O plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu por 9 a 1 suspender o dossiê do governo contra 579 servidores, entre os quais policiais e professores.
O Ministério da Justiça, através da Secretaria de Operações Integradas (Seopi), produziu ilegalmente uma lista com informações sobre 579 pessoas defensoras da democracia e críticas da insanidade de Jair Bolsonaro.
Entre os bisbilhotados pelo governo estão integrantes do grupo “Policiais Antifascismo” e o professor da USP, Paulo Sérgio Pinheiro, um dos fundadores do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP). Paulo Sérgio Pinheiro é considerado e reconhecido por autoridades e organizações nacionais e internacionais como um dos grandes nomes da história dos Direitos Humanos no Brasil e no mundo, tanto por sua atuação acadêmica, quanto por sua trajetória de atuação política.
Foi Secretário Nacional de Direitos Humanos, membro da Comissão Nacional da Verdade e professor titular da Universidade de São Paulo, além de ter lecionado na Brown University, Columbia University, Notre Dame University, Oxford University e École des Hautes Études en Sciences Sociales.
O julgamento da ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 722, movida pelo partido Rede Sustentabilidade, começou na quarta-feira (19), com o voto da ministra Cármen Lúcia, relatora do caso.
A ministra argumentou que “todos, inclusive o Estado, têm que estar submetidos aos limites da Constituição”. Ela questionou a argumentação do ministro da Justiça, André Mendonça, que, de início, negou a existência do documento, e depois disse que não solicitou a elaboração do dossiê. A ministra achou estranho o chefe da pasta apontar que não sabia da iniciativa de bisbilhotagem e, ao mesmo tempo, afastar o responsável pelo órgão que fez o dossiê.
No dia 3 de agosto, Ministério da Justiça anunciou o afastamento do diretor de inteligência da Seopi, Gilson Libório Mendes, que foi o responsável por fazer o “dossiê”.
Para Carmén Lúcia, “não compete a ninguém fazer dossiê contra quem quer que seja nem instaurar procedimento inquisitorial”. “O Estado não está acima da lei”, afirmou a ministra.
“Não é dito: ‘não é dossiê, não há relatório'”. “A pergunta é simples: existe ou não? Se existe e estiver fora dos limites constitucionais, é lesão a preceito fundamental. Se não existe, bastaria dizer que não existe”, afirmou a ministra.
O ministro Alexandre de Moraes foi o primeiro a votar nesta quinta-feira (20). O ministro assinalou que a existência do tal dossiê não foi posta em dúvida em nenhum momento e que relatórios de inteligência não podem ser feitos com objetivo de “bisbilhotar” preferências ideológicas de servidores.
“Uma coisa são relatórios para se verificar eventuais manifestações que possam interromper, como houve com a greve dos caminhoneiros, o abastecimento. São fatos. Outra coisa é começar a planilhar estado por estado, policiais militares, civis que são lideranças eventualmente contra o governo, contra manifestações realizadas a favor do governo. Qual o interesse disso?”
O ministro Edson Fachin afirmou que esse tipo de levantamento sobre escolhas pessoais e políticas de cidadãos só se cogita “em governos autoritários”.
“A administração pública não tem, nem pode ter, o pretenso direito de listar inimigos do regime”, afirmou.
O ministro Luís Roberto Barroso reconheceu que a atividade de inteligência é importante, mas que esse tipo de monitoramento para saber o que fazem eventuais adversários é completamente incompatível com a democracia, a menos que se tivesse qualquer elemento para supor que eles tramavam contra o estado e contra as instituições democráticas.
“Mas se a preocupação fosse efetivamente essa, talvez fosse o caso de monitorar os grupos fascistas, e não os grupos antifascistas”, ponderou.
Para a ministra Rosa Weber, “o poder arbitrário sem o freio das leis, exercido no interesse do governante e contra os interesses do governado, o medo como princípio da ação, traduz as marcas registradas da tirania”.
O ministro Luiz Fux foi o sexto voto que deu maioria pela suspensão da produção de informações de cidadãos pelo Ministério da Justiça.
O ministro argumentou que “todo estado soberano reclama a existência de um serviço de inteligência”, mas que ninguém pode ser bisbilhotado por suas opiniões.
“O STF tem dado exemplos extremamente significativos de que liberdade de expressão é algo que combina com a democracia. Uma investigação enviesada, que escolhe pessoas para investigar, revela uma inegável finalidade intimidadora do próprio ato de investigação”, avaliou o ministro.
Para ele, “o que se contém nesse documento são fatos impassíveis de serem categorizados como fatos de relatório de inteligência”.
“Deveria se denominar relatório de desinteligência”, disse. “Estamos no estado democrático de direito, é proibido proibir manifestações democráticas”, arrematou.
Fux assumirá em setembro a presidência do STF, no lugar de Dias Toffoli.
Ricardo Lewandowski repudiou a elaboração de dossiês contra críticos. “O que não se admite é que num estado democrático de direito se elabore dossiês sobre cidadãos dos quais constem informações quanto as suas preferências ideológicas, políticas, religiosas, culturais, artísticas ou, inclusive e especialmente, de caráter afetivo”, afirmou.
O ministro Gilmar Mendes enfatizou que “a atuação estatal indevida tem efeito pernicioso sobre a sociedade como um todo, porque gera desestímulo a ideias, desestímulos ao debate de ideais e de ideias contrárias àquelas defendidas pelo governante”.
Para ele, “o Ministério da Justiça não apresentou qualquer justificativa plausível para a produção de relatórios sobre os integrantes do movimento antifascista”.
Ele insinuou que a produção de dossiês começou na gestão do ex-ministro Sérgio Moro, antecessor de André Mendonça.
Moro rebateu a insinuação numa curta nota, afirmando que “desconhece qualquer relatório de inteligência sobre movimentos antifascistas” produzido durante a sua gestão. Segundo Moro, “causa estranheza a suposta requisição de um relatório” no dia de sua demissão e que seu trabalho “sempre foi pautado pela legalidade, ética e respeito à Constituição Federal”.
O ministro Dias Toffoli, presidente do tribunal, também seguiu o voto da relatora, ministra Cármen Lúcia.
O único voto contrário foi o do ministro Marco Aurélio Mello, que classificou o dossiê como um “cadastro lícito”. Para ele, a ação da Rede não foi adequada.
O ministro Celso de Mello, o decano da Corte, está de licença médica.
Na sessão de quarta-feira, o procurador-geral da República, Augusto Aras, disse não ver ilegalidade na produção do relatório e o advogado-geral da União, José Levi, alegou que o governo federal não apoia qualquer tipo de “totalitarismo”, mas defendeu o dossiê.
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