Recentemente, o deputado Eduardo Bolsonaro atacou a rede de cinemas Cinemark (por sinal, norte-americana) por ter cancelado a exibição do filme “1964, o Brasil entre armas e livros”.
O filme fora exibido em algumas salas, todas alugadas por seus promotores, em Belo Horizonte, Curitiba, Recife e Brasília, em eventos fechados.
Em nota, a rede Cinemark esclareceu que fora um “erro de procedimento em função do desconhecimento prévio do tema”, pois, “não apoiamos organizações políticas ou partidos e não tivemos qualquer envolvimento com a produção deste evento”.
O zero-dois Bolsonaro (ou será o zero-três?) reclamou que o cancelamento da exibição do filme tinha sido “total falta de respeito c/seu consumidor. Cinema se presta a exibir filmes pouco importando se de direita ou esquerda. Então por coerência n deveriam exibir o filme do Lula e do Marighella. Liberdade é botar o filme em cartaz e permitir que o cidadão decida o q ver”.
Até achamos, a princípio, que o deputado Bolsonaro tinha alguma razão.
Mas mudamos de opinião ao ver o filme, pela Internet.
O problema não é que “1964, o Brasil entre armas e livros” seja “de direita”.
O problema é que se trata de uma fraude – e grosseira – saída dos porões do fascismo. Nesse sentido, parece muito com “O Judeu Süss”, aquela vomitante obra-prima do cinema nazista (não confundir com outro filme, de mesmo nome, de 1934, ou com o livro, também de mesmo nome, de Lion Feuchtwanger).
“O Judeu Süss” também foi apresentado como verdade histórica, tal como “1964, o Brasil entre armas e livros”, expelido por uma produtora chamada “Brasil Paralelo” (deve ser aquele que jamais se encontra com o Brasil real). É inútil resenhá-lo. Basta dizer que suas principais atrações chamam-se Olavo de Carvalho, William Waack, Luiz Philippe de Orléans e Bragança – e alguns outros pensadores de menor envergadura.
Segundo o filme, o país estava ótimo na ditadura, até que os militares afrouxaram e permitiram que o “marxismo cultural” se implantasse por aqui.
Como acontece com certos livros que estão fora da literatura, ou certas películas que estão fora da arte cinematográfica, o mais importante ou significativo, para uma análise desse filme, não é o filme.
Mais importante é, por exemplo, a principal estrela da pré-estreia em São Paulo, realizada na terça-feira (09/04), na Assembleia Legislativa.
AVANT-PREMIÈRE
Essa impoluta estrela foi José Anselmo dos Santos, também conhecido como “cabo Anselmo”.
A outra estrela foi o filho do falecido delegado Sérgio Paranhos Fleury, Paulo Fleury – que não é culpado pelos crimes do pai, apenas pelos seus, mas estava lá por causa dos crimes do pai.
Anselmo e Fleury (pai) foram, provavelmente, as duas figuras mais nojentas da ditadura. Dessas que dão asco e vontade de vomitar, somente pela lembrança. Mais até do que Brilhante Ustra.
Mas é necessário um parêntesis aqui, pois, depois de alertado por um amigo e colega – Luciano Siqueira, hoje vice-prefeito de Recife – sobre o desconhecimento da juventude atual (o que não é um problema dela, mas de um sistema de ensino especialmente alienado), fizemos uma pesquisa entre jovens politizados, e descobrimos que Luciano tem razão.
É preciso, então, relembrar quem foram esses farrapos da espécie humana.
O “cabo Anselmo” foi um traidor infiltrado nas fileiras da resistência à ditadura, “responsável pela prisão e morte de um número incalculável de militantes das organizações clandestinas de resistência ao regime militar” (Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, “Direito à Memória e à Verdade”, p. 133).
Entre seus inúmeros crimes, Anselmo foi responsável pelo massacre da chácara São Bento, em Paulista, Pernambuco, onde entregou a própria mulher, Soledad Barret Viedma, grávida de um filho seu, para ser assassinada – e do modo mais hediondo, mais cruel, mais inimaginável.
Nessa chacina, entre 7 e 9 de janeiro de 1973, além de Soledad, foram assassinados: Pauline Reichstul, Eudaldo Gomes da Silva, Evaldo Luiz Ferreira de Souza, Jarbas Pereira Marques e José Manoel da Silva.
“Anselmo retornou ao Brasil com algum dinheiro e a tarefa de montar uma rede da VPR no Recife. Lá, teria três vidas. Numa era o marido da dona da butique Mafalda, onde se vendiam boas rendas. Noutra era Kimble, do DOPS. Na terceira, Daniel, chefe do núcleo da VPR no Nordeste, no qual infiltrara César, um investigador da equipe de Fleury.
“A última operação de Anselmo, na primeira semana de janeiro de 1973, resultou numa das maiores e mais cruéis chacinas da ditadura.
“Um combinado de oficiais do CIE e do DOPS paulista matou, no Recife, seis quadros da VPR.
“Capturados em pelo menos quatro lugares diferentes, apareceram numa pobre chácara da periferia.
(…)
“A advogada Mércia de Albuquerque Ferreira viu os cadáveres no necrotério. Estavam brutalmente desfigurados.
“Um dos mortos era a paraguaia Soledad Barret Viedma, morena de cabelos dourados, companheira de Anselmo (…). Completaria 28 anos no dia seguinte e estava grávida de quatro meses. O filho era dele.
“Daniel/Kimble [isto é, Anselmo] não viu o massacre. Foi para um hotel na praia de Boa Viagem” (Elio Gaspari, “A Ditadura Escancarada”, cit. in “Direito à Memória e à Verdade”, p. 326).
Mencionamos esse crime sanguinário e sádico em Figuras e figurinhas em 1964: antes e depois do golpe contra o Brasil (parte 2).
Mas, naquele texto, evitamos uma parte do depoimento da Drª Mércia.
Porém, já que esse repulsivo Anselmo apareceu agora entre os bolsonaristas, transcreveremos mais uma parte:
“… não estou assim muito segura se foi no dia 9 ou no dia 10 que tomei conhecimento que seis corpos se encontravam no necrotério, que nessa época funcionava em frente ao Cemitério de Santo Amaro.
“Consegui a licença para entrar e encontrei seis corpos realmente.
“Em um barril estava Soledad Barret Viedma, ela estava despida, tinha muito sangue nas coxas, nas pernas e no fundo do barril onde se encontrava também um feto.
“Eu fiquei horrorizada.
“Como Soledad estava em pé com os braços ao lado do corpo, eu tirei a minha anágua e coloquei no pescoço dela. Era uma mulher muito bonita.
“E estava também deitada numa mesa, Pauline, eu então cobri com uma toalha que tinha na entrada do necrotério, uma toalha de mão, mas era grande, eu botei por cima do corpo dela.
“Jarbas, que eu conhecia muito, estava também numa mesa, estava com uma zorba azul clara e tinha uma perfuração de bala na testa e uma no peito e uma mancha profunda no pescoço de um lado só como se fosse corda e com os olhos muito abertos e a língua fora da boca, que me deixou muito chocada.
“Todos os corpos estavam muito massacrados. Pauline tinha a boca arrebentada, tinha marcas pela testa, pela cabeça e o corpo muito marcado (…) a Soledad estava com os olhos muito abertos com expressão muito grande de terror, a boca estava entreaberta e o que mais me impressionou foi o sangue coagulado em grande quantidade, eu tenho a impressão que ela foi morta e ficou algum tempo deitada e a trouxeram, e o sangue quando coagulou ficou preso nas pernas porque era uma quantidade grande e o feto estava lá nos pés dela, não posso saber como foi parar ali ou se foi ali mesmo no necrotério que ele caiu, que ele nasceu, naquele horror.”
Aponta a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, com base nos legistas que, na época, examinaram os corpos:
“Soledad, Pauline, Eudaldo e José Manoel receberam quatro tiros na cabeça. Jarbas dois na cabeça e dois no tronco. Evaldo três tiros na cabeça, além de outros no tronco. As mulheres tinham marcas nos pulsos, produzidas por algemas ou cordas, visíveis na foto de Pauline. Três dos militantes – Evaldo, Pauline e Jarbas – apesar dos tiros que levaram, inclusive na cabeça, continuaram empunhando as próprias armas, denotando montagem de cena.
“Também nas fotos de Eudaldo são visíveis deformações no rosto, além de hematomas, sulcos e vergões nos ombros. Soledad tinha marcas de algemas nos pulsos e equimoses no olho direito. Os legistas que assinaram o laudo fizeram também referências a equimoses espalhadas pelo corpo”.
Esse é o cabo Anselmo, um psicopata que entregou a própria mulher, grávida de um filho seu, para a tortura mais extrema e a morte.
Esse, também, é o Fleury que executou essa tortura e esses assassinatos.
DOS PORÕES
Na terça-feira, Anselmo e Fleury foram saudados como heróis.
É verdade que a plateia não passou de 90 pessoas, que gritavam: “Ustra Vive! Fleury Vive!”: “A saudação em homenagem a dois dos símbolos da repressão e tortura durante a ditadura militar foi seguida de aplausos e risos” (v. OESP, 09/04/2019, Sessão de filme sobre 64 vira ato de desagravo à repressão militar).
Um dos oradores do evento, o deputado estadual Castello Branco (PSL), deve ter provocado várias voltas em sua própria cova no tio, Humberto de Alencar Castello Branco, primeiro presidente da ditadura.
Se existia algo que o velho Castello Branco, sempre afetando ares de civilização e cultura, não queria, era ser confundido com um torturador.
Em seguida, falou Anselmo: “Gostaria que houvesse um choque para tratar com firmeza isso (o suposto domínio da esquerda nas universidades)”.
Logo, o deputado estadual Douglas Garcia (PSL) “anunciou o filho de Fleury. ‘Estou com medo de anunciar o senhor porque, por elogiar o seu pai, eu estou sendo processado.’ Arrancou gargalhadas da plateia (…). Garcia foi responsável pela montagem do bloco carnavalesco Porão do Dops, proibido pela Justiça em 2018 por fazer apologia à tortura”.
O filho de Fleury foi demitido da Polícia Civil de São Paulo, em 2010, por apreender câmeras de vídeo furtadas, mas não registrar a apreensão; e por, quando titular da Delegacia Antipirataria, presentear escrivãs com bolsas Louis Vuitton falsificadas, ao mesmo tempo que mantinha uma empresa particular que cobrava para combater pirataria.
A demissão, efetuada pelo então governador Alberto Goldman (PSDB), foi confirmada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (v. Ex-delegado Paulo Fleury tem demissão mantida pelo TJ paulista).
Mas o ápice do lançamento do filme foi quando apareceu o ex-delegado Carlos Alberto Augusto, conhecido como “Carteira Preta” ou “Carlinhos Metralha”, um velho torturador (v. o depoimento de Ivan Seixas sobre a tortura e assassinato de Devanir José de Carvalho, “Direito à Memória e à Verdade”, p. 156).
“Tive a honra de trabalhar por sete anos com Fleury. Quero fazer um agradecimento à família Fleury, pois trabalhei com um delegado de polícia homem. E agradecer ao Anselmo pela ajuda que eles nos deu”, disse Carteira Preta.
C.L.