O artigo abaixo já estava escrito, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, na terça-feira (25/06), analisar os pedidos de habeas corpus da defesa de Lula (v. HP 25/06/2019, STF recusa um recurso da defesa e outro de Gilmar Mendes pela soltura de Lula).
Adiamos, portanto, a publicação e mudamos o foco da nossa cobertura – jornalismo tem dessas coisas.
Mas, agora, encerrado o julgamento até agosto, não há motivos para postergar por mais tempo a publicação deste texto.
Com certeza – como escrevemos abaixo – a questão decisiva não é se Lula permanece preso ou solto. Até porque não existe prisão perpétua no Brasil. E, até pela sua idade, em breve essa questão passará para o campo humanitário.
O que é decisivo, nessa questão, é se Lula é ou não culpado, se foi provada a sua culpa – ou não.
A carta que Lula publicou, na segunda-feira, em seu site, merece, portanto, algumas considerações, a começar pela política que ele, implicitamente, propõe para os dias de hoje.
C.L.
Horas após a eleição de Bolsonaro, no segundo turno, dissemos que suas declarações de amor à democracia significavam o oposto: “elas significam que os democratas do Brasil necessitam se unir – e unir o povo brasileiro – em defesa, precisamente, da democracia” (v. HP 29/10/2018, Vitória de Bolsonaro cria grave ameaça à democracia no Brasil).
Não fomos os únicos, nem era extraordinariamente difícil chegar a essa conclusão.
Os oito meses decorridos desde então confirmaram não somente o significado das palavras de Bolsonaro, mas também foram meses de avanço na formação de uma ampla frente de todos os setores democráticos do país contra a alucinação fascista que está no governo.
Portanto, não deixa de ser impressionante que, na carta que Lula divulgou na segunda-feira (24/06), essa questão esteja de todo ausente – exceto se considerarmos como uma “questão democrática” a própria soltura do autor da carta.
Mas, admitindo essa inclusão, seria a única questão democrática a que ele se refere. A democracia resume-se, portanto, à soltura de Lula. O resultado é que, na carta, o país real não existe, exceto o cidadão Luís Inácio Lula da Silva.
Lula substitui a luta pela democracia – ou em defesa da democracia – por uma suposta defesa da “soberania nacional” (Literalmente: “Sei que estão entregando as riquezas do país aos estrangeiros, destruindo ou privatizando o que nossa gente construiu com tanto sacrifício. Traindo a soberania nacional”).
Logo ele, cuja preocupação com a “soberania nacional” fez com que seu primeiro ato, depois de eleito, ainda em 2002, fosse o anúncio de que o presidente do Banco Central (BC) seria o ex-presidente mundial do BankBoston.
É verdade, Lula paralisou o projeto da Alca e parou com as privatizações – para, em seguida, permitir (e, inclusive, estimular) a desnacionalização por atacado do setor privado nacional.
Seu ministro da Fazenda, Guido Mantega, deu até um nome bonito para essa desnacionalização tresloucada: “social-desenvolvimentismo”.
Este é um dos assuntos, aliás, a que mais nos dedicamos. Existem milhares de matérias nossas sobre a desnacionalização da economia brasileira nos governos Lula e Dilma (4.900, segundo o Google, mas podemos reduzir esse número à metade, para cortar possíveis repetições ou equívocos – e, mesmo assim, são milhares de matérias).
Porém, aqui, basta apontar que, nessa onda, até a indústria do etanol e uma parte grande, talvez a maior parte, das universidades privadas foram desnacionalizadas (para uma abordagem mais geral, v. HP 24/02/2010, O canto das sereias fracassadas 2: o IDE afunda o comércio exterior; ou HP 20/06/2012, O zurro desnacionalizante; e, também, HP 27/11/2013, Sobre as causas do insucesso econômico do governo Dilma; para o caso específico do etanol, v., p. ex., HP 05/05/2010, O etanol e a desnacionalização da produção sucroenergética).
Então, por que, agora, Lula descobriu a “soberania nacional”, algo que nem mesmo no passado mais longínquo foi sua preocupação (disse ele, em entrevista à “Istoé”, em abril de 1989: “numa empresa estrangeira frequentemente ganha-se melhor, goza-se de melhores condições de trabalho, vive-se de forma mais decente. Qualquer dirigente sindical vai dizer em alto e bom som que o grande sonho de um trabalhador de uma empresinha é trabalhar numa Volkswagen, numa Mercedes, ou seja, numa empresa multinacional que quase sempre se paga melhor”)?
Porque a “soberania nacional” que ele imagina – ou que gostaria – é em torno dele mesmo.
Nos últimos meses, a oposição aos intentos antidemocráticos de Bolsonaro et caterva incluíram Fernando Henrique Cardoso (e outros próceres do PSDB não submetidos a João Doria); o senador e ex-governador Otto Alencar (e outros políticos do PSD); e, de resto, em muitos momentos, o conjunto do “centro” (o grupo que a imprensa chama de “centrão”, que tem o deputado Rodrigo Maia, do DEM, como figura mais proeminente). Para não falar de economistas neoliberais que não estão dispostos a sepultar-se na vala comum com Paulo Guedes.
Uma frente em torno da “soberania nacional” – agora, neste momento, com alguns meses de governo Bolsonaro – teria o efeito de estreitar esse amplo espectro.
Logo, teria o efeito de facilitar o grupo de Bolsonaro em sua trama antidemocrática.
O que o país – e a soberania nacional, a verdadeira soberania nacional – ganhariam com isso?
Nada. Pelo contrário. A única forma de lutar pela soberania nacional (de verdade, não entre aspas) é cerrar fileiras tendo a democracia como centro da luta, tendo a democracia como elemento de coesão da frente política.
Qualquer mascarada pela “soberania nacional” (aqui, com aspas), facilitaria o espezinhamento da soberania nacional (sem aspas), na medida em que deixaria a democracia mais em risco do que está hoje.
Com um agravante: o motivo pelo qual Lula não quer uma ampla frente democrática é porque, nesse caso, o PT (isto é, ele, que considera o PT apenas um excipiente de si próprio) não seria o centro dessa frente, não seria em torno dele que se formaria, como está se formando, essa frente.
Daí, essa tentativa de colocar aspas na soberania nacional.
Ou a sua declaração, recente, de que “o PT provou que é o único partido que existe nesse país. O resto é sigla de interesses eleitorais em momentos certos” (v. HP 27/04/2019, “O PT é o único partido político que existe. O resto é sigla de interesses eleitorais”, diz Lula).
PROCESSOS
Na carta – oficialmente dirigida ao ex-ministro Celso Amorim, mas publicada em seu site pessoal -, Lula aproveitou bastante a revelação das mensagens entre o então juiz Sérgio Moro e o procurador Deltan Dallagnol.
É um direito que lhe assiste.
Da nossa parte, já deixamos claro o que pensamos da atitude e das motivações de Moro, reveladas pelas mensagens publicadas por The Intercept Brasil (v. HP 29/05/2019, A troca de mensagens dos procuradores e do então juiz Moro; HP 13/06/2019, Os delitos de Sérgio Moro; HP 14/06/2019, Para Moro, acertos com Dallagnol foram “descuidos formais”; e HP 20/06/2019, A performance e o carreirismo de Sérgio Moro).
Tudo isso é verdade: Moro agiu de maneira irregular (e, em pelo menos um aspecto, completamente ilegal) nas suas relações com Dallagnol (que, aliás, também ultrapassou os limites que sabia que existiam).
Nem por isso o que Lula disse, na carta, sobre o seu próprio caso, deixa de ser uma “narrativa”, uma história inventada para ocupar o lugar da verdade.
O carreirismo de Moro não é uma absolvição para os atos de Lula.
Seria necessário provar, além de que Moro é um alpinista político, que a condenação de Lula, no caso da propina do triplex, não correspondeu às provas apresentadas no processo (no Código de Processo Penal: “Art. 563. Nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa”).
Mas, nesse processo, Lula foi julgado também uma segunda vez (pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região – TRF-4) – e há também uma sentença do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre as questões processuais. Ao todo, oito juízes examinaram o processo do triplex, com sentença unânime sobre a culpa de Lula.
A conclusão foi exatamente a mesma que a nossa, ao examinar os autos do processo – e a mesma dos juristas que consultamos, todos com impecáveis credenciais na luta contra a ditadura, pela democracia e pela independência nacional.
Consideradas as provas, é de importância menor, do ponto de vista político, se Lula continua preso ou não – no Brasil, aliás, não existe prisão perpétua, exceto nas fantasias bolsonaristas.
Embora, também é verdade, existem contra Lula sete outros processos, inclusive uma outra condenação em primeira instância, no caso da propina das obras no sítio de Atibaia (para o leitor interessado em rever as provas, p. ex., v. HP 22/01/2018, Uma pequena compilação das provas contra Lula (só no caso do triplex); e HP 19/07/2017, “O triplex não é meu” ou as provas que Lula garante que não existem).
Entretanto, Lula continua negando a existência de provas – em alguns momentos, de modo ridículo. Por exemplo, quando se refere a “um depoimento do Palocci que de tão falso nem serviu para o processo”.
Quem é, no PT e até fora dele, que não sabia que Palocci era o operador de Lula?
Quem não sabia, no PT e em partidos coligados, que, na primeira campanha de Dilma, Palocci foi colocado por Lula exatamente para controlar o dinheiro?
Quem trouxe Palocci, depois de sua queda do Ministério da Fazenda, causada pelo caso da “mansão” em Brasília, outra vez para o centro da vida política (inclusive para a Casa Civil de Dilma), de onde ele caiu, mais ou menos pelos mesmos motivos?
Por que Lula fez esse esforço? Por que achou que valia a pena fazer esse esforço?
Pela capacidade de Palocci?
Que capacidade? Capacidade de quê?
Até agora, o que foi revelado por Palocci corresponde estritamente aos fatos: era ele quem operava a conta de propinas com a Odebrecht, o que foi confirmado não apenas por Marcelo Odebrecht e seus funcionários, mas pelos e-mails da época, pelos documentos do “setor de operações estruturadas” (o departamento de propinas da Odebrecht), a “conta Italiano”, etc., etc.
Que poder tinha Palocci nessas negociações de propina com a Odebrecht, que não fosse o poder de Lula?
Da mesma forma, Emílio Odebrecht e Alexandrino Alencar também confirmaram a sua relação direta com Lula para as operações da conta que Palocci operava.
Será que essa gente toda resolveu conspirar contra Lula – e, inclusive, apresentar documentos que tinham falsificado anos antes, somente para esperar uma oportunidade de prejudicar Lula?
Por qual motivo fariam isso, se estavam ganhando os tubos, sob o governo do PT?
LAVA JATO
Entretanto, ainda mais significativa é a defesa que Lula faz, na carta, da Operação Lava Jato.
Escreveu ele: “Alguns dizem que ao anular meu processo estarão anulando todas as decisões da Lava Jato, o que é uma grande mentira pois na Justiça cada caso é um caso”.
É óbvio que, se anuladas as decisões de Moro enquanto era juiz, não sairia da prisão apenas Lula, mas uma quantidade industrial de escroques – e nem estamos nos referindo a Eduardo Cunha, Sérgio Cabral, Dirceu e outros de maior notoriedade.
Se o problema é a parcialidade de Moro, em que se diferenciaria Lula dos outros?
Moro proferiu 211 condenações contra 159 réus.
Lula seria o único condenado injustamente?
Entretanto, a julgar pelo texto que transcrevemos, Lula quer sair sozinho da cadeia.
As outras sentenças de Moro – as sentenças contra outros réus –, pelo visto, ele não considera que, nelas, o juiz tenha sido parcial.
Nem o Vaccari? Nem o Dirceu?
Nem o Palocci – que teria confessado a sua culpa apenas pela pressão de Moro, dos procuradores e dos policiais federais?
Porém, Lula parece interessado apenas no seu caso.
Sintomaticamente, ele não pede para ser libertado, como os inocentes sempre fizeram.
Diz ele que reivindica o “direito a um julgamento justo, por um juiz imparcial, para poder demonstrar com fatos que sou inocente de tudo o que me acusaram”.
Por quê?
Porque ele sabe que, apesar de tudo o que Moro fez, as provas prevaleceram – e a população sabe disso.
Não lhe basta, portanto, ser solto; nem ao menos ter o julgamento, por Moro, anulado; precisa de uma encenação para recuperar-se.
No Brasil, como em quase todos os países civilizados (as exceções são poucas), as provas cabem à acusação. Quando não há provas, o réu é absolvido.
Lula sabe perfeitamente disso. Porém, reivindica “poder demonstrar com fatos que sou inocente de tudo o que me acusaram”.
Se não existem provas, como ele diz que não existem, não há necessidade de apresentar mais nada.
Certamente, a defesa também pode apresentar provas – mas o que Lula está dizendo, é que as provas da acusação não existem.
No entanto, as provas da defesa não apareceram nos dois julgamentos do caso do triplex. E, mais: a defesa, em nenhum momento, contestou as provas apresentadas no processo. Limitou-se, como o próprio Lula, a dizer que elas não existiam.
Um dos julgamentos – aquele da segunda instância, no TRF-4 – foi transmitido pela TV.
A defesa de Lula permaneceu adstrita a uma série interminável de preliminares.
Fora isso, a argumentação se resumiu a que a acusação era baseada apenas no depoimento de Leo Pinheiro, ex-presidente da OAS.
O que não era – e não é – verdade (v. a parte 3.3.7. Síntese das provas com relação ao triplex e reformas, do voto do desembargador Gebran Neto, no TRF-4, pp. 292 a 295; e a parte seguinte, 3.3.8. Argumentos do apelante Luiz Inácio Lula da Silva, pp. 295 a 306).
CORRUPÇÃO
No último congresso da UNE a que fomos convidados, um dirigente do PT (por sinal, uma boa pessoa, na minha opinião, uma pessoa decente) disse-me algo como “é verdade, ele roubou; mas o que é um triplex ou um sítio?”. E insinuou (quase falou) que eu estava resvalando para o lacerdismo.
Não lhe respondi o óbvio – que o tamanho do roubo não inocenta o ladrão, sobretudo um presidente da República – porque sabia que não se tratava “apenas” de um triplex ou de um sítio.
Tratava-se (e ainda se trata) de um gigantesco esquema de corrupção, montado contra a Petrobrás, a empresa mais estratégica, mais decisiva para o nosso futuro, e a mais popular – aliás, a maior vitória e conquista do povo brasileiro desde a Revolução de 1930.
Quanto ao lacerdismo, a diferença é simples: Lacerda difamava Getúlio, Jango, Juscelino, por uma corrupção que não existia.
Nem a ditadura conseguiu encontrar uma gota do “mar de lama” de que falava (aliás, gritava) Lacerda.
Por isso, era uma difamação.
A de agora é uma corrupção real, suja, infame.
Somente a Procuradoria Geral da República, nos acordos homologados pelo STF, conseguiu, até agora, a devolução de R$ 1,1 bilhão aos cofres públicos (v. Balanço PGR: Colaboradores já devolveram mais de R$ 1,1 bilhão aos cofres públicos).
No Paraná, somado o dinheiro com os bens bloqueados, essa cifra está em R$ 4,0462 bilhões.
E ainda precisamos somar os resultados da Lava Jato no Distrito Federal, no Rio de Janeiro e em São Paulo – o que faremos proximamente.
Será que esses elementos devolveram tal montante porque eram inocentes? Por que não tinham roubado?
Nem Lula é capaz de sustentar um despautério dessa magnitude.
Tanto assim que está reivindicando a anulação apenas do seu processo.
CARLOS LOPES
Excelente análise, embora discordo em partes!