A pratica dos seguidores de Bolsonaro de negar a ciência e transformar charlatanismo em tratamento contra o coronavírus causou a morte de ao menos cinco pessoas na capital do Amazonas, Manaus. Dentre as vítimas da “nebulização de cloroquina” está Jucicleia de Sousa Lira, de 33 anos, que morreu após a médica Michelle Chechter aplicar o procedimento como um suposto tratamento contra a Covid-19.
Para convencer a enferma, a alegação da médica foi a de que o uso da cloroquina tinha o apoio do presidente Jair Bolsonaro e, assim, seria um tratamento eficaz. O falso tratamento custou a vida da paciente.
A informação foi divulgada na reportagem “Mulher morre após teste clandestino com cloroquina nebulizada em Manaus e deixa recém-nascido” do jornal “Folha de S. Paulo” desta quarta-feira (14) que relatou os casos ocorridos no Instituto da Mulher e Maternidade Dona Lindu (IMDL), hospital público estadual em Manaus onde Jucicleia estava internada. Contaminada, ela havia sido submetida a um parto de emergência em meados de fevereiro e seguiu lutando contra a Covid-19.
O marido, Cleisson Oliveira, pai da criança, só tomou conhecimento de que ela tinha sido cobaia de um tratamento irregular quando recebeu um vídeo divulgado pelas redes bolsonaristas sobre a eficiência do “tratamento”.
Jucicleia só piorou depois de receber a nebulização, até que no início de março, a técnica em radiologia faleceu 27 dias após o nascimento do primeiro filho. A maternidade informou à família que a causa foi infecção generalizada em decorrência da Covid-19.
A responsável pelo procedimento da nebulização da hidroxicloroquina na ocasião foi a ginecologista e obstetra Michelle Chechter. A médica foi também a autora das imagens da sessão de Jucicleia recebeu o tratamento.
O marido de Jucicleia afirma não ter sido avisado durante as conversas no hospital com a doutora Chechter sobre a nebulização ou o vídeo.
Ele só descobriu que a esposa havia assinado uma autorização ao ser informado pela reportagem da Folha, em 8 de abril. No “documento” de apenas três parágrafos, a paciente dá aval ao tratamento e autoriza o uso do depoimento gravado na UTI, além do relato do caso em uma revista científica.
PROTOCOLO
O protocolo adotado em Manaus, e citado pela médica, foi criado pelo médico ucraniano-americano Vladimir Zelenko. Ele ganhou fama após o ex-presidente dos EUA, Donald Trump, tentar emplacar o uso da cloroquina como fármaco eficiente contra a Covid-19.
Em abril de 2020, o ucraniano se tornou alvo de uma investigação por suspeita de ter mentido ao afirmar que seu estudo havia recebido o respaldo da FDA, a agência norte-americana que regula medicamentos.
Ao realizar a aplicação da nebulização a médica paulistana cometeu diversas irregularidades. Uma das principais é a ausência de aprovação prévia por um comitê de ética em pesquisa, algo que a lei exige no Brasil.
Outra falha grave é que a paciente não foi informada dos riscos no momento de assinar o consentimento, conforme prega as normas nacionais do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Segundo apuração da Folha, apenas outra paciente, que também havia acabado de dar a luz, deu aval para passar por uma nebulização. Ela sobreviveu, mas recebeu alta quase dois meses após ter passado pelos procedimentos.
OUTROS CASOS
Pelo menos outras três pacientes receberam nebulização mesmo sem terem autorizado. Todas morreram.
Uma delas seria Ingrid Chaves, de 32 anos, internada com Covid-19 quando estava grávida de cinco meses. Ela deu entrada no IMDL em 10 de fevereiro. Na manhã seguinte, Chechter ministrou hidroxicloroquina à paciente, segundo uma familiar que a acompanhava.
Nesse período, a médica entregou comprimidos nas mãos dessa familiar e a orientou a dar pessoalmente a hidroxicloroquina, sob a alegação de que outros médicos poderiam retirá-la do prontuário, sendo este um procedimento ilegal no país, pois o medicamento de uma pessoa internada só pode ser fornecido pelo hospital.
Pouco mais tarde, por volta das 12 h, Chaves entrou na UTI. A família não sabe se ela recebeu a nebulização após a transferência. Em 26 de fevereiro, Chaves morreu. Os médicos fizeram uma cesárea de emergência, mas o menino veio a óbito em 3 de março.
Segundo a OMS, a hidroxicloroquina oferece risco adicional para mulheres grávidas. “Embora a hidroxicloroquina tenha sido usada em gestantes com doenças autoimunes sistêmicas, como o lúpus eritematoso sistêmico, grávidas podem ter ainda mais razões para relutar em usar hidroxicloroquina para profilaxia de Covid-19”, diz a instituição.
Chechter também atuou em Manaus com outro médico, o professor de neurologia da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), Alexandre Marinho. Ele teria ido a Manaus com cinco alunos de graduação a convite da médica. A presença dos estudantes acabou sendo vetada pela direção da maternidade. Em seguida, os três médicos deixaram de atuar no IMDL.
REDES DO ÓDIO
A morte de Jucicleia não impediu que o vídeo gravado por Chechter continuasse circulando até hoje no WhatsApp, nas redes sociais e em reportagens de veículos bolsonaristas.
Um dos que mais contribuíram para a propagação foi o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Onyx Lorenzoni (DEM). Ele publicou o vídeo no Twitter 18 dias após a morte de Jucicleia e, até domingo (11), a gravação havia sido visualizada 132,5 mil vezes. Após a divulgação da reportagem da Folha, Lorenzoni apagou o vídeo de suas redes sociais.
A gravação também não está mais disponível nas redes sociais de Chechter, mas ela continua pregando o tratamento precoce, a hidroxicloroquina e a prescrição off label, ou seja, o uso de um medicamento que contraria as normas aprovadas pela própria Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
SUL
O procedimento da nebulização da hidroxicloroquina já causou mortes na Região Sul do país. Recentemente, o método foi exaltado pelo presidente Jair Bolsonaro em uma das suas lives semanais.
Em 24 de março deste ano, o Hospital Nossa Senhora Aparecida, de Camaquã, no Centro-Sul do Rio Grande do Sul, confirmou a morte de três pacientes com Covid-19 que foram nebulizados com uma solução de hidroxicloroquina. O procedimento foi administrado pela médica Eliane Scherer, denunciada pelo hospital ao Conselho Regional de Medicina e ao Ministério Público, que já investiga sua conduta.
No dia 19 de março, Jair Bolsonaro defendeu a atuação da médica Eliane Scherer durante entrevista a uma rádio do Rio Grande do Sul. “A doutora me disse e eu já tinha comprovado isso também. Ela falou, muito humildemente, que não é uma ideia dela a questão da nebulização. A primeira vez que ouviu falar foi lá no estado do Amazonas”, disse Bolsonaro na ocasião.