo é uma trincheira governamental, os funcionários da Alta Comissária terão muito trabalho uma vez que se instalem aqui, se finalmente os deixam.
Por último, apelo àqueles que ainda dentro do chavismo governante não convalidam essas práticas e o murmuram em voz baixa. Desembuchem sua indignação em alta voz. O país, seus próprios companheiros, seus filhos, irão lhes agradecer. Ninguém está a salvo de cair nas mãos de um torturador, sequer os que dizem que as denúncias de torturas são “puros contos dos inimigos da pátria”. E ainda, quando o Estado de Direito brilha pela sua ausência, os vitimadores podem terminar provando de seu próprio remédio, sem que ninguém os defenda. Isso frequentemente acontece quando a vingança se disfarça de justiça.
Tradução: Susana Lischinsky