“Sem liberdade de manifestação, a escolha é inexistente. O que é para ser opção, transforma-se em simulacro de alternativa. O processo eleitoral transforma-se em enquadramento eleitoral, próprio das ditaduras”, escreveu a ministra Cármen Lúcia, do STF, em sua sentença, concedendo liminar, solicitada pela Procuradoria Geral da República, contra o abuso de alguns bolsonaristas, incrustados na Justiça Eleitoral, que, nos últimos dias, ao modo da velha ditadura, se voltaram contra as Universidades.
“… toda interpretação de norma jurídica que colida com qualquer daqueles princípios, ou, o que é pior e mais grave, que restrinja ou impeça a manifestação da liberdade é inconstitucional, inválida, írrita”, escreveu a ministra e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, no sábado (27/10).
Cármen Lúcia proibiu todos os atos judiciais ou administrativos “que possibilitem, determinem ou promovam o ingresso de agentes públicos em universidades públicas e privadas, o recolhimento de documentos, a interrupção de aulas, debates ou manifestações de docentes e discentes universitários, a atividade disciplinar docente e discente e a coleta irregular de depoimentos desses cidadãos pela prática de manifestação livre de ideias e divulgação do pensamento nos ambientes universitários ou em equipamentos sob a administração de universidades públicas e privadas e serventes a seus fins e desempenhos”.
A sentença foi motivada por ação da Procuradora Geral da República, Raquel Dodge, que impetrou uma “Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental” da Constituição, com pedido de liminar, no Supremo Tribunal Federal (STF), diante de decisões de alguns juízes da Justiça Eleitoral, todas elas tendenciosas, proibindo manifestações dentro das universidades e, inclusive, determinando intervenção policial dentro dos campi universitários.
Em suma, alguns juízes de primeira instância, evidentemente comprometidos com a campanha de Bolsonaro – portanto, com dificuldades de envergar a toga com a verticalidade que exige a justiça (e, também, a Justiça – a instituição, isto é, o Poder Judiciário) – deram algumas sentenças ou concederam permissões para sufocar a discussão dentro das Universidades.
Exatamente as Universidades – que foram das principais trincheiras contra a ditadura, nos 21 anos entre 1964 e 1985.
Foi, evidentemente, uma ação orquestrada pelo bolsonarismo. Não é possível que alguns juízes tenham proferido decisões praticamente iguais em 20 Estados ao mesmo tempo, sem orquestração alguma.
O fato do número de juízes que fizeram isso ser pequeno – aliás, muito pequeno, considerando o conjunto do Judiciário – somente enfatiza o caráter orquestrado dessa ação repressiva, ilegal, inconstitucional.
Se fossem milhares os juízes a proferir essa sentença, seria difícil localizar uma orquestração. Mas, quando são um punhado, é fácil perceber o cunho dessa tentativa – que, aliás, revela bastante o que é a candidatura de Bolsonaro (e, evidentemente, quem é o próprio Bolsonaro).
DITADORES E TIRANOS
Disse a ministra Cármen Lúcia, em sua sentença, depois de transcrever os artigos 206 e 207 da Constituição, que garantem a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”, o “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas” e a “autonomia didático-científica, administrativa” das Universidades (todos os grifos são nossos):
“As normas constitucionais acima transcritas harmonizam-se com os direitos às liberdades de expressão do pensamento, de informar-se, de informar e de ser informado, constitucionalmente assegurados, para o que o ensino e a aprendizagem conjugam-se, assegurando espaços de libertação da pessoa, a partir de ideias e compreensões do mundo convindas ou desavindas e que se expõem para convencer ou simplesmente como exposição do entendimento de cada qual.
“(…) Reitere-se: universidades são espaços de liberdade e de libertação pessoal e política.
“Seu título indica a pluralidade e o respeito às diferenças, às divergências para se formarem consensos, legítimos apenas quando decorrentes de manifestações livres.
“Discordâncias são próprias das liberdades individuais. As pessoas divergem, não se tornam por isso inimigas. As pessoas criticam. Não se tornam por isso não gratas.
“Democracia não é unanimidade. Consenso não é imposição.”
(…)
“Pensamento único é para ditadores. Verdade absoluta é para tiranos.
“Ao se contrapor a estes direitos fundamentais e determinar providências incompatíveis com o seu pleno exercício e eficaz garantia, não se interpretou a norma eleitoral vigente.
“Antes, a ela se ofereceu exegese incompatível com a sua dicção e traidora dos fins a que se destina, que são os de acesso igual e justo a todos os cidadãos, garantindo-lhes o direito de informar-se e projetar suas ideias, ideologias e entendimentos, especialmente em espaços afetos diretamente à atividade do livre pensar e divulgar pensamentos plurais.
“Toda forma de autoritarismo é iníqua. Pior quando parte do Estado. Por isso os atos que não se compatibilizem com os princípios democráticos e não garantam, antes restrinjam o direito de livremente expressar pensamentos e divulgar ideias são insubsistentes juridicamente por conterem vício de inconstitucionalidade”.
FATOS
Em sua ação, a Procuradoria Geral da República citou os seguintes atos ilegais:
1) “O Juiz Eleitoral da 17ª Zona Eleitoral de Campina Grande (PB) determinou Busca e Apreensão na sede da ADUFCG – Associação de Docentes da Universidade Federal de Campina Grande – ‘com vistas a BUSCA e APREENSÃO de panfletos, intitulados MANIFESTO EM DEFESA DA DEMOCRACIA E DA UNIVERSIDADE PÚBLICA, bem como outros materiais de campanha eleitoral em favor do candidato a Presidente da República FERNANDO HADDAD número 13 do PT’. O referido manifesto foi assinado pela Associação e aprovado pela categoria em Assembleia. A Universidade informou que cinco Hds de computadores também foram apreendidos por agentes da polícia”.
2) “Buscas e apreensões também ocorreram na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e na Associação de Docentes da UEPB, em cumprimento à determinação do Juiz. Segundo o Presidente da Associação, uma professora foi inquirida sobre a atividade desenvolvida, a disciplina ministrada, o conteúdo e seu nome”.
3) “Em 23 de outubro de 2018, a Juíza Titular da 199ª Zona Eleitoral do Rio de Janeiro, determinou busca e apreensão dos materiais de propaganda eleitoral irregular porventura encontrados nas Unidades da Universidade Federal Fluminense em Niterói, sobretudo nos campos do Gragoatá e do Ingá”.
4) “O Juiz Eleitoral, titular da 18º Zona Eleitoral determinou à notificação a Universidade da Grande Dourados (MS), na pessoa do reitor ou seu representante legal, para que fosse proibida a aula pública referente ao tema “Esmagar o Fascismo” a ocorrer em 25/10/2018 às 10h, nas dependências da universidade. A aula foi iniciada, mas, após alguns discursos, foi interrompida por agentes da Polícia Federal”.
5) “O Juiz Eleitoral da 20ª Zona Eleitoral do Rio Grande do Sul, em razão de pedido de providências proposto pelo Ministério Público Eleitoral em face da Universidade Federal Fronteira Sul (UFFS), impediu a realização do evento político denominado “Assembleia Geral Extraordinária contra o Fascismo, a Ditadura e o Fim da Educação Pública”.
6) “A Juíza Eleitoral da 30ª Zona Eleitoral de Belo Horizonte, determinou a notificação da Universidade Federal de São João Del Rei, para que proceda a retirada do sítio da Universidade de nota em favor dos princípios democráticos e contra a violência nas eleições presidenciais de 2018, assinada pela Reitoria da Instituição”.
7) “Na Universidade Federal de Uberlândia (UFU) ocorreu a retirada de faixa com propaganda eleitoral colocada do lado externo de uma das portarias do campus Santa Mônica, pela Polícia Militar, não sendo possível aferir se a determinação foi exarada do juiz da 278ª ou 279ª Zona Eleitoral”.
8) “Na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), policiais promoveram a retirada de faixas em homenagem à vereadora Marielle Franco, assassinada em março, e com as inscrições “Direito Uerj Antifascismo”. A Universidade informou que não havia mandado judicial a autorizar as referidas ações”.
9) “Na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), campus de Serrinha, foram retirados cartazes supostamente de apoio a candidato a Presidência da República”.
Além disso, a procuradora geral Raquel Dodge citou outras ocorrências semelhantes nas seguintes instituições:
– Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ);
– Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG);
– Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS);
– Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio);
– Universidade Federal da Bahia (UFBA);
– Universidade Federal do Amazonas (UFAM);
– Universidade Católica de Petrópolis (UCP);
– Universidade Federal de Goiás (UFG);
– Universidade Federal de Itajubá (UNIFEI);
– Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS);
– Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA);
– Universidade da Integração Internacional de Lusofonia Afrobrasileira (UNILABA);
– Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Certamente, haveria mais a acrescentar, embora o quadro esboçado pela procuradora seja bastante preciso – inclusive, em extensão.
Mas, por exemplo, na UFF, mencionada pela procuradora, um bando com coletes da Justiça Eleitoral invadiu o prédio da Faculdade de Direito para retirar uma bandeira. Nesta, somente estava escrito: “Direito UFF” e “Antifascismo” sobre um fundo preto e laranja, cores da associação atlética dos estudantes. Não havia menção a candidato algum ou às eleições.
Pelo que se soube depois, a juíza que ordenou a retirada da bandeira considerou que a palavra “antifascismo” prejudicava a campanha de Bolsonaro…
“Eles não apresentaram carteira funcional, não se identificaram com nenhuma matrícula. Disseram que tinham uma decisão judicial, mas não apresentaram nada, e disseram ainda que tinham um ‘mandado verbal’ para entrar no prédio”, relatou um professor da faculdade.
Esse bando percorreu as dependências da faculdade, tirando fotos, e interromperam uma aula de Direito Processual do Trabalho, perguntando à professora sobre o que ela estava falando.
A sala do Centro Acadêmico foi revirada, supostamente em busca de material de campanha eleitoral.
Na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), outro grupo, com as mesmas características, tentaram impedir uma mesa-redonda sobre democracia, alegando que era um ato de apoio à candidatura de Fernando Haddad, do PT.
Na Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), outro grupo revistou a sala de um professor “em busca de material irregular de propaganda eleitoral”. O professor, Marcos Pedlowsky, mantém um blog sobre assuntos políticos.
O Tribunal Regional Eleitoral (TRE) do Rio de Janeiro desmentiu que tivesse algo a ver com esses fatos.
Todos, até agora, partiram de um pequeno grupo de juízes que servem, momentaneamente, à Justiça Eleitoral (esta não tem, no Brasil, um quadro próprio de juízes; são eles designados, por um período, entre os membros da Justiça comum).
AFRONTA
Diante desses fatos – inéditos desde os tempos da ditadura, derrubada há 33 anos – a Procuradoria Geral da República apontou, em sua ação no STF:
“… lesão aos direitos fundamentais da liberdade de manifestação do pensamento, de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação e de reunião (art. 5º, IV, IX e XVI [da Constituição]), ao ensino pautado na liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento e o pluralismo de ideias (art. 206, II e III) e à autonomia didático-científica e administrativa das universidades (art. 207) previstos na Constituição”.
Sobre o pretexto dessas incursões repressivas – o artigo 37 da Lei Eleitoral (Lei nº 9504/1997), que proíbe a propaganda eleitoral em “bens públicos”, a procuradora lembrou que já existe entendimento firmado sobre isso, expresso pela atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministra Rosa Weber:
“… a legislação eleitoral veda a realização de propaganda em universidades públicas e privadas (art. 37 da Lei 9.504/1997), mas a vedação dirige-se à propaganda eleitoral e não alcança, por certo, a liberdade de manifestação e de expressão, preceitos tão caros á democracia, assegurados pela Constituição Cidadã de 1988. A atuação do poder de polícia – que compete única e exclusivamente à Justiça Eleitoral – há de se fazer com respeito aos princípios regentes do Estado Democrático de Direito” (Ministra Rosa Weber, na abertura da Seção de 26/10/2018, do TSE, grifo de Raquel Dodge).
O que é proibido, portanto, nas universidades públicas e privadas, é a campanha de um determinado candidato, com pedido de voto para ele.
Não a discussão política ou a manifestação do pensamento.
Como disse a procuradora, depois de analisar essa questão:
“Os atos, contudo – aí também abrangidas as decisões judiciais que os autorizaram -, abstraíram desenganadamente os limites de fiscalização de lisura do processo eleitoral e afrontaram os preceitos fundamentais já mencionados, por abstraí-los. Donde, a necessidade desta propositura para desautorizar os atos já praticados e prevenir a expedição ou execução de outros semelhantes” (grifo nosso).
LIBERDADE
“Em qualquer espaço no qual se imponham algemas à liberdade de manifestação, há nulidade a ser desfeita” escreveu a ministra Cármen Lúcia, em sua sentença.
“A liberdade é o pressuposto necessário para o exercício de todos os direitos fundamentais.
“Os atos questionados na presente arguição de descumprimento de preceito fundamental desatendem os princípios constitucionais assecuratórios da liberdade de manifestação do pensamento e desobedecem as garantias inerentes à autonomia universitária”.
Cármen Lúcia examina, em seguida, o artigo 37 da Lei Eleitoral:
“Dispõe o art. 37 da Lei n. 9.504/1997 ser vedada a veiculação de propaganda de qualquer natureza, inclusive pichação, inscrição a tinta e exposição de placas, estandartes, faixas, cavaletes, bonecos e assemelhados nos espaços indicados na norma.
“A finalidade da norma que regulamenta a propaganda eleitoral e impõe proibição de alguns comportamentos em períodos especificados é impedir o abuso do poder econômico e político e preservar a igualdade entre os candidatos no processo.
“A norma visa o resguardo da liberdade do cidadão, o amplo acesso das informações a fim de que ele decida segundo a sua conclusão livremente obtida, sem cerceamento direto ou indireto a seu direito de escolha.
“A vedação legalmente imposta tem finalidade específica. Logo, o que não se contiver nos limites da finalidade de lisura do processo eleitoral e, diversamente, atingir a livre manifestação do cidadão não se afina com a teleologia da norma eleitoral, menos ainda com os princípios constitucionais garantidores da liberdade de pensamento, de manifestação, de informação, de aprender e ensinar.
“No caso em apreço, (…) as práticas coartadas pelos atos questionados não restringem direitos dos candidatos, mas o livre pensar dos cidadãos.
“Os dispositivos da Lei n. 9.504/1997 somente têm interpretação válida em sua adequação e compatibilidade com os princípios nos quais se garantem todas as formas de manifestação da liberdade de pensamento, de divulgação de ideias e de reunião dos cidadãos.
“Ao impor comportamentos restritivos ou impeditivos do exercício daqueles direitos as autoridades judiciais e policiais proferiram decisões com eles incompatíveis.
“Por estes atos, liberdades individuais, civis e políticas foram profanadas em agressão inaceitável ao princípio democrático e ao modelo de Estado de Direito erigido e vigente no Brasil.
“A atuação dos cidadãos, no exercício de sua liberdade de manifestação de pensamento, não foi sequer objeto de cuidado na norma eleitoral indicada como fundamento das decisões descritas na peça inicial da presente arguição.
“Insista-se: volta-se a norma [eleitoral] contra práticas abusivas e comprometedoras da livre manifestação das ideias, o que não é o mesmo nem próximo sequer do exercício das liberdades individuais e públicas.
“O uso de formas lícitas de divulgação de ideias, a exposição de opiniões, ideias, ideologias ou o desempenho de atividades de docência é exercício da liberdade, garantia da integridade individual digna e livre, não excesso individual ou voluntarismo sem respaldo fundamentado em lei.
“(…) não é o caminho do direito democrático, mas da ausência de direito e déficit democrático.
“Exercício de autoridade não pode se converter em ato de autoritarismo, que é a providência sem causa jurídica adequada e fundamentada nos princípios constitucionais e legais vigentes” (grifos nossos).
Fizemos essas longas citações para tornar acessível ao leitor uma das mais importantes sentenças judiciais de nossa História recente. Aliás, recentíssima.
C.L.