“Na semana passada, o portal WikiLeaks divulgou uma série de documentos internos demonstrando que a equipe que escreveu o informe da OPAQ [Organização para a Proibição de Armas Químicas] sobre Douma não esteve na Síria”, denuncia o escritor canadense Yves Engler em artigo que traduzimos e publicamos a seguir. Engler acrescenta que entre os documentos apontados pelo WikiLeaks, “um memorando nota que 20 inspetores da OPAQ sentiam que o informe divulgado ‘não refletia as visões dos membros da equipe que foi deslocada para a Síria’”.
Com base em tais documentos e outros elementos descritos na matéria, Engler faz uma aguçada análise do apoio do governo canadense às mentiras acerca do suposto ataque químico pelo governo sírio em Douma.
O autor descortina o caminho usado e o dinheiro investido para justificar ataque norte-americano ao país em luta contra intervenção terrorista bancada por Washington e Arábia Saudita. Publicamos, a seguir, o artigo.
N.B.
YVES ENGLER*
Entre os princípios básicos da reportagem jornalística, como é ensinado em toda escola de jornalismo, estão: busca constante pela verdade; dar voz a todos os lados da história; quando surge nova informação sobre uma história já reportada, uma correção ou continuação devem ser produzidos.
Mas, a mídia canadense ignorou revelações explosivas da Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ). É um exemplo de sua cumplicidade com a política eterna beligerante com relação à Síria.
Veja íntegra e fac-símile do memorando de um dos inspetores ao diretor-geral da OPAQ, Fernando Arias:
https://wikileaks.org/opcw-douma/document/DG-memo1/page-1/#pagination
Em maio de 2019, um integrante da Missão de Pesquisa da OPAQ na Síria, Ian Henderson, divulgou um documento afirmando que a direção da organização enganou o público sobre o propalado ataque químico em Douma em abril de 2018. Ele mostrou que a organização suprimiu uma conclusão que contraditava a afirmação de que um cilindro de gás fora atirado do ar. Em novembro, outro denunciante de dentro da OPAQ acrescentou elementos às revelações de Henderson, declarando que suas conclusões de que o incidente “foi um evento não relacionado a química” foram distorcidas para implicarem no oposto.
Na semana passada, o portal WikiLeaks divulgou uma série de documentos internos demonstrando que a equipe que escreveu o informe da OPAQ sobre Douma não esteve na Síria. Um memorando nota que 20 inspetores da OPAQ sentiam que o informe divulgado “não refletia as visões dos membros da equipe que foi deslocada para a Síria”.
[No mesmo memorando o autor alerta para as distorções “que podem impactar de forma negativa a credibilidade e a integridade do Secretariado Técnico”]
Eu não consegui encontrar nenhum informe sobre os denunciantes ou vazamentos em qualquer dos principais jornais da mídia canadense. Eles também ignoraram supressões explícitas destes vazamentos.
O jornalista Tareq Haddad declarou que renunciou de seu emprego na Newsweek “depois de minhas tentativas de publicar revelações valiosas do ponto de vista noticioso sobre carta da OPAQ vazada. Recusas sem apresentação de razões válidas”. Haddad escreveu um longo artigo explicando sua renúncia, onde detalha como um editor que antes trabalhou no Conselho Europeu de Relações Exteriores bloqueou sua matéria.
Há um importante ângulo canadense para esta história. Vinte e quatro horas após o alegado ataque químico de 7 de abril de 2018, o a ministro de Relações Exteriores Chrystia Freeland lançou uma declaração afirmando que “está claro para o Canadá que armas químicas foram utilizadas e que foram utilizadas pelo regime de Assad”. Cinco dias depois, o primeiro-ministro Justin Trudeau apoiou bombardeio com mísseis cruzeiro contra uma base militar síria declarando que “o Canadá apoia a decisão dos Estados Unidos, Inglaterra e França de agirem para diminuir a habilidade do regime de Assad de lançar mísseis contra seu próprio povo”.
Funcionários do governo canadense pressionaram a organização para que esta acusasse o governo de Bashar al-Assad por ataques químicos desde que a Síria passou a integrar a OPAQ e destruiu seu próprio estoque de armas químicas em 2013–14. A enviada especial do Canadá à OPAQ, Sabine Nolke, tem, repetidamente, acusado as forças de Assad pelo emprego de armas químicas. Ao invés de expressar preocupação acerca da manipulação política de evidências, Nolke criticou o vazamento. Em declaração após o posicionamento de Henderson se tornar público, ela destacou que “o Canadá se mantém firme em sua confiança na integridade profissional do FFM (sigla em inglês para a Missão de Investigação) e seus métodos. No entanto, senhor Chair, nós estamos desconfortáveis quanto ao vazamento de documentos oficiais do Secretariado Técnico”.
Em meio aos esforços para culpar o governo sírio pelo uso de armas químicas, funcionários canadenses enalteceram a OPAQ e despejaram dezenas de milhões de dólares sobre a organização. Um despacho do portal Global Affairs de junho de 2017 expõe que “o Canadá e os Estados Unidos são os maiores contribuintes nacionais ao JIM (sigla em inglês para Mecanismo Investigativo para Atribuir Responsabilidade pelos Ataques com Armas Químicas na Síria). A declaração acrescenta que o Canadá é o maior contribuinte em termos de pagamentos voluntários à organização, tendo fornecido perto de 25 milhões de dólares desde 2012 para ajudar a destruir armas químicas na Líbia e na Síria e para apoiar contingenciais missões especiais relacionadas ao uso de armas químicas, investigação, verificação e monitoramento na Síria”. Dois meses depois do incidente em Douma, Freeland anunciou uma contribuição de 7.5 milhões de dólares à OPAQ em uma declaração fortemente focada na Síria. Em agosto a general Julie Payette até viajou a Haia para pressionar o diretor-geral da OPAQ, Fernando Arias, acerca da Síria. Depois de um “encontro com enfoque nas atividades da OPAQ na Síria”, Payette realçou os “fundos voluntários canadenses em 23 milhões de dólares para atividades relacionadas à Síria.
Ottawa apoiou o grupo que produziu (e provavelmente encenou) o vídeo com o propósito de mostrar o uso de armas químicas em Douma. Os Liberais [partido governista] bancaram os White Helmets (capacetes brancos) em termos diplomáticos e financeiros. Em um despacho sobre o suposto ataque em Douma, Freeland expressou que o Canadá “tem admiração pelos White Helmets”, para depois os chamar de “heróis”.
Representantes dos White Helmets repetidamente vieram a Ottawa para encontrar com funcionários de governo canadenses entre os quais aqueles que ajudaram seus membros a fugirem da Síria via Israel em julho de 2018. Junto aos milhões de dólares dos governos dos EUA, Inglaterra, Holanda, Alemanha e França, Global Affairs anunciou a entrega de “12 milhões de dólares para grupos na Síria, tais como os White Helmets, que estão salvando vidas ao fornecerem às comunidades serviços de resposta emergencial e remoção de explosivos”.
Creditados com o resgate de pessoas encontradas em prédios bombardeados os White Helmets estimularam a oposição a Assad e apoiaram a invasão ocidental. Fundado pelo ex-oficial inglês, James Le Mesurier, aperaram quase que inteiramente nas áreas da Síria ocupadas pelos grupos apoiados pela Arábia Saudita e Washington, os ‘insurgentes’ de Nusra/Al Qaeda e outros ‘rebeldes’. Eles criticavam o governo sírio e disseminavam imagens de suposta violência enquanto ignoravam amplamente os civis atingidos pela ‘oposição’. Seus integrantes eram repetidamente fotografados com jihadistas da Al Qaeda e há informe de sua participação em execuções perpetradas por estes grupos.
Os White Helmets ajudaram a estabelecer sistemas de alarme para bombardeios aéreos que beneficiavam os ‘insurgentes’. Definidos como uma das formas de salvação de civis, o sistema “Sentry” buscava e checava informações sobre ataques potenciais aos grupos.
O Canadá financiou os “Sistemas Hala” de aviso antiaéreo, que foi acionado através do ex-diplomata dos Estados Unidos na Síria, John Jaeger. Não está claro quanto dinheiro canadense esteve envolvido nesta iniciativa mas, em setembro de 2018, o Global Affairs propala que “o Canada é o maior contribuinte para o projeto ‘Sentry’”.
Ottawa está dedicado particularmente a manchar as ações de guerra da Síria, e claramente o faz através da mídia predominante. Comprometida com uma avaliação altamente simplista acerca de um complexo e multilateral conflito, ela suprimiu evidências que apontam a uma importante organização internacional por ter distorcido evidência em alinhamento com uma narrativa usada para justificar bombardeios militares.
Jornalistas devem buscar a verdade, não simplesmente repetir o que seus governos dizem. De fato, o que é ensinado nas escolas de Jornalismo é que os jornalistas têm uma grande reponsabilidade de questionar aquilo que seus governos proclamam como verdades.
Nenhuma cadeira de jornalismo no Canadá ensina que se deve sempre acreditar nos governos, especialmente em questões militares ou internacionais. Mas é assim que tem agido a mídia dominante no caso das armas químicas na Síria.
* Yves Engler é articulista e escritor canadense