Jair Bolsonaro deu posse, na quarta-feira (28), ao senador Ciro Nogueira (PP-PI) como ministro da Casa Civil, em gesto que dará a “alma do governo” a um dos maiores líderes do Centrão, segundo declaração do próprio presidente feita na última terça-feira (27).
A iniciativa eleva a patamar inédito, a dependência do Palácio do Planalto a esse grupo de partidos, majoritário no Congresso, que não tem bandeiras ideológicas definidas e se aproxima de governantes em busca de cargos e verbas para bases eleitorais e grupos de interesse. Presidentes anteriores também buscaram o apoio do Centrão, mas não chegaram a ceder a Casa Civil, que coordena a atuação dos demais ministérios e faz o meio de campo entre o Planalto e o Congresso. A Casa Civil é de fato a “alma” do governo.
Consta que em conversa reservada, entre José Dirceu e ACM, Dirceu dissera a ACM que iria ajudar o então vitorioso Lula, em 2002 na Câmara dos Deputados. E então ACM disse-lhe que se quisesse ajudar o governo deveria ir para a Casa Civil. Verdade ou não, é fato que o ministro-chefe da Casa Civil é a figura forte do governo.
A entrada de Nogueira nessa pasta estratégica evidencia a contradição de Bolsonaro, que foi eleito em 2018 com críticas a esse grupo de partidos, que ele chamava de “velha política”, e hoje diz pertencer ele próprio ao Centrão. Mas o entendimento dessa aliança ultrapassa aspectos morais e de coerência discursiva, e está ligado a fatores estruturais e conjunturais da política brasileira, segundo cientistas e analistas políticos.
A bem da verdade e da precisão da análise política, Bolsonaro nunca foi um presidente forte, porque é errático e despreparado. Foi guindado à Presidência da República num movimento de rejeição ao PT, que engendrou o debate político e o processo sucessório. Agora, definitivamente, trata-se de presa fácil, pois está completamente enredado e dependente do Centrão. Não tem poderes de iniciativa e de agenda. Tudo, agora, no governo vai depender dos interesses do Centrão.
ALIANÇA NÃO GARANTE APOIO À REELEIÇÃO
De modo geral, eles avaliam que a nomeação de Nogueira torna ainda mais remota a possibilidade de impeachment de Bolsonaro e deve garantir que ele conclua o mandato dele, com poder reduzido de ditar a agenda. Os efeitos dessa aliança para a campanha dele à reeleição, porém, dependerão de como a economia e a popularidade do presidente evoluírem. Se outra candidatura mostrar-se mais competitiva, esses partidos começarão a construir pontes com essa perspectiva.
O apoio do Centrão também não deve servir a eventual tentativa de golpe e de desrespeito ao resultado das urnas, como Bolsonaro e círculo próximo dele muitas vezes ameaçam, segundo os analistas. Não porque os expoentes desses grupos de partidos sejam todos necessariamente entusiastas da democracia, mas porque se beneficiam exatamente das eleições e de o Congresso em funcionamento e não teriam incentivos para alterar esse sistema, que ao fim e ao cabo segue lhes beneficiando.
BOLSONARO TENTOU DISPENSAR PARTIDOS, MAS NÃO CONSEGUIU
Desde a redemocratização, em 1985, todos os presidentes brasileiros buscaram montar coalização com partidos para garantir a governabilidade e implementar políticas públicas. O núcleo da aliança era formado ainda na campanha e ampliado após a posse, cedendo espaços no governo aos partidos. Assim, constituiu-se o que se convencionou chamar de “presidencialismo de coalizão”, que nada mais é que arranjo de partidos e forças políticas, na Câmara e no Senado, a fim de permitir/garantir a governança e a governabilidade.
Dentro da gestão pública, governança pode ser vista como conjunto de ações que definem as responsabilidades e ajudam a desenhar os processos para tomadas de decisão. A governança é exercer autoridade e governar, com qualidade.
Em definição genérica, pode-se dizer que a governabilidade se refere às próprias condições substantivas/materiais de exercício do poder e de legitimidade do Estado e do governo derivadas da postura desse diante da sociedade civil e do mercado (em regime democrático, claro).
A diferença de governança e governabilidade diz respeito às condições de legalidade de determinado governo para atentar às transformações necessárias, enquanto que governança está relacionada à capacidade de colocar as condições da governabilidade em ação.
Bolsonaro foi o primeiro a abrir mão dessa estratégia logo de saída. Eleito na onda do que ele e os próceres dele chamavam de “nova política”, ele recorreu a pessoas sem vínculos partidários identificadas ao discurso dele e a militares da ativa e da reserva para montar o governo dele, esperando que o apoio popular a ele fosse suficiente. Não deu certo. Está evidenciado.
COINCIDÊNCIA DE AGENDAS
Esse esquema funcionou no início do mandato, menos por mérito do presidente e mais pelo interesse do próprio Legislativo, que estava empenhado em aprovar pautas como a Reforma da Previdência, articulada então pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (Sem Partido-RJ), segundo o cientista político Fernando Meireles, pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e do Centro de Estudos Legislativos da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). “Bolsonaro foi o presidente que menos enviou projetos de lei [no primeiro ano] comparado a outros presidentes”, esclareceu.
“Em síntese, funcionou mais por coincidência de agenda do que liderança e capacidade de o governo articular com o Congresso a agenda do mercado, defendida por ambas as instituições — governo e maioria congressual”, entende o analista político da Arko Advice, Marcos Augusto.
Em meados de 2020, desgastado pela atuação do governo na pandemia e enfrentando dificuldades crescentes com o Legislativo, Bolsonaro começou a abrir espaço no governo para os chamados políticos que tinham diálogo no Congresso, e, no início de 2021, pela primeira vez deu o comando de ministério a membro do Centrão, quando o deputado João Roma (PRB-BA) assumiu a pasta da Cidadania. Roma é ligado politicamente ao ex-prefeito de Salvador e presidente nacional do DEM, ACM Neto. Depois, a deputada licenciada Flávia Arruda (PL-DF) chegou à Secretaria de Governo, e agora Nogueira à Casa Civil.
APOIO ESSENCIAL PARA TERMINAR O MANDATO
“Bolsonaro percebeu que precisava de maior apoio político no Congresso. O principal motivo é evitar a abertura de um processo de impeachment e conseguir terminar seu mandato. A CPI [da Covid-19 no Senado] aprofundou a fragilidade do governo, e quanto mais frágil mais dependente ele fica de uma base relativamente fiel”, disse o cientista político Leonardo Martins Barbosa, pesquisador do Observatório do Legislativo Brasileiro, vinculado à Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).
A CPI da Covid-19 revelou como o negacionismo do governo se refletiu em decisões de políticas públicas que prejudicaram o combate à Covid-19, e trouxe à tona suspeitas de tráfico de influência e de corrupção na compra de vacinas. Também desgastaram o Planalto a apresentação de novos pedidos de impeachment e a decisão de a oposição começar a organizar protestos de rua.
Desde o final de maio, a oposição já foi às ruas quatro vezes: 29 de maio, 19 de junho e 3 e 24 de julho.
Barbosa considera improvável que, com Nogueira na Casa Civil, o Centrão se volte contra Bolsonaro e apoie impeachment contra ele no ano e meio que lhe resta de mandato. No caso de Dilma Rousseff, afirma, isso só foi possível graças a grande esforço de coordenação política que envolveu o então vice-presidente, Michel Temer (MDB), e amplos setores sociais, inclusive de grandes empresários, fatores hoje ausentes.
ENGAJAMENTO NA REELEIÇÃO É INCERTO
Outro motivo que levou Bolsonaro a aprofundar a aliança dele com o Centrão é preparar o terreno para a campanha à reeleição, em momento em que pesquisas indicam que a rejeição a ele está em alta e há vantagem de Lula em disputa no segundo turno, segundo a cientista política Beatriz Rey, pesquisadora da universidade americana Johns Hopkins.
Bolsonaro não está filiado a partido político e busca legenda para se lançar em 2022. “Também está por trás dessa aproximação, em especial com o Ciro Nogueira, um desejo de tentar construir uma ponte para se filiar ao PP. Ciro Nogueira seria chave nesse sentido”, afirma Rey.
Há resistência em diversas siglas do Centrão e do próprio PSL, pelo qual Bolsonaro venceu em 2018, em filiar o presidente, que tem dito que deseja um partido “para chamar de seu”. Essas legendas já têm caciques nacionais e locais estabelecidos, e a vantagem de apoiar candidato a presidente com alta taxa rejeição que quer ter o controle da estrutura partidária não está clara.
“CRISTIANIZAÇÃO”
Se a candidatura Bolsonaro der sinais claros de naufrágio no ano que vem, Barbosa avalia que o Centrão pode se recusar a dar legenda ao presidente, ou apoiar formalmente a reeleição dele, mas liberar líderes locais a se aliarem a outros candidatos, a chamada “cristianização”.
A palavra — “cristianização” — é derivada de Cristiano Machado, que se candidatou à Presidência da República em 1950 pelo PSD. Ao longo da campanha, embora formalmente apoiado pelo partido, Machado viu-se abandonado pelos principais líderes da legenda, que passaram a defender a candidatura de Getúlio Vargas, do PTB, que acabou vencendo a eleição.
A intensidade do apoio na campanha dependerá da performance da economia no pós-pandemia e do alcance dos programas de transferência de renda — na última quarta (28), o governo afirmou que planeja dar reajuste de 50% ao Bolsa Família, a partir de novembro. “Isso pode mobilizar o eleitorado mais pobre, que é estrato social que Bolsonaro mais perde hoje. São coisas que impactam a disposição do Centrão de seguir apoiando o presidente ou não”, disse Meireles.
A posse de Nogueira na Casa Civil pode também dar novo impulso para implementar políticas públicas de combate ao desemprego e à pobreza, com impactos eleitorais para Bolsonaro.
PRAGMATISMO CONTRA “AVENTURA GOLPISTA”
Bolsonaro e o entorno próximo dele vêm fazendo repetidas ameaças relativas às eleições de 2022. Eles têm afirmado que sem a adoção do voto impresso ou voto auditável, o resultado não teria legitimidade.
Segundo vários cientistas e analistas políticos, o Centrão dificilmente embarcaria em iniciativa de deslegitimação dos resultados eleitorais em 2022 — não porque sejam intrinsecamente defensores da democracia, mas porque se beneficiam do sistema em vigor hoje.
“Quem tem a liderança do Centrão hoje é o PP, que no limite é derivado da antiga Arena [Aliança Renovadora Nacional], partido que dava sustentação ao regime militar]. Não acho que boa parte desses políticos teria constrangimento em apoiar um regime mais autoritário, mas o jogo deles é eleição e Congresso. Dificilmente eles apoiariam uma aventura golpista”, comentou Barbosa.
Outro motivo que deve afastar o Centrão de eventual tentativa de golpe de Bolsonaro, segundo ele, é que esse grupo costuma mudar de posição conforme os ventos da política. Se em 2022 ficar claro que a candidatura de Lula é favorita, essas legendas vão tentar construir pontes com o petista, acrescenta.
Rey também não vê espaço para golpe tradicional no País no ano que vem, mas cita que o Brasil passa por processo semelhante ao ocorrido em outras nações, no qual o autoritarismo se desenvolve aos poucos e corrói as instituições por dentro. Nesse cenário de degradação progressiva da democracia, ela considera que o Centrão pode seguir apoiando Bolsonaro se continuar tendo acesso ao que deseja.
DESENHO INSTITUCIONAL FAVORECE O CENTRÃO
Os partidos do Centrão se especializaram em atender demandas locais de acesso ao governo muitas vezes legítimas, como as de municípios carentes em políticas públicas que precisam de acesso ao caixa de Brasília. Alguns problemas do desenho institucional brasileiro favorecem a atuação desses partidos desvinculados de bandeiras ideológicas, que vão se aproximar do governante de ocasião em busca de acesso às verbas e cargos para atender a essas demandas, que a rigor são legitimas.
Meireles aponta três desses problemas, entre outros: 1) o modelo de distribuição federativa dos recursos que deixa muitos municípios sem verbas, 2) a pulverização partidária que dificulta que as preferências ideológicas dos eleitores se expressem no sistema político de forma funcional, e 3) o alto valor necessário para se eleger em sistema de lista aberta na qual candidatos do mesmo partido disputam votos entre si.
“Muitos municípios não têm arrecadação própria e, com os gastos obrigatórios, ficam atados para fazer qualquer tipo de melhoria. O prefeito precisa ir lá [em Brasília] ‘passar o pires’. E aí precisa rezar uma certa cartilha”, afirma Meireles. “Existe demanda por esse tipo de representação. Tentar criminalizar esses políticos não é a explicação dessa questão”, reflete.
Barbosa acrescenta que a forma pela qual o Centrão consegue exercer o papel de intermediador de interesses sociais e econômicos com o Estado é “jogando” com a estabilidade do governo.
“É esse o caso agora. Esses partidos se valeram da fragilidade na qual o governo se encontra para negociar o acesso cada vez mais amplo ao poder federal. Estamos falando tanto de patronagem como [quanto] de acesso a emendas parlamentares para garantir investimentos em diversas regiões do Brasil em um momento de constrangimento fiscal muito grande”, asseverou.
M. V.