Entre os pensadores brasileiros, certamente Darcy Ribeiro é um dos mais instigantes. Nesta reportagem, da Série “Entrevistas Históricas da Folha de São Paulo”, cujos extratos o ex-deputado Haroldo Lima, dirigente nacional do PCdoB, nos brinda, essa característica questionadora e irreverente do ex-ministro da Educação e, depois, Chefe da Casa Civil de Jango fica bastante evidente.
Ne entrevista, e no texto inédito publicado pela Folha, ele faz referências a diversos intelectuais brasileiros (Mario de Andrade, Florestan Fernandes, Anísio Teixeira, Gilberto Freire e outros), concerne a episódios importantes e termina com algumas apreciações antropológicas sobre o Brasil e outros países.
A reportagem foi feita a Marcos Augusto Gonçalves e publicada pela Folha de São Paulo em 12 de fevereiro de 2020. Darcy Ribeiro falou com o jornalista depois de fugir do hospital. Com vocês, o histórico depoimento deste que foi um dos maiores intelectuais brasileiros.
O sr. tinha contato com intelectuais mais velhos?
Eu convidei de São Paulo, para uma conferência no diretório estudantil, o sociólogo norte-americano Donald Pierson. Mostrei Ouro Preto e Mariana para ele, a prosa foi boa e eu o impressionei como jovem brilhante. Ele, então, me deu uma bolsa para estudar sociologia política em São Paulo. Anos depois ele se queixava, dizendo que tinha má pontaria: todo o jovem por quem se interessava, como o Florestan Fernandes e eu, acabavam se revelando comunistas… Ele queria ter criado um sociólogo como ele, de direita, e não conseguiu.
Como era a cidade?
Eu morei em muitos bairros, que hoje frequento com saudade e também com raiva. Por exemplo, na igreja da Consolação tinha uma bela praça, larga, com uma escola. Era um lugar em que eu namorava. Agora converteram num supermercado e numa passagem de metrô. E encheram a avenida São João com um viaduto horroroso. São os horrores de São Paulo. O Tietê e o Pinheiros, rios importantes, geográficos e bonitos, estão cheios de avenidas ao lado.
Todas as cidades do mundo amam os seus rios, Londres, Paris, Nova York. São Paulo é a única que não ama. O Pinheiros e o Tietê foram convertidos num fosso sanitário para carregar bosta de paulista. É uma coisa realmente lamentável. São Paulo nunca se deu confortos. Os paulistas têm orgulho da cidade que mais tem asfalto por habitante no mundo. Mas eu me lembro com saudade de Higienópolis, da rua Caio Prado, e dos lugares que eu vivi.
Mas o que eu queria mesmo era dirigir o “Hoje”, um jornal comunista. O diretor, Câmara Ferreira, ia passar um ano fora, estudando na Rússia. Me ofereci, mas a direção do partido preferiu me “liberar” para os estudos. Diziam que precisavam de intelectuais e que eu deveria prosseguir meu trabalho universitário. Na verdade, o partido me jogou fora. Eu era agitador, era perigoso. Foi uma recusa que me fez sofrer muito. Fiquei numa situação contraditória: não era um renegado e não tinha sido expulso. Me considerava “licenciado”. Fui estudar os índios e fiquei nessa postura vaga até 54, quando o suicídio do Getúlio fez minha cabeça.
Como era o ambiente na Universidade de São Paulo?
A escola tinha um grupo forte. Estavam por lá o Lévi-Strauss e o Radcliffe Brown (sociólogo inglês, 1881-1955), as duas maiores figuras mundiais da antropologia. Foi, portanto, um curso da mais alta qualidade. São Paulo foi que me catapultou. Se eu tivesse ficado em qualquer outro lugar do Brasil, não teria optado por ir para o mato, viver com os índios. São Paulo me deu ideais científicos.
O sr. conheceu Mário de Andrade?
Tenho um caso curioso com ele. O paulista mais interessado em etnologia, o mais inteligente e vivo, o que eu mais admirava, era o Mário de Andrade. Um dia, marquei um encontro com ele, na livraria Jaraguá, na rua Marconi. Era uma livraria com casa de chá. Estava me preparando para a pesquisa de campo, tinha muitas perguntas a fazer e muito o que ouvir. Cheguei muito entusiasmado, mas para minha decepção, Mário estava sentado com dois inimigos: Germinal Feijó e Paulo Emílio Salles Gomes. Dois trotskistas. Os comunistas eram proibidos de falar com trotskistas. Eu tinha raiva de trotskistas. Depois, o Paulo Emílio veio a ser grande amigo meu, me ajudou a construir a Universidade de Brasília. Mas naquela fase eu tinha raiva. E acabei não falando com o Mário, que era a pessoa com quem eu mais queria ter falado. Logo depois ele morreu.
Quem mais o influenciou na época?
Havia um professor alemão, Herbert Baldus. Ele teve muita influência na minha formação. Foi ele quem me empurrou para a carreira de etnólogo. Era um alemão atípico. Passou a Segunda Guerra em São Paulo. Era poeta.
O sr. teve contato nessa época com o Lévi-Strauss?
Muito longínquo. Assisti conferências. O Baldus foi mais importante, inclusive para outros colegas, como o Florestan Fernandes. Ele nos empurrava para a pesquisa de campo.
O sr. já tinha interesse por Gilberto Freyre?
Tinha. Toda a esquerda era muito contra o Gilberto. Falavam muito mal dele. Eu comecei a desconfiar que alguma coisa estava podre, porque “Casa Grande e Senzala” e “Sobrados e Mocambos” me encantaram. Eu reconheci logo que eram livros muito melhores do que “Os Sertões” e que tudo aquilo com o Gilberto era sectarismo. Mas ele era uma peça reacionaríssima. “Casa Grande e Senzala” é o ponto de vista da casa grande. Fala do negro dentro de casa, do negro fiel, mas não fala do negro de massa. Só no último parágrafo do livro ele fala que há também os negros no eito, que quando morrem são jogados na praia para urubu pinicar. O livro tem muita casa grande e pouca senzala.
Isso me inspirou um pouco para o livro que faço agora, que está ligado à necessidade de uma antropologia da sociedade brasileira, que não tenha uma visão de classe tão estreita quanto a do livro do Gilberto. Eu vim a conhecê-lo já formado, já professor, no Rio. O Anísio Teixeira, o homem mais inteligente que eu conheci, que me levou depois para a área da educação, me convidou para uma mesa em homenagem ao Gilberto. Na hora, o malandro do Anísio se levantou e disse: “O Gilberto vai ser saudado por Darcy Ribeiro”. Eu protocomunista. Gilberto da direita. E tive que falar de improviso da minha enorme admiração.
Depois, fui convidado, em segredo, para fazer o prefácio de uma edição em espanhol de “Casa Grande e Senzala”. Foi a crítica mais severa e o elogio mais deslavado que já se fez ao Gilberto. Sei que dei uma grande alegria a ele. Um homem de esquerda reconhecer a grandeza, a importância e a beleza do livro.
Quando partiu para o trabalho de campo o sr. foi direto ao encontro dos índios kadiwéu?
Queria pesquisar esses índios cavaleiros. Eram dos índios mais falados do Brasil, os únicos que tinham adotado os cavalos. Criaram um verdadeiro império, que ia da fronteira de São Paulo até a Bolívia. Do norte de Mato Grosso até Assunção. Era um império. Uma gente que substituiu praticamente o parto pela adoção. Tomavam crianças de dois anos das tribos que eles dominavam e as mulheres criavam esses meninos. Eu me preparei para estudar esses índios, mas como não sou besta, antes de ver os meus índios quis ver outros, para ter uma base de comparação. Estudei os terena e os kaiowá.
Me impressionei com a inserção dos terena no sistema de trabalho do sul de Mato Grosso. Eram os principais trabalhadores enxadeiros da região, enxadeiros confiáveis. Aquele era o lugar que um índio que deixava de ser índio podia ocupar. Uma coisa também terrível foi ver a espiritualidade dos kaiowá. Uma gente maltrapilha, com um sofrimento tremendo. Tinham sido missionarizados pelos jesuítas, mas reconstituíram sua cultura. Saíam em andanças no rumo de Santos. Acreditavam que, se dançassem até o corpo ficar muito leve, eles levitariam e iriam ter à terra sem mares, a terra de Maíra. É um mito de uma grande beleza. São índios que hoje estão se suicidando.
E os “seus” índios?
Os kadiwéu guardavam ainda alguma coisa do orgulho de um povo cavaleiro. Tive uma inserção muito boa na tribo. As mulheres quiseram casar comigo. Levei o livro de um etnólogo italiano, Guido Boggiani. Ao olharem comigo as ilustrações, eles reconheceram o retrato de uma mulher. Gritavam: “Lili, Lili!” Depois, na Itália, me entrevistaram sobre o Boggiani e me perguntaram de sua mulher kadiwéu. Mas não era uma mulher, era um homem, que vivia como mulher —o homossexualismo nessas tribos tinha a possibilidade de existir, o homem podia decidir se seria homem ou mulher. O fato é que tive uma relação muito profunda com eles, fiquei muito apegado emocionalmente, e até hoje recebo mensagens de lá.
Depois fui estudar os chamados urubus, os índios mais violentos do Brasil, na fronteira do Pará com o Maranhão. Fiz duas expedições, uma de nove meses, em 49, e uma de onze meses, posteriormente. Estive também no Xingu, estive com os bororos e com índios aculturados, em São Paulo.
Como foi seu encontro, posteriormente, com o Lévi-Strauss, em Paris?
Foi uma coisa gozada. Eu tinha publicado meu livro “O Processo Civilizatório”. Mandei para ele e depois fui procurá-lo para saber o que tinha achado. Ele respondeu: “Me interessou” —com um muxoxo. Eu disse: “Mas mestre, o que é isso, esse livro me custou tanto esforço, o senhor não pode me dar uma opinião?” Ele disse: “Não, não. Essa obra teórica sua e minha é bobagem. Você é um príncipe dos observadores, sua etnografia é ótima, por isso uso muito os mitos que você colhe. Quem pode fazer isso deve fazer isso, ficar estudando os índios”. E eu rebati: “E você fazendo a teoria?”. Ele disse: “Não é nesse sentido, minha obra teórica não vai durar 20 anos. O importante é a etnografia”. Eu saí muito puto com ele, porque era uma divisão de trabalho que eu não aceitava.
Como o sr. foi, afinal, parar na vida política institucional, na política mais próxima do Estado?
Em 1954 eu estava em São Paulo. Eram as comemorações do quarto centenário de São Paulo. Estava ajudando a montar uma exposição luso-brasileira, para a qual o Oscar Niemeyer havia projetado um museu redondo, no Ibirapuera —que os imbecis acabaram entregando à Aeronáutica, para colocar avião velho. Havia um congresso e eu mostrava um filme que tinha feito sobre um funeral bororo. No meio daquilo, vem a notícia de que o Getúlio tinha se suicidado. Na época, estava inclinado a acreditar naquela história do “mar de lama”. Mas levei um susto e, naquele momento, comecei a ver que o Getúlio era vítima de uma campanha da mídia.
Ele estava criando a Petrobras e a Eletrobras. Estava sendo enxotado do Catete. Os próprios ministros achavam que ele deveria sair, para evitar a guerra civil. Ao invés disso, esse homem, de 71 anos, arrebenta o coração com uma bala. Para acordar o povo brasileiro. E acordou. Todos os brasileiros viram que era um complô contra ele, contra a política trabalhista e nacionalista dele. Foi uma revirada na política. Lacerda esperava ser presidente da República e acabou escondido na caixa d’água. Toda a direita se recolheu. E quem alcançou o poder foi JK, que fez um governo brilhante.
Como o sr. conheceu João Goulart?
Foi no Rio. Ele foi com a Maria Teresa, que naquela época era a mulher mais bonita do mundo! Estavam em lua de mel. Um amigo nos apresentou.
Com ele o sr. partiu para o trabalho na área de educação?
Foi depois de 54 que deixei de trabalhar com índios e passei a trabalhar com o Anísio Teixeira. Ele se apegou muito a mim. Era uma pessoa com muitos planos, que trabalhava com o Juscelino. Ele enfrentou uma campanha de setores da Igreja e eu saí em defesa dele. O Juscelino o manteve no governo e acabamos indo trabalhar juntos. Foi daí surgiu a ideia da Universidade de Brasília. Junto com os líderes da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência formulei o projeto de uma universidade de novo tipo. Passei dois anos lutando para criá-la.
Foi muito difícil?
Foi muito. No dia em que o Jânio renunciou, eu fui ao Palácio falar com o José Aparecido, que era secretário do presidente. Estava aquele ambiente soturno. Eu não sabia de nada. Ele me disse para ir à Câmara. Cheguei lá e tinham acabado de aprovar a carta de renúncia. Os deputados estavam agitadíssimos. Fui para a mesa e pedi para o Sérgio Magalhães colocar em votação a lei de criação da Universidade de Brasília. Ele disse: “Você está louco”. Mas acabou fazendo e a lei foi aprovada. Depois fui ao Senado. Falei com o Hermes Lima, que era o primeiro-ministro. Ele me recomendou que falasse com o Felinto Muller, então senador e presidente do PSD. Disse: “Eu? Procurar o Felinto Muller?” Mas acabei indo.
Ele, que era um homem de direita, gostou muito que um comunista o procurasse. Me convidou para tomar um chá na casa dele, aliás acompanhado de um bolo muito gostoso. Passou um tempo e ele me avisou: “Vai para a sessão de amanhã que o Senado vai aprovar sua Universidade”. Um senador do Rio Grande Sul, Mem de Sá, fez um discurso extremamente eloquente, dizendo que eu era um homem muito inteligente, muito coerente e comunista. E se era assim, a Universidade seria comunista. O Felinto nem olhou para mim. Botou em votação e a lei foi aprovada por grande maioria. Convidei o Anísio para ser o reitor. Ele se negou e, em função disso, o primeiro reitor fui eu.
Qual a sua impressão sobre o Jango?
Era um homem curioso, um fazendeiro muito eficiente. Quando foi para a presidência, tinha muitas fazendas, engordava 20 mil cabeças de gado por ano. Mas era um homem generoso, preocupado com a pobreza. Era um homem simples, nacionalista, muito predisposto a atos de coragem para passar o Brasil a limpo.
Jango não foi derrubado por seus defeitos, mas por suas qualidades, que a direita não podia admitir. Os projetos de reforma agrária e da lei de controle do capital estrangeiro provocaram sua queda. Eu achava que ele deveria se defender do golpe. Quando os militares, em Minas, se levantaram contra o governo federal, eu sugeri que Jango enviasse aviões só para para “lamber” a tropa. Eles recuariam. Mas ele temia que isso se transformasse numa luta fratricida. Não queria dar ordem de fogo. Achava melhor cair do que desencadear uma guerra civil. Não quis topar a briga e a direita o pôs para fora. Não poderia imaginar que o resultado fosse o que foi.
Para onde o sr. foi depois do golpe?
Para o Uruguai. Fui contratado para trabalhar. Fui inicialmente professor de antropologia e depois passei a coordenar a reforma da Universidade do Uruguai. Passei a viver no mundo como professor de antropologia e especialista em universidades. O exílio foi para mim muito fecundo. Publiquei uma obra copiosa. Voltei ao meu veio de romancista com “Maíra”, que foi uma forma de fugir do exílio e voltar aos índios.
E a produção teórica?
Completei, em 68, um livro sobre o Brasil, chamado “Os Brasileiros”. Quando terminei vi que não valia a pena publicá-lo, por não ter nenhuma novidade. O que estava ali era sabido: que o Brasil não era explicável, por faltar uma teoria para explicar o Brasil. Os EUA não precisam disso, eles podem tomar as teorias europeias para explicar o passado deles. Mas aqui a coisa foi diferente.
Escrevi “O Processo Civilizatório”, que é uma teoria sobre os dez mil anos de história. Foi publicado em muitos lugares. Mas ele fala do Brasil muito genericamente. Eu precisava de uma história de prazo médio.
Fiz, a seguir, “As Américas e a Civilização”, no qual eu me pergunto sobre as causas do desenvolvimento desigual. Por que os Estados Unidos, que eram pobres, se desenvolveram brilhantemente? Por que Brasil e Haiti, que eram a riqueza, caíram na pobreza?
Faltava para o Brasil uma teoria das classes sociais. Evidentemente aqui não havia uma aristocracia brigando com a burguesia e as duas brigando com o proletariado, grávido de uma revolução. Eu mostrei que as classes no Brasil eram totalmente diferentes. Minha angústia recente era justamente a de completar essa copiosa teoria de 2.000 páginas e 98 edições sobre as Américas. Por isso fugi do hospital. Afinal, fiz tudo aquilo para compreender o povo brasileiro e precisava acabar o trabalho. Fiquei ocupado com tantas coisas, que adiei a tarefa.
Mas agora estou acabando. É “O Povo Brasileiro”, este livro que explica a criação de um gênero novo no Brasil. Alguns soldados latinos foram à Gália e latinizaram a Gália, fazendo dela a França; alguns soldados latinos foram à Ibéria e, milagrosamente, converteram os pré-lusitanos nos portugueses e espanhóis. Essa latinidade descansou 1.500 anos lá, saltou o oceano e veio nos latinizar aqui. Nós somos uma Roma tardia, feita 2.000 anos depois da saída dos soldados romanos.
Qual foi sua atividade política no exílio?
Tive muita vivência política. No início fiquei com o Jango e o Brizola no Uruguai, pensando formas de invadir o Brasil. Depois larguei disso. Em 68, os meninos fizeram a marcha dos 100 mil aqui e eu achei que era covardia ficar escondido. Voltei e fiquei preso nove meses. Veio um novo exílio. Fui para a Venezuela, o Peru e, depois, o Chile. Voltei ao Peru, a convite do general Juan Velasco Alvarado, para ajudar a pensar a revolução peruana. Me interessava essa história de generais pensando em fazer revolução.
Tenho uma história curiosa sobre essa época. O Glauber Rocha, que era muito meu amigo, foi lá me visitar para entender porque eu estava ajudando os milicos. Eu disse a ele que não via chance de o Brasil chegar ao socialismo pela eleição, como o Chile estava chegando. Mas não achava impossível que os militares mudassem de direção, assumindo um rumo mais à esquerda, “nasserista”. E o levei para conhecer o Alvarado. O resultado é que ele deixou o exílio e foi para o Rio dizendo que os gênios da raça eram o Darcy e o Golbery. Queria converter o Golbery. A palavra insólita do Glauber se deve a esse encontro no Peru.
O sr. era muito amigo do ex-governador Brizola?
Nós nos conhecíamos, tratávamos de diversos assuntos. Aprendi a admirá-lo. Mas eu era um homem do Jango. Só na volta do exílio é que, de fato, nos tornamos amigos.
Como o sr. vê o projeto que se articula em torno do presidente Fernando Henrique?
É um luxo para o Brasil ter um homem, um intelectual, da categoria do Fernando Henrique na presidência. Mas para ele chegar a isso, teve que fazer um pacto com a direita. Fernando não é igual a Antônio Carlos, não é igual a Marco Maciel, mas a conjuntura política o levou a essa proximidade. Ao mesmo tempo, ele está cercado por essa meninada perigosa, com a cabeça feita no estrangeiro, que nunca fez nada na vida, mas que está disposta a vender o esqueleto do Brasil.
Eu acho que o Fernando só vai fazer seu governo de verdade no próximo mandato. Vai haver reeleição e aí será eleito o Fernando Fernando, que talvez faça grandes reformas no Brasil.
O sr. tem uma vida afetiva movimentada?
Eu sou um homem muito amoroso e muito grato às mulheres que me deram amor. E são muitas. Eu me casei de papel passado duas vezes (com Berta, antropóloga, e Claudia Zargos, designer). Mas passei mais tempo descasado do que casado. E mesmo quando casado, sustentava meu casamento com namoradas muito afetuosas. É muito bom para o casamento. Ele fica mais sólido quando você chega em casa contente emocional e sexualmente.
Há um número grande, mas muito menor do que deveria ser, de mulheres que me amaram. Eu tinha direito ao dobro. Mas ainda espero que algumas estejam prontas aí, embora eu esteja muito feio. Estou com uma namoradinha de 25 anos, outra de 30 anos e outra de 40, que me consolam muito.
Então o sr. está muito bem!
Eu acho sempre que se deve ter três namoradas…
CONFRONTOS DE CIVILIZAÇÕES
Somos Povos Novos, cuja tarefa é reinventar o humano
DARCY RIBEIRO
Que é o Brasil entre os povos contemporâneos? Que são os brasileiros? Enquanto povo das Américas contrasta com os Povos Testemunho, como o México e o altiplano andino, com seus povos oriundos de altas civilizações, que vivem o drama de sua dualidade cultural e o desafio de sua fusão numa nova civilização.
Outro bloco contrastante é o dos Povos Transplantados, que representa nas Américas tão-só a reprodução de humanidades e de paisagens européias. Os Estados Unidos da América e o Canadá são de fato mais parecidos e mais aparentados com a África do Sul branca e com a Austrália do que conosco. A Argentina e o Uruguai, invadidos por uma onda gringa que lançou quatro milhões de pessoas de europeus sobre um mero milhão que havia devassado o país e feito a independência, soterrando a velha formação hispano-índia, são outros Transplantados. Só é de perguntar por que, com a economia igual e até mais rica de produção de cereais, de carnes e de lãs, não conseguem a prosperidade da Austrália e do Canadá, que se enriqueceram com muito menos? Será o velho Cromwell e a institucionalidade por ele criada, que ainda regem o Norte, que fazem a diferença?
Os outros latino-americanos são, como nós mesmos, Povos Novos, em fazimento. Tarefa infinitamente mais complexa, porque uma coisa é reproduzir no além-mar o mundo insosso europeu, outra é o drama de refundir altas civilizações, um terceiro desafio, muito diferente, é o nosso, de reinventar o humano, criando um novo gênero de gentes, diferentes de quantas haja.
Se olhamos lá para fora, a África contrasta conosco porque vive ainda o drama de sua europeização, prosseguida por sua própria liderança libertária, que tem mais horror à tribalidade que sobrevive e ameaça explodir, do que à recolonização. São ilusões! Se os índios sobreviventes do Brasil resistiram a toda a brutalidade durante 500 anos e continuam sendo eles mesmos, seus equivalentes da África resistirão também para rir na cara de seus líderes neo-europeizadores. Mundos mais longínquos, como os orientais, mais maduros que a própria Europa, se estruturam na nova civilização, mantendo seu ser, sua cara.
Nós, brasileiros, nesse quadro, somos um povo em ser, impedido de sê-lo. Um povo mestiço na carne e no espírito, já que aqui a mestiçagem jamais foi crime ou pecado. Nela fomos feitos e ainda continuamos nos fazendo. Essa massa de nativos oriundos da mestiçagem viveu por séculos sem consciência de si, afundada na ninguendade. Assim foi até se definir como uma nova identidade étnico-nacional, a de brasileiros. Um povo, até hoje, em ser, na dura busca de seu destino. Olhando-os, ouvindo-os, é fácil perceber que são, de fato, uma nova romanidade, uma romanidade tardia mas melhor, porque lavada em sangue índio e sangue negro.
Com efeito, alguns soldados romanos, acampados na Península Ibérica, ali latinizaram os povos pré-lusitanos. O fizeram tão firmemente que seus filhos mantiveram a latinidade e a cara, resistindo a séculos de opressão de invasores nórdicos e sarracenos. Depois de 2.000 anos nesse esforço, saltaram o mar-oceano e vieram ter no Brasil para plasmar a neo-romanidade que nós somos.
É de assinalar que, apesar de feitos pela fusão de matrizes tão diferenciadas, os brasileiros são, hoje, um dos povos mais homogêneos linguística e culturalmente e também um dos mais integrados socialmente da Terra. Falam uma mesma língua, sem dialetos. Não abrigam nenhum contingente reivindicativo de autonomia, nem se apegam a nenhum passado. Estamos abertos é para o futuro.
Nos unificamos com todos os latino-americanos por nossa oposição comum ao mesmo antagonista, que é a América anglo-saxônica. Nessas bases, comporemos, amanhã, quando se reestruturarem para viver e trabalhar para si próprios, a Nação Latino-Americana. Hoje, somos 500 milhões, amanhã seremos um bilhão. Vale dizer, um contingente humano com magnitude suficiente para encarnar a latinidade em face dos blocos chineses, eslavos, árabes e neobritânicos na humanidade futura.
Nações há no Novo Mundo —EUA, Canadá, Austrália— que são meros transplantes da Europa para amplos espaços de além-mar. Não representam novidade alguma neste mundo. São excedentes que não cabiam mais no Velho Mundo e aqui vieram repetir a Europa, reconstituindo suas paisagens natais para viverem com mais folga e liberdade, sentindo-se em casa. É certo que às vezes se fazem criativos, reinventando a República e a Eleição grega. Raramente. São, a rigor, o oposto de nós.
Somos Povos Novos ainda na luta para nos fazermos a nós mesmos como um gênero humano novo que nunca existiu antes. Tarefa muito mais difícil e penosa, mas também muito mais bela e desafiante.
O Brasil é já a maior das nações neolatinas, pela magnitude populacional, e começa a sê-lo também por sua criatividade artística e cultural. Constrói-se na luta para florescer amanhã como uma nova civilização, mestiça e tropical, orgulhosa de si mesma. Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor, porque incorpora em si mais humanidades. Mais generosa, porque aberta à convivência com todas as raças e todas as culturas e porque assentada na mais bela e luminosa província da Terra.