Metade do artigo publicado pelo procurador Deltan Dallagnol no sábado (06/07), também assinado pelos procuradores Paulo Galvão e Antônio Carlos Welter, é para apresentar aquilo que já é líquido, certo e conhecido: os resultados da Operação Lava Jato (v. OESP 06/07/2019, A Lava Jato que incomoda).
Assim, atira-se sobre o leitor uma série de números – todos já conhecidos fartamente, e que nós já publicamos mais de uma vez.
Apesar da tentativa de alguns corruptos de aproveitar as mensagens divulgadas por The Intercept Brasil para alcançarem a impunidade, não são esses resultados, evidentemente, que estão em discussão.
Até Lula, em sua carta ao ex-ministro Celso Amorim, defende – ou é obrigado a defender – os resultados da Lava Jato, apesar de também defender que ele próprio, mas não os outros condenados, deve ser solto – e, mesmo assim, para ter um novo julgamento (v. HP 27/06/2019, A carta de Lula e a união dos democratas contra o bolsonarismo).
O problema, portanto, não são os resultados positivos da Lava Jato e o quanto eles fizeram bem ao país. O problema é o que Dallagnol e Moro fizeram de errado, colocando em risco os resultados da Lava Jato.
Portanto, levantar os resultados da Lava Jato contra as mensagens divulgadas por The Intercept Brasil – e, depois, pela “Folha de S. Paulo” e pela “Veja” – é mero (e, a rigor, grosseiro) diversionismo.
Quase toda a outra metade do artigo de Dallagnol (na verdade, 38%) é composto de vitupérios à “ofensiva recente” de “crimes cibernéticos contra autoridades”. Por exemplo: “O ocorrido foi semelhante à invasão de uma residência por um criminoso que procura ouvir suas conversas e roubar seu celular, computador e qualquer outro pertence. Se isso for admitido, não se pode descartar que organizações criminosas passem a pagar para que residências e computadores de jornalistas, juízes e promotores sejam invadidos sistematicamente”.
Porém, isso, como disse o deputado Alessandro Molon (PSB-RJ), já está sob investigação da Polícia Federal (PF). Portanto, nada tem a ver com o fato de que Moro – e Dallagnol – tiveram uma relação inconveniente (para usar uma palavra educada e sem pretender qualquer duplo sentido) do ponto de vista jurídico, do ponto de vista legal.
O que se está discutindo é o conteúdo das mensagens – e não é possível ao procurador Dallagnol refugiar-se na suposta ilicitude na obtenção dessas mensagens, porque ele mesmo apresentou as “10 Medidas contra a Corrupção”, onde se propõem alterações no Código de Processo Penal para que “uma prova que ordinariamente seria considerada ilícita deixe de sê-lo por uma razão justa”.
Então, diz Dallagnol: “não temos receio das conversas que tivemos em dezenas de grupos nos últimos cinco anos. Nossos atos são públicos e sempre tivemos por norte a lei e a ética”.
Evidentemente, não são os atos públicos que estão em discussão, mas, exatamente, aqueles que não foram públicos.
Além desse exercício de prestidigitação, Dallagnol, nesse trecho, faz outro: não são as conversas entre os procuradores que são o problema, mas as conversas entre ele, Dallagnol, e Sérgio Moro. As conversas entre os procuradores somente são importantes quando mencionam pedidos, observações ou restrições de Moro – o que, em geral, tem Dallagnol como correia de transmissão.
Os procuradores da força-tarefa de Curitiba estavam, inclusive, como demonstram as mensagens, incomodados com o oportunismo de Moro. A bajulação a este último era de Dallagnol, não do conjunto dos procuradores (v. HP 29/06/2019, Força-tarefa da Lava Jato se escandalizou com carreirismo de Moro).
Foi ele, como chefe da força-tarefa, que permitiu a Moro exercer um papel que não era seu – ou seja, que transgredia o sistema jurídico estabelecido pela Constituição de 1988. Tanto isso é verdade que as conversas, através de mensagens, com Moro, são com ele – e não com os outros procuradores da força-tarefa da Operação Lava Jato, talvez com uma ou outra exceção.
Diante disso, é totalmente impróprio Dallagnol esconder-se atrás de seus colegas com verbos no plural (“sempre tivemos por norte a lei e a ética”), pois se trata do seu comportamento – e não daquele dos demais procuradores.
Dallagnol diz que não tem “receio das conversas”, mas tem receio de “fraudes, edições já reconhecidas, descontextualizações claras e distorções de supostas conversas, que são incoerentes com fatos e procedimentos. Nas mensagens supostamente obtidas pela atividade criminosa do hacker, é impossível recordar ou reconstituir o que é fato e o que é montagem em milhares de mensagens trocadas durante anos”.
Isso equivale a Dallagnol dizer que não sabe o que fez, muito menos se era ilegal ou legal (“é impossível recordar ou reconstituir o que é fato e o que é montagem”).
Se os fatos foram legais, qual é a dificuldade?
Ou a suposta “montagem” foi apenas para confirmar a legalidade da sua conduta?
De onde se conclui que Dallagnol continua sendo dirigido por Moro – pois essa defesa em duas pontas que nunca se encontram é, precisamente, o que disse o atual ministro no Senado e na Câmara.
Porém, para que toda essa argumentação, se existe o celular de Dallagnol, e outros dispositivos eletrônicos – aqueles que, segundo ele, foram “hackeados” -, para conferir se as mensagens divulgadas por The Intercept Brasil foram ou não adulteradas?
O problema é que, segundo o procurador, nada disso existe. Diz Dallagnol que “identificada a invasão, sem conhecer sua extensão, os procuradores da força-tarefa de Curitiba desativaram suas contas num aplicativo de mensagens, excluindo o histórico de seus celulares e da nuvem”.
Não é difícil saber quem deu essa orientação aos procuradores – o chefe da força-tarefa era Dallagnol. Mas, segundo ele, foi “em atendimento às recomendações de segurança da PF e da PGR, para proteger dados de investigações em curso e a segurança da equipe”.
No mínimo, temos direito a ter dúvidas sobre essa origem. Pelo que foi extraído dessas mensagens até agora – e publicado por Glenn Greenwald no The Intercept Brasil, na “Folha de S. Paulo” e na “Veja” – essa medida não protegeu absolutamente nada. Muito menos os colóquios entre Moro e Dallagnol. Foi apenas uma tentativa de colocar em dúvida mensagens nas quais Dallagnol e Moro foram incapazes de apontar alguma falsificação (v. HP 03/07/2019, Moro não responde a Molon: “existe algum diálogo que V. Exª negue?”).
Por fim, o que resta do artigo de Dallagnol é um curioso parágrafo:
“A finalidade da luta contra a corrupção não é encarcerar pessoas. É reduzir a morte, a miséria e o sofrimento humano causados pela corrupção. É promover a integridade e melhorar o ambiente de negócios. É construir um Brasil melhor. Esse foi o propósito que nos motivou a superar desafios e resistências e a defender reformas legislativas necessárias para tornar mais efetivo o combate à corrupção.”
Parece muito legalzinho – como diria Stanislaw Ponte Preta – mas está errado.
A função de um procurador empenhado na luta contra a corrupção não é “melhorar o ambiente de negócios” – ou, sequer, se preocupar com isso.
Sua função é investigar, descobrir, expor, com provas, os corruptos, para que a Justiça sentencie a punição deles – inclusive o encarceramento, se for o caso.
Evidentemente, se houver redução da corrupção, isso reduzirá “a morte, a miséria e o sofrimento humano causados pela corrupção” (grifo nosso).
Mas isso é uma obviedade. Não é o objetivo dos procuradores e policiais que se dedicam à luta contra a corrupção. Mesmo que a luta contra a corrupção não a reduzisse, ou às suas consequências, as funções do Ministério Público e da Justiça continuariam as mesmas: colocar na cadeia quem desrespeita a lei, quem rouba o dinheiro do povo.
O resto é função da sociedade. Este é, aliás, o argumento do então juiz Moro, em seu artigo sobre a Operação Mãos Limpas: “a ação judicial não pode substituir a democracia no combate à corrupção. É a opinião pública esclarecida que pode, pelos meios institucionais próprios, atacar as causas estruturais da corrupção” (v. HP 18/11/2016, Anotações do juiz Sergio Moro sobre a Operação Mãos Limpas).
É verdade, depois disso, Moro preferiu entrar em um governo de fascistoides obscurantistas…
Mas o que ele escreveu naquela época estava certo.
Daí, “construir um Brasil melhor” é missão para o conjunto dos brasileiros – ou não haverá nenhum Brasil melhor.
Para isso, é necessário agir de maneira que a luta contra a corrupção não tenha como resultado o seu oposto – a impunidade dos corruptos.
É verdade, isso não aconteceu. Mas Moro e Dallagnol colocaram em risco, exatamente, o resultado que o último tanto incensa em seu artigo de sábado.
COMPANHIAS
Até agora, segundo a última matéria de Glenn Greenwald – em conjunto com Edoardo Ghirotto, Fernando Molica, Leandro Resende e Roberta Paduan –, publicada pela “Veja”, foram “analisadas 649.551 mensagens” de Moro e da força-tarefa da Operação Lava Jato.
A conclusão dos jornalistas é que “palavra por palavra, as comunicações examinadas pela equipe são verdadeiras e a apuração mostra que o caso é ainda mais grave” (v. Novos diálogos revelam que Moro orientava ilegalmente ações da Lava Jato).
A resposta de Moro a essa nova reportagem é um desastre (v. a resposta e a réplica da revista).
O que mais chama atenção, nessa nova série de mensagens, é que aquilo que poderia ser feito de modo legal e público, foi realizado por meios ocultos (por exemplo, a inclusão em um processo do depósito de US$ 80 mil do lobista Zwi Skornicki na conta de Eduardo Musa, diretor da Sete Brasil).
Para que isso? Pela vertigem de poder?
Fora a resposta desastrada, Moro tem caitituado importantes apoios no campo ético e intelectual: o Ratinho, o sr. Luciano Hang, dono da Havan (v. o vídeo), e, dizem, até a Luciana Gimenez.
C.L.