A pandemia do COVID-19 está abrindo um novo momento nas grandes batalhas de nosso tempo, onde ideias generosas e solidárias vencerão as trevas
WALTER SORRENTINO*
A pandemia coloca inúmeros e graves impasses para seu enfrentamento. Trato aqui hoje de um deles, e não o menor, que é o esforço em transformar o tema em palco de disputa política inescrupulosa. É a “politização” da crise no pior sentido da palavra.
Isso tem agravado os efeitos não só a crise sanitária, como também da econômica e social, e causado sérios dilemas político-institucionais. Esse foi, claramente, o caso de Trump no governo dos EUA e de Bolsonaro no governo do Brasil. Ambos agem com a desfaçatez que caracteriza as forças de direita e extrema-direita, desprovidas de sentimento humanitário e descompromissados com suas sociedades. Para eles prevalece o interesse sectário e o cálculo político-eleitoral.
A exploração que fazem Trump e Bolsonaro envolve três disputas, cada qual de natureza diferente, mas interligadas.
Uma é, evidentemente, a disputa sobre como enfrentar o avanço cavalar da pandemia. Os EUA hoje são o epicentro dela, o país tardou a tomar as providências de isolamento precoce. O Brasil está começando a subir o Everest e chegará ao pico nas próximas duas semanas.
É verdade que o COVID-19 tem de fato um comportamento singular e não totalmente conhecido, quanto à taxa de infecção e mortalidade, o que cria muitas variáveis em seu avanço conforme os vários países. Mas a disputa que vêm travando Trump e Bolsonaro não é fruto apenas disso, nem da ignorância, nem de um pensamento anticientífico.
Eles fizeram propriamente uma aposta política, escolheram determinado terreno de combate por suas estratégias políticas. Assumiram posições que contrapõe os custos da pandemia em vidas perdidas com os custos da paralisia econômica do isolamento social proposto por todas as autoridades de saúde conhecidas. Trump escanteou o Dr. Fauci, sua maior autoridade epidemiológica; Bolsonaro fez sabotagem explícita contra o Ministro da Saúde na condução das medidas contra a crise sanitária e vai se livrar dele.
Trump e Bolsonaro tentam “cair de pé” num debate já perdido, esperando compensar a defensiva mais adiante, com uma pretensa e rápida retomada econômica. Apareceriam como os “salvadores da economia”, por assim dizer. Afinal, Trump tem eleições pela frente este ano; Bolsonaro tem por estratégia central impedir o impeachment, reeleger-se e destruir a esquerda e forças progressistas.
Mas isso já teve e terá ainda maior custo humano e social, realmente impagáveis, com mortes que poderiam ser evitadas. Na marcha em que está a pandemia, isso significa centenas de milhares de óbitos a mais. O negacionismo de ambos face à COVID-19 é expressão de total falta de escrúpulos e de completa amoralidade.
Naturalmente, o outro palco da disputa é sobre os rumos, formas e ritmos para a proteção da economia e a retomada da atividade. Subestimando a crise, ambos os presidentes perderam tempo precioso em proteger suas populações. Depois evidenciou-se que seus referenciais tinham pontos cegos para o que se devia fazer de imediato (aliás, como para todo o mainstream econômico capitalista mundial de neoliberalismo senil). Tardiamente reagiram. No Brasil as medidas foram insuficientes e demoram a se efetivar.
Nessa disputa de narrativas não podia faltar a velha contenda sobre rumos e caminhos contrapostos do que se deve fazer na economia: quem paga a conta? Ficam evidentes lutas de classes para fazer a conta recair sobre os que mais podem pagar. Trata-se de priorizar o atendimento aos mais vulneráveis diante da pandemia: os trabalhadores em geral, com renda paralisada ou em declínio, os desempregados e precarizados, os mais carentes socialmente, pequenos e médios empresários, a indústria, as mulheres sobre as quais mais pesa tudo isso, acrescido do aumento da violência doméstica, os negros sempre mais vulneráveis na escala social, em especial diante de sistemas de saúde voltados para o lucro.
A singularidade que Trump e Bolsonaro sustentaram foi a contraposição entre as medidas necessárias para debelar a pandemia e aquelas para evitar a maior paralisia da demanda e da oferta de produtos. Que valor teria, abre aspas, “a morte de alguns velhinhos e afundar a economia”? Seguidas vezes Bolsonaro adotou este tom, tratando o COVID-19 como simples gripe e opondo-se ao isolamento social massivo e precoce.
Devemos atentar para ambas as coisas: salvar vidas é, de imediato, salvar também a economia presente e futura. Investir maciçamente em Saúde, sustentar renda, emprego e salário, assegurar renda mínima aos que dela necessitam, por exemplo, não são só questões cruciais imediatas para a atual situação do povo, como também, para a ulterior retomada da economia, promovendo a demanda e estimulando a oferta.
A questão essencial evidenciada nessa disputa é a centralidade do papel do Estado nacional, que se torna evidente, para tomar essas medidas. Desvela-se a falácia do Estado mínimo, austeridade, fiscalismo, corte de gastos públicos, privatizações, autonomia do Banco Central, enfim, de toda a política regida pelos interesses financeiros, regiamente remunerados pelo financiamento da dívida pública.
Em ambas as frentes de combate entra a questão maior, que é elevar a consciência política e racional do povo, que é também um palco de disputa, a saber, o terreno decisivo da luta de ideias. Abre-se uma janela mais favorável contra o avanço das forças obscurantistas e de extrema-direita na luta pelo imaginário social. A ofensiva de tais forças na última década se apoiou, como se sabe, na noção antissistema cevada no ambiente de “morte da verdade”, ou seja, no terraplanismo, criacionismo, crendices, notícias falsas, meias verdades e inverdades, obscurantismo. Enfim, o relativismo absoluto e niilismo quanto ao que é real.
A luta contra a pandemia, ao contrário, põe a questão da ciência e racionalismo em primeiro plano e em grande escala para toda a população, envolvendo poderosos meios de comunicação de massa. Mais difícil ficará para a extrema-direita resistir ao retorno da razão, isolados progressivamente em bolsões odientos e enfraquecidos. Ao contrário, impulsiona maior acúmulo de forças dos setores progressistas, ao realçar as mensagens humanistas, próprias do ser humano, e as redes de solidariedade. Esse sentimento foi magnificamente representado pelo Papa Francisco, na missa solitária, mas universal, que rezou no Vaticano.
Esses três aspectos servem de alerta e cuidados quanto às formas com que se pretende politizar a crise. Por ora, quem faz isso negativamente são os dois presidentes, com seu politicismo baixo. Nós precisamos convencer a maioria da sociedade de que as saídas para a presente situação está na grande Política, aquela que luta por um destino solidário de toda a Humanidade, em benefício de todos.
A pandemia está abrindo um novo momento nessas grandes batalhas, e ideias generosas e solidárias vencerão as trevas.
(*) Vice-Presidente Nacional e Secretário de Relações Internacionais do Partido Comunista do Brasil (PCdoB).