Publicamos, há relativamente pouco tempo, um longo trabalho sobre a República (v. A República e a formação do caráter nacional), que sucedeu outro, mais antigo (v. O nascimento da República e os jabutis em cima das árvores).
A rigor, a Proclamação da República tornou-se o tema mais polêmico da historiografia brasileira. Daí, o interesse que tem despertado. Não por acaso, a reação dos quadrilheiros de Bolsonaro declarou, desde logo, sua aderência à monarquia.
O texto abaixo é anterior aos dois que citamos acima. Comparado a eles, talvez seja modesto. Mas é nossa homenagem à República e aos homens que a fizeram, neste 15 de Novembro.
CARLOS LOPES
Em 1887, o Partido Republicano, através de uma declaração de Campos Sales, presidente do Partido Republicano Paulista – o partido da burguesia cafeeira – assume oficialmente a abolição como uma bandeira central, ligando-a ao seu objetivo estratégico, a república.
Mas somente no ano seguinte os republicanos se aproximariam dos militares. Desde 1871, quando Benjamin Constant fez no Rio uma conferência sobre o positivismo, a oficialidade jovem do Exército encontrava-se em estado de sublevação, que crescia cada vez mais devido à atitude da monarquia frente às Forças Armadas.
Pelas declarações e conferências de Benjamin Constant, tenente-coronel e professor da Escola Militar, é possível perceber em que aspecto a doutrina positivista do francês Auguste Comte serviu aos ideais republicanos. Na França, a filosofia de Comte não passava de uma prolixa, e de resto insuportavelmente maçante, defesa da medíocre ordem dominante. No Brasil, a sua concepção da república como a negação do direito divino, condensado na pessoa do monarca com poder de passar o seu cetro e coroa por herança, servia perfeitamente para dar forma filosófica e ideológica ao inconformismo da juventude militar.
Entre os civis e no movimento abolicionista, não era o positivismo que predominava – Tobias Barreto, que como poeta havia sido o rival derrotado de Castro Alves, mas era o mais admirado conhecedor de filosofia entre os jovens talentos da época, havia considerado a “escola de Comte” definitivamente superada já na década de 70.
A partir de 1879, a Abolição passa a ser a principal questão da vida política do país. É por volta desse ano que se fizeram conhecidos nacionalmente os nomes, as vozes e os escritos de Luiz Gama, Lopes Trovão, José do Patrocínio, Silva Jardim, Joaquim Nabuco.
Em 1887, a situação é insustentável: os escravos abandonam em massa as fazendas e conquistam na prática a liberdade, sem que haja quem os contenha ou persiga. A sociedade toda parece ajudá-los. O escravagismo está irreversivelmente isolado, o que se comprova no ano seguinte durante a votação da Lei Áurea, que tramitou no Senado durante apenas dois dias, sendo aprovada por 83 votos contra nove. Os próprios representantes da oligarquia escravista não ousaram votar contra.
Quando a escravidão deixou de existir, a existência da monarquia já não tinha mais sentido algum.
Desde 1886, com a exoneração do oficial mais popular do Exército, o marechal Deodoro da Fonseca, do comando militar do Rio Grande do Sul, por ter protestado contra a perseguição aos militares, a monarquia já não controlava a rigor as Forças Armadas. Ao retornar ao Rio, no Natal de 1886, Deodoro é recebido em triunfo no cais da atual Praça Mauá pelos cadetes da Escola Militar.
Presidente do Clube Militar, Deodoro é, em seguida, afastado do Rio, nomeado para um comando em Mato Grosso, então a mais remota província do Império. Ao voltar, no início de 1889, é recebido outra vez como o líder do Exército.
Quando o novo presidente do Conselho de Ministros, visconde de Ouro Preto, tenta reprimir os protestos militares e corre o rumor de que a Guarda Nacional será outra vez fortalecida para que as Forças Armadas sejam desmobilizadas, a crise política chegou ao limite.
Na noite de 11 de novembro de 1889, pela primeira vez, os republicanos conversam com o marechal. Uma comissão composta por Quintino Bocaiúva, Benjamin Constant, Rui Barbosa, Aristides Lobo, Sólon Ribeiro e Francisco Glicério, vai à casa de Deodoro. Na mesma noite, o imperador promove, na ilha Fiscal, um baile em homenagem aos oficiais de um navio chileno. Havia cinco mil pessoas no baile: a nata da melhor sociedade monarquista. Ao se retirar, por volta de uma hora da manhã, D. Pedro II fez um comentário bem humorado: “como veem, senhores, a monarquia escorregou mas não caiu”. Na verdade, já tinha caído – embora somente quatro dias depois a queda tenha sido oficializada.
O melhor relato dos acontecimentos do dia 15 foi feito pelo seu maior inimigo, o presidente do Conselho deposto, Visconde de Ouro Preto. Com as tropas reunidas em frente ao quartel-general sob o comando de Deodoro, Ouro Preto mandou chamar o outro oficial de autoridade reconhecida no Exército, o marechal Floriano Peixoto, dizendo a ele:
“- Esta artilharia pode ser tomada à baioneta; na pequena distância em que se acha postada, entre o primeiro e o segundo tiro de uma peça, há tempo para cair sobre a guarnição…”
Floriano respondeu:
“- É impossível. As peças estão assestadas, de modo que qualquer surtida será varrida a metralha…
“- Por que deixaram, então, que tomassem tal posição? Ignoravam isto? Mas não creio na impossibilidade senão diante dos fatos. No Paraguai os nossos soldados apoderavam-se da artilharia em piores condições…”
Respondeu Floriano:
“- Sim, mas lá tínhamos em frente inimigos e aqui somos todos brasileiros”.
“A República só se consolidará sobre alicerces seguros quando as suas funções se firmarem na democracia do trabalho industrial”
RUI BARBOSA
A revolução republicana – suas forças e sua base – irão definir a história do país nos 40 anos seguintes. A própria revolução de 30 terá à frente um filho de uma das alas mais decididas do movimento republicano – o castilhismo. E, do outro lado, à frente das forças derrotadas, estará um representante da burguesia cafeeira. Da mesma forma, saudando Getúlio ao tomar posse em 1930, estará, em nome das Forças Armadas, o general Tasso Fragoso, aluno e discípulo de Benjamim Constant na Escola Militar.
Os primeiros anos da República serão dirigidos pelos setores pequeno-burgueses urbanos, com base no Rio de Janeiro. A política econômica do primeiro ministro da Fazenda da República, Rui Barbosa, é a expressão de seus interesses e objetivos, ao tentar estimular a industrialização pela expansão do crédito, objetivo inteiramente consciente, tal como Rui o expressou em seu relatório ministerial de 1891:
“No regime decaído, todo de exclusivismo e privilégio, a nação, com toda sua atividade social, pertencia a classes ou famílias dirigentes… Não se pode ser assim em um sistema republicano. A República só se consolidará, entre nós, sobre alicerces seguros, quando as suas funções se firmarem na democracia do trabalho industrial, peça necessária no mecanismo do regime, que lhe trará o equilíbrio conveniente” (grifo nosso).
Para conseguir esse objetivo, Rui decretou a reforma bancária, regulamentou a criação de empresas – entre elas, e sobretudo, as sociedades anônimas -, estabeleceu uma estrutura de financiamento às atividades produtivas, estimulou o aumento da poupança interna, criou estabelecimentos para captação da poupança popular e reformulou a legislação sobre hipotecas, com o objetivo de dotar o Brasil de uma rede de crédito que não estivesse sob controle estrangeiro ou da agiotagem oligárquica. Além disso, determinou que os impostos alfandegários fossem pagos em ouro, como forma de desestimular as importações de bens de consumo, ao mesmo tempo que praticamente eliminava as tarifas de importação para matérias-primas e máquinas industriais. Por último, elaborou um projeto de reforma tributária em que criava o imposto de renda, taxava as terras ociosas e os produtos supérfluos – bebidas alcoólicas e fumo, principalmente.
O plano era, claramente, o de dotar o país de uma estrutura financeira própria para que a industrialização fosse possível principalmente com recursos internos, secundarizando os empréstimos externos que haviam afundado a economia do Império. Ao mesmo tempo, reforçar o Estado para que tivesse condições de atuar como alavanca do crescimento.
No mesmo relatório, Rui expôs o resultado de sua política:
“No longo curso de mais de sessenta anos, decorridos até a lei de 13 de maio, o movimento industrial, representado no capital das sociedades anônimas, circunscreveu-se à soma de 410.879:000$000. Nos dezoito meses compreendidos entre 13 de maio de 1888 e 15 de novembro de 1889, as associações do mesmo gênero constituídas nesta cidade, exprimem um capital de 402.000:000$000. De 15 de novembro de 1889 a 20 de outubro de 1890 (onze meses), as sociedades anônimas, formadas nesta capital, atingem a importância descomunal de 1.169.386:600$000”.
Em suma, de novembro de 1889 a outubro de 1890 houve um crescimento empresarial maior do que em sete décadas do Império.
Para realizar o objetivo do primeiro governo republicano, Rui havia mandado às favas a mais sacrossanta instituição da economia dita “ortodoxa”, isto é, da economia dominada pelo capital financeiro inglês: o lastro-ouro da moeda, tal como os EUA haviam feito durante a sua revolução e depois, durante a Guerra Civil. Era, aliás, uma política econômica inteiramente consciente:
“… recorri à única salvação possível em semelhantes conjunturas: assentar, como os Estados Unidos tinham feito, em circunstâncias análogas e sob a força de iguais necessidades, a garantia do meio circulante sobre os títulos da dívida nacional”.
Em outras palavras, com os depósitos em ouro fugindo para o exterior, Rui os substituíra, como lastro da moeda, por apólices emitidas pelo governo. Como resultado, descrevia Rui:
“… o fôlego da renascença industrial, incipiente no dia imediato à abolição, dilatou-se próspero e criador, pelos amplos pulmões da República…”
Ao mesmo tempo em que tinha de varrer os restos da monarquia, a República se defrontou imediatamente com a resistência dos banqueiros ingleses, que tinham tido seus interesses contrariados. Pressionado, o embaixador brasileiro em Londres escreve a Rui, relatando os problemas. O ministro da Fazenda responde com um curto telegrama:
“Bancos não têm nenhuma razão. Pelo seus estatutos aprovados Governo Brasileiro, eles se obrigaram a leis e regulamentos existentes, ou que de futuro se decretassem. Não lhes faltarão advogados para lhes dar outro parecer, porque os há para tudo, mas a verdade jurídica é esta. O Governo Provisório não pensa hostilizar bancos estrangeiros, mas não lhes pode consentir posição privilegiada de, sem capitais no país, viverem de especulações constantes sobre o câmbio, como agora estão fazendo, em prejuízo do comércio, do tesouro e do crédito nacional. Se quiserem fechar não nos fazem falta.”
Quanto à reação monarquista, esta só foi vencida, à duras penas, no segundo governo republicano, que tinha à frente o marechal Floriano Peixoto.
Apesar de suas contradições no plano político – Rui estará na oposição a Floriano – que revelavam uma insuficiente consciência da necessidade de manter a frente republicana para aprofundar o processo de transformação do país, e a dificuldade objetiva de conciliar os diversos interesses de seus vários setores, não por acaso certa historiografia reacionária tratará de forma igualmente negativa os dois períodos iniciais da República: ao mesmo tempo que Floriano, que esmagou as tentativas de restauração monárquica, é um “ditador” – e “jacobinista”, identificando-o, aliás acertadamente, com a ala esquerda da Revolução Francesa -, Rui e o governo Deodoro são “incompetentes”, e sua política é chamada, precisamente por favorecer o financiamento à industrialização, de “encilhamento”, procurando atribuir-lhe o surto especulativo, em meio ao qual ele assumiu o Ministério, provocado pelos agiotas externos no final do Império.
O rompimento da frente nacional republicana, no entanto, tem causas objetivas. Desde o governo provisório – que teve Rui Barbosa como 1º vice-presidente e Benjamin Constant como 2º vice-presidente – se estabelece a luta entre os que projetam o Brasil como um país industrial e autônomo, com desenvolvimento baseado no mercado interno, e os interesses da burguesia cafeeira, com sede em São Paulo, que pela própria atividade é vinculada a um produto agrícola destinado ao mercado externo.
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