CARLOS LOPES
Para Renato Rabelo e Werner Rempel
“… o cosmopolitismo – essa espécie de regime colonial do espírito que transforma o filho de um país num emigrado virtual, vivendo, estéril, no ambiente fictício de uma civilização de empréstimo”
Euclides da Cunha
Em seus últimos escritos, Celso Furtado chamou atenção para a existência, dentro do Brasil, de uma pequena camada que pretende viver – e efetivamente vive – com os padrões de privilegiados dos países centrais (a expressão de Furtado era “imitam os padrões”: v. Em Busca de Novo Modelo – Reflexões sobre a crise contemporânea, Paz e Terra, 2ª ed., 2002, p. 8).
O problema, frisou Furtado, é que a manutenção desses padrões, para tão pouca gente, se dá às custas de todo o país, de toda a Nação, vale dizer, de todo o povo brasileiro, através de uma brutal concentração de renda e “forte propensão a importar”.
Essa camada não é constituída apenas por aquelas 60 mil famílias que vivem de juros, espoliando as mais de 62 milhões de famílias – segundo o último Censo – que há no país (cf. Alcino Ferreira Camara Neto e Matias Vernengo, “Conta de Juros Grande e Favela – Formação da Elite Rentista no Capitalismo Tardio e Periférico”, BRVCom, 2013).
É um pouco mais que isso, até porque existem suas extensões ideológicas – gente que prefere entrar em uma “Cafeteria” do que em um “Café”; ou que chama a si mesmo de “ceciliers”, quando moram no bairro paulistano de Santa Cecília; ou “farialimers”, quando circulam pelos antros financeiros da Avenida Brigadeiro Faria Lima, também em São Paulo.
Mas, certamente, não é muita gente. Aliás, é pouquíssima gente.
Nos últimos anos, essa camada foi cevada, com isso se tornando cada vez mais reduzida – parece um paradoxo, mas não é – em relação ao conjunto do país. Agora, aparece ostensivamente o seu lado mais podre, mais bandidesco, mais sem escrúpulos, no “ministério da economia” de Bolsonaro.
O que é Guedes, senão um representante dessa micro-casta, aliás, sua condensação? A escroqueria, a podridão ao ar exposta, o ódio a quem trabalha, a quem empreende, ao povo e ao país, apenas enfatiza essa “condensação”.
O que são os outros, inclusive Bolsonaro, senão aspirantes – pelo método de Goering – a pertencer a essa camada?
A tosquidão desses outros, sua imbecilidade – e seu fascismo – não elimina nem contraria essa aspiração, completamente antinacional. Pelo contrário, só a evidencia, por sua sofreguidão destrambelhada, pela lei da selva a que pretendem submeter o país.
Obviamente (é mais fácil, infelizmente, escrever esta palavra do que convencer a alguns do que nos parece óbvio), não é possível combater o obscurantismo, a destruição do país e o fascismo a partir de posições que não sejam nacionais.
A ideia de que somos uma coleção de nações (ou, seja, de “culturas”), além de ser mera “narrativa” – isto é, mentira – subserviente a supostos modelos externos, como apontou Pierre Bordieu (cf. Sobre as Artimanhas da Razão Imperialista, Estudos Afro-Asiáticos, vol.24, nº 1, 2002), serve, no momento – usando uma sintética expressão popular -, para facilitar a vida do fascismo.
Embora, em outro trabalho, já tenhamos tocado nessa questão (e no mesmo sentido), Antonio Risério fez uma síntese essencial, quanto ao problema da miscigenação:
“… o grosso da mestiçagem se deu entre os grupos sociais subalternos ou dominados: entre brancos pobres, índios servis ou semisservis, e pretos escravos, livres ou libertos. Eram misturas se multiplicando na periferia pobre das vilas e cidades coloniais, nas pequenas lavouras, em quilombos, nos portos e comunidades pesqueiras, nas vizinhanças vegetais dos engenhos, em fazendas e fazendolas, nos múltiplos caminhos do povoamento do futuro país. E o mais importante: depois das miscigenações iniciais, a mestiçagem vai passar a se processar, evidentemente, em meio a uma população já majoritariamente mestiça, entre mamelucos, mulatos e cafuzos. É nesse contexto que Antonil, escrevendo ainda em 1711, poderá reproduzir um provérbio da época, dizendo que o Brasil era o inferno dos pretos, o purgatório dos brancos e o paraíso dos mulatos e das mulatas” (cf. Antonio Risério, “A mestiçagem brasileira foi um processo popular”, OESP, 22/06/2019).
A história de que a miscigenação no Brasil é um produto do estupro a que os senhores submetiam as escravas é uma estupidez (ouvi, uma vez, um suposto entendido na matéria dizer que “o mulato é produto do estupro”; senti-me atingido pessoalmente, e quase que a discussão resvalou para o chamado desforço físico; mas foi bobagem da minha parte sentir-me atingido pessoalmente por uma imbecilidade).
Em vários outros trabalhos (por exemplo, “Maria Graham no Brasil: Maria Quitéria, José Bonifácio e o alvorecer do país” e “Os Andradas e outros heróis da Independência do Brasil”), destacamos os mestiços como principal base da Independência e a oposição destes aos portugueses, que os chamavam, pejorativamente, de “cabras”. Como escreve Risério:
“… historicamente, o sentimento de ser brasileiro, ou de uma diferença nossa, com relação a Portugal, vai se enraizar e se espalhar, primeiramente, em meio à população mestiça que não ocupava o cimo da nossa hierarquia social, a exemplo daqueles mulatos que promoveram a chamada conspiração dos alfaiates, na Bahia setecentista.”
Portanto, implicitamente, o que se procura negar com o mal chamado “multiculturalismo” é a própria Independência do país como fato histórico, ainda que essa negação seja no plano ideal ou na fantasia. Se a Nação não existe, se sua base popular – isto é, sua população – é constituída pelos descendentes do estupro, de que independência se pode falar?
Se não somos uma nação – mas uma colcha de retalhos étnica -, como a Independência nacional pode ter existido?
Entretanto, os problemas atuais do país – inclusive a destruição econômica e o fascismo bolsonarista, portanto, também o racismo – não podem ser resolvidos (não podem sequer ser enfrentados) se não somos uma nação, ou, o que é a mesma coisa, se não afirmamos nosso caráter nacional.
Não é possível enfrentar a atual desgraça, se concedemos aos inimigos do país o uso do que simboliza esta Nação – a começar pelo verde-amarelo ou pela bandeira do Brasil.
Pior ainda se concedemos a esses inimigos o uso exclusivo desses símbolos da nacionalidade.
Foi com esses símbolos – e essas cores – que derrubamos a ditadura, e, não por acaso, à medida que se aproximava da sepultura, ficou cada vez mais difícil, para aquele malfadado regime, manipulá-los (não faltaram tentativas, durante 21 anos; para os primeiros momentos, logo após o golpe de 1º de abril, v., por exemplo, o livro de Carlos Heitor Cony, “O Ato e o Fato”; ou o “Febeapá – O Festival de Besteira que Assola o País”, de Stanislaw Ponte Preta).
Porém, isso apenas aconteceu porque a Nação, apesar de todas as amarras, existia – assim como existe – e se levantava contra as amarras que a tolhiam.
Mas o que é a Nação?
Do ponto de vista histórico, antes de tudo, o seu caráter, o seu “ethos”. O Brasil, há muito, formou um caráter nacional, exatamente o que pode ser chamado de ethos.
Tal ethos, na forma que chegou até a Revolução de 30, e depois desta, foi um resultado, sobretudo, da luta contra a escravatura e contra a monarquia.
Aqui, não há subestimação da História anterior do Brasil e do povo brasileiro. Ao contrário (sobre essas questões históricas, v., por exemplo, Sérgio Cruz, “Pátria Livre Ainda Que Tardia – A verdadeira história de Tiradentes”, NELPA, 2011).
A questão é de outra ordem:
1) a incorporação daqueles que a monarquia manteve por escravos por quase sete décadas (1822-1888), parte dos que construíram o país, mas ainda restavam cativos;
2) por consequência, a falta de sentido da monarquia, uma vez que seu fim era a manutenção do escravismo.
A primeira questão vai muito além dos 723.419 escravos que foram libertados oficialmente em 1888 (cf. IBGE, “Brasil – 500 Anos de Povoamento”, Rio, 2007, p. 91).
Evidentemente, como disse Rui Barbosa, a própria aceitação de que algum brasileiro pudesse ser escravo, era um obstáculo a que o Brasil fosse plenamente uma Nação.
É verdade que a escravatura tornara-se tão absurda, que as relações entre escravos e não escravos, como pertencentes ao mesmo país, à mesma nação, ao mesmo todo, passara, em grande medida, a ser corriqueira na população desde o século XVIII, e, mais ainda, depois da Independência. Mas isso somente demonstra o quanto a escravidão era um entrave (cf., por exemplo, sobre as relações entre escravos e não escravos, Luís Henrique Dias Tavares, “História da Sedição Intentada na Bahia em 1798”, Pioneira, 1975; e o nosso trabalho “A Baronesa de Grajaú e outros casos da piedosa caridade dos escravagistas”, que mostra uma família, já em 1876, em que as crianças assassinadas eram escravas, mas não a mãe e a avó delas).
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Em outros trabalhos nos referimos à escravidão como principal obstáculo ao crescimento do país desde, pelo menos, a crise bancária de 1864 – a chamada “quebra do Souto”, devido ao seu início, em setembro de 1864, com a falência da Casa Souto.
Quem era esse Souto? Um português chamado Antonio José Alves Souto, que recebera o título de visconde de Souto:
“O Souto era o mais acreditado e o mais popular dos banqueiros havidos e por haver no Brasil; a sua casa inspirava uma confiança absoluta, e não havia homem do trabalho que, avisado e previdente, não houvesse lá depositado as suas economias” (Artur Azevedo, “Ou paga ou morre!”).
Então, por que Souto faliu e arrastou consigo as outras “casas bancárias”?
Em A revolta dos escravos e o fim do Império nos referimos à política dos “metalistas”, em especial Torres Homem, e também Silva Ferraz, que substituíra o “papelista” Souza Franco no Ministério da Fazenda, em setembro de 1859.
Aqui, apenas frisaremos a conclusão de Mauá, de que essa “crise bancária” era o reflexo de uma crise na produção:
“Aos desacertos governativos, seguiu-se em curto prazo, a calamidade de algumas más colheitas sucessivas, o que acarretou desequilíbrio, (sendo a produção o verdadeiro regulador das finanças do Brasil); e a crise da lavoura, impropriamente chamada crise bancária, estalou em 10 de setembro de 1864” (cf. Exposição do Visconde de Mauá aos Credores de Mauá & C e ao público, Rio, 1878, p. 135, itálicos no original).
Não pretendemos voltar a uma abordagem da economia do país na segunda metade do século XIX. Mas existem algumas questões que consideramos importante focalizar.
A primeira é que, em um país de economia quase toda agrícola, de trabalho escravo, “não só o comércio, como as casas bancárias, estavam em mãos de portugueses, como dessa nacionalidade já haviam sido os maiores importadores de negros até 1853. (…) A grande maioria das casas comerciais e bancárias, a cujas mãos se entregavam os fazendeiros em momentos de aperto, era de fato portuguesa” (cf. Vicente Licínio Cardoso, “À Margem da História do Brasil”, 2ª ed., CEN, 1938, pp. 143 e 144).
O Souto que quebrou em 1864 não era, portanto, um caso isolado.
Em 1877, um autor, Manuel Thomaz Alves Nogueira, constatava: “a produção do café estava estacionária desde 1856, pois que nos anos de 1865, 67, 69 e 75, o aumento derivava, tão somente, da abundância de colheita sem nenhuma dilatação de cultivo de novas terras” (cit. in Vicente Licínio Cardoso, op. cit., pp. 144-145).
O escravismo, portanto, levara à estagnação econômica do país, inclusive da agricultura, muito antes de sua crise final.
[UMA NOTA: É bastante tentador atribuir a essa situação econômica a política exterior dos liberais, liderados por Zacarias de Góes e Vasconcelos, no governo desde janeiro de 1864, de intervir no Uruguai – o que acabaria na eclosão da Guerra do Paraguai. Mas seria falso. A intervenção no Uruguai foi aprovada na Câmara em abril de 1864, quando nada anunciava – do ponto de vista das aparências – a crise de setembro.]
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Entretanto, marasmo econômico não implica em marasmo entre o povo – muitas vezes implica no contrário. Essencialmente, foi o que se viu com a ocupação pela esquadra inglesa da Baía de Guanabara, em 31 de dezembro de 1863.
Trata-se de um acontecimento histórico, em nossa opinião insuficientemente abordado por nossa historiografia, referido, em geral, como a “Questão Christie”.
Poucas coisas mostram o arraso a que foi submetido o ensino público nos últimos anos, do que a necessidade de expor o que foi a chamada “Questão Christie”, para que se possa entender aquilo que queremos dizer.
Em 1861, um barco mercante inglês, o Prince of Wales, afundou na costa do Rio Grande do Sul e – segundo os donos da embarcação – algumas caixas com mercadorias desapareceram, o que motivou uma nota arrogante (na verdade, mais de uma) do ministro plenipotenciário da Inglaterra no Rio de Janeiro, W.D. Christie, ao ministro dos Negócios Estrangeiros do Gabinete Caxias, Benvenuto Taques.
Christie exigia que um representante da Inglaterra fosse parte nos processos instaurados contra os supostos ladrões, para garantir que eles fossem punidos. Exigia, também, que o governo brasileiro pagasse uma indenização por aquilo que teria sido roubado.
O ministro brasileiro repeliu a nota de Christie, respondendo que “a legislação brasileira não permitia interferência de agentes estrangeiros a dirigir processos, e que o Governo imperial se não considerava responsável por malefícios isolados praticados em costas bravias e desabitadas, tanto mais quando as autoridades nacionais se revelavam ativas e zelosas no cumprimento de seus deveres. Lembrava, finalmente, ao diplomata que nos primeiros inquéritos e diligências havia comparecido e sido ouvido o cônsul britânico” (cf. J.M. Pereira da Silva, “Memórias do Meu Tempo”, Senado Federal, 2003, p. 297).
Foi, então, que ocorreu o segundo incidente, aliás, mais importante para a explosão popular que seguiu.
João Manuel Pereira da Silva, conselheiro e senador do Império, nessa época deputado pelo Rio de Janeiro – e prócer do Partido Conservador – resumiu brevemente, em suas memórias, o que houve:
“A 17 de junho de 1862, três oficiais da marinha britânica, pertencentes à tripulação da fragata Ford, ancorada no porto do Rio de Janeiro, vestidos à paisana, dirigiram-se à serra da Tijuca, em passeio permitido pelo seu respectivo chefe. Divertiram-se durante o dia, descansaram e alimentaram-se em uma estalagem, e ao anoitecer trataram de regressar para a cidade, a fim de se recolherem a bordo de seu navio.
“Em caminho, divisaram uma estação policial, e alegres e cantarolando depois de suas pitorescas excursões, aproximaram-se, começaram a zombar da sentinela e a dirigir-lhe palavras e gestos que lhe desagradaram. Aconselhou-os a sentinela a continuar tranquilamente o caminho. Em vez de se acomodarem, pretenderam os três ingleses penetrar à força na estação. Acudiram soldados em defesa da sentinela, que repelia seus propósitos. Enleou-se uma pequena luta, e o oficial prendeu os três ingleses, e remeteu-os incontinenti ao subdelegado da paróquia do Engenho Velho que, não obtendo deles declaração de seus nomes e qualidades, os fez recolher ao xadrez, onde estavam guardados vários delinquentes.
“Ao amanhecer do dia seguinte, enviou-os o subdelegado ao chefe de polícia, noticiando-lhe o ocorrido.
“Viu-os o chefe de polícia, e chamou o vice-cônsul inglês para reconhecê-los. Foi-lhe então por este funcionário declarado que eram oficiais da fragata Ford. Mandou-os o chefe agasalhar com as devidas atenções no quartel da polícia e tratou de inquérito a respeito do acontecimento. Requisitou-os o vice-almirante da Esquadra britânica, e o chefe de polícia convencido de que não havia suficiente motivo para processá-los, ordenou que se lhes desse plena liberdade” (cf. J.M. Pereira da Silva, “Memórias do Meu Tempo”, Senado Federal, 2003, pp. 297-298).
Apesar disso, “a 19 de junho oficiou Christie ao ministro dos Negócios Estrangeiros, protestando contra a prisão dos oficiais a qual aclamava de ilegal, acusando as autoridades da paróquia do Engenho Velho de havê-los encarcerado em masmorra de envolta com negros e facínoras, considerando agravado o fato com a presunção de que estivessem embriagados, e exigindo satisfação condigna à marinha de guerra inglesa, menoscabada nas pessoas de três oficiais que lhe pertenciam”.
Os marinheiros ingleses estavam embriagados. Porém, Christie considerava um crime (uma agravante) a simples “presunção”, aliás inevitável, de que estivessem imersos em um porre federal (aliás, real).
Homem educado na Europa, o conselheiro Pereira da Silva deixou de registrar um detalhe que, hoje, parece cômico: um dos “oficiais britânicos”, que apareceram no posto policial mais ébrios que um gambá, era o capelão da fragata Ford.
Mas, continuemos:
O ministro dos Negócios Estrangeiros do Brasil não era mais Benvenuto Taques, mas Miguel Calmon du Pin e Almeida, o marquês de Abrantes, desde a Guerra da Independência um dos homens de maior influência do Império, dentro e fora do país – e um homem quase fascinado pela Inglaterra, desde sua visita a esse país, depois da dissolução da Constituinte, na “Noite da Agonia” (11-12 de novembro de 1823), por D. Pedro I (Calmon era deputado constituinte pela Bahia).
Mesmo assim, Calmon respondeu a Christie “com a exposição miúda dos acontecimentos, lembrou-lhe que os oficiais estavam vestidos à paisana, eram desconhecidos, e não podiam, portanto, gozar de privilégios militares”.
“Decorreram alguns meses em trocas de notas entre o ministro brasileiro e o diplomata britânico, sem que se concordasse na solução.
“A 5 de dezembro, porém, remeteu Christie uma nota reunindo as duas questões relativas aos oficiais da fragata Ford, e ao navio naufragado no Albardão. Caiu das nuvens Miguel Calmon, ao lê-la com atenção.
(…)
“Afirmava o ministro inglês que recebera ordem do seu Governo para exigir baixa de serviço do alferes da estação policial, que tinha prendido os três oficiais ingleses, e castigo rigoroso da sentinela; censura pública ao chefe de polícia e ao subdelegado do Engenho Velho; e plena satisfação pelas ofensas e injúrias por eles suportadas”.
O marquês de Abrantes podia achar que a Inglaterra era um modelo que o Brasil devia seguir. Mas não era um capacho ao modo daquele ministro das Relações Exteriores que descobriu em Trump a nova encarnação de Deus.
“Respondeu-lhe Miguel Calmon a 18 que, diretamente, submeteria a controvérsia ao Governo britânico, e recomendaria ao diplomata brasileiro acreditado em Londres que se entendesse com Lorde John Russell, secretário de Estado da repartição de relações estrangeiras.
“No dia 20, recebeu, porém, um ultimato assinado por Christie. Não admitia discussão dos assuntos propostos em Londres, porque estava autorizado por seu Governo a liquidá-los no Rio de Janeiro com o Governo do Império.
“Quando não satisfeito, incumbiria ao vice-almirante inglês Warren, chefe da estação naval britânica no Brasil, a missão de, pela força, conseguir a reparação exigida.
“Replicou-lhe Miguel Calmon protestando contra maneira tão insólita em litígios diplomáticos, e apelando para o juízo das nações civilizadas, e para o do próprio governo de Sua Majestade a Rainha Vitória.
“No dia 3, o intimou Christie de que o vice-almirante britânico iniciaria represálias contra propriedades de súditos brasileiros para garantia das indenizações que reclamara.
“No dia 31, com geral espanto, viu a população da cidade levantarem âncoras os vasos de guerra ingleses, encaminharem-se para a barra, divisarem cinco navios marcantes costeiros que procuravam penetrar no porto, e apreendê-los à vista das fortalezas da entrada, em mares territoriais do Brasil.”
O porto do Rio de Janeiro, capital do Brasil, estava bloqueado pela esquadra inglesa para exigir a demissão de um alferes de polícia – e mais algumas coisas – por prender três bêbados ingleses.
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E, de repente, no Brasil, houve uma irrupção de ira popular. A maior desde a revolta que terminou com a abdicação de Pedro I. Ou, talvez, até, a maior desde a Independência.
A descrição de Pereira da Silva é peculiar não apenas por se tratar, como se dizia, de uma “testemunha ocular”, mas também porque os olhos dessa testemunha eram os de um conservador nada afeito a manifestações de plebeus.
“E impossível descrever a sensação dolorosa produzida na capital do Império por tão brusco, brutal e violento emprego de força.
“Amontoaram-se nas praças, nas ruas, nos morros e nas praias da cidade multidões furiosas, gritando, ameaçando vinditas contra ingleses, e suas propriedades, e pretendendo assaltar o consulado e legação britânica. Mister foi que as tropas de linha e polícia, partidas dos quartéis, se esforçassem em serenar os ânimos, prevenir tumultos e desordens, dissolver mangas de povo e defender os súditos britânicos, que fecharam as portas de suas casas de comércio e se escondiam para escapar aos furores da plebe amotinada.
“Correu à Bolsa o ministro da Agricultura e Comércio, e convocou os negociantes brasileiros a uma imediata sessão. Pediu-lhes sossego e resignação, e afiançou-lhes que o Governo imperial pagaria aos particulares os prejuízos que sofressem com o procedimento da diplomacia e da Esquadra britânica.
“Aqui oravam tribunos improvisados incitando os habitantes contra os ingleses, e a força pública era coagida a opor-lhes resistência, a fim de apaziguá-los.
“Nos morros acumulavam-se grupos numerosos a presenciar o triste espetáculo que davam os vasos de guerra ingleses na entrada da barra. Nos cais aglomerava-se desordenada populaça, pretendendo fiscalizar e proibir embarques e desembarques de pessoas. Com dificuldade logrou-se desvanecer seus ímpetos e defender a ordem pública.
“Foi um dia de angústia e de terror, cuja reminiscência se não apagou ainda dos espíritos.”
A monarquia teve um comportamento tíbio, apesar dos discursos de Pedro II, garantindo que “perderia a coroa, mas não se humilharia ao estrangeiro”. Mas aceitou que Christie estabelecesse, ao seu arbítrio, uma indenização para o caso do Prince of Wales – e pagou “sob protesto” três mil e duzentas libras esterlinas.
Porém, Christie continuou com as exigências em relação à prisão dos três borrachos ingleses.
Mas isso não havia como aceitar, com o povo – a polícia, inclusive – indignado contra os ingleses:
“Conservou, porém, a população brasileira o ressentimento produzido pela injúria, que maculava a dignidade da nação. Sofreu por algum tempo o comércio inglês, preferido o de outros estrangeiros. Abriram-se subscrições em favor da defesa do país, da compra de embarcações de guerra, e de armamentos, e em melhoramentos das fortificações da cidade.
“Entusiasmo patriótico extraordinário manifestou-se não somente na capital do Império, como em todas as províncias, e esqueceram-se diante dos graves acontecimentos realizados as divergências de partidos, unidos todos em um só pensamento: salvar a dignidade da bandeira, do solo e da Coroa.”
Daí o rompimento de relações diplomáticas com a Inglaterra e a submissão da questão à arbitragem do rei da Bélgica – que deu razão ao Brasil, o que não foi aceito pela Inglaterra.
A última observação sobre esse episódio é que, em seguida, Pedro II, usando o “poder moderador”, derrubou os conservadores do poder, instalando nele a coalizão dos liberais com dissidentes dos conservadores denominada “Liga Progressista”.
Pereira da Silva mostra-se embasbacado que “diante dos acontecimentos críticos por que a nação passara em consequência do conflito estrangeiro”, Pedro II tenha mandado às favas um governo que “em questão de dignidade nacional o auxiliava”.
Talvez esse fosse o problema.
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A noção de que republicanos e abolicionistas fossem times diferentes é, essencialmente, falsa.
Luiz Gama não conseguiu colocar a Abolição no manifesto republicano de 1870; mas continuou radicalmente republicano.
Silva Jardim, vindo do abolicionismo, tornou-se o principal orador republicano (“… quem não vê que o principal vitimado [da continuação da monarquia] será o povo, o proletário, o operário preto, ao qual sem dúvida faltará muita vez mesmo o que comer? O operário, o ex-escravizado, o liberto, – eis a principal vítima da monarquia, eis o explorado no reinado de Isabel, como explorado no reinado de Pedro!”).
Esta é a mesma trajetória de José do Patrocínio, apesar de alguns meses de ilusão, após o 13 de Maio (v. “Silva Jardim: a República e a Revolução Brasileira”; e “O nascimento da República e os jabutis em cima das árvores”).
A exceção, evidentemente, é Campos Salles e alguns republicanos paulistas, que apoiaram a Abolição depois que o Conselheiro Prado – líder dos fazendeiros paulistas – deixou de sustentar a manutenção da escravatura.
Certamente, também existiam monarquistas – o exemplo sempre lembrado é Joaquim Nabuco – que eram abolicionistas. Mas não eram eles que davam qualidade ao conjunto do movimento.
É significativo, voltando mais um pouco no passado, que durante muitos anos a “revolução de 7 de abril de 1831” (assim era chamada a abdicação de D. Pedro I) fosse mais popular que o Sete de Setembro.
Na década de 80, não somente a Abolição, mas a República concentra (ou, como se dizia, galvaniza) as atenções e os esforços.
Quarenta anos depois da Proclamação, em 1928, Roquette-Pinto, discursando em homenagem ao autor da letra do Hino Nacional, Osório Duque-Estrada (antecessor de Roquette na Academia Brasileira de Letras), lembrou esse clima.
Duque-Estrada, nascido em família de militares – tinha por padrinho de batismo o próprio general Osório -, publicara, em 1887, quando era aluno do Colégio Pedro II, um livro de poemas intitulado “Alvéolos”. Não era um livro notável, exceto pela idade do autor, 17 anos, e pelo prefaciante: Sílvio Romero, que, com José Veríssimo, foi o maior crítico e historiador literário brasileiro do século XIX e inícios do século XX.
Roquette-Pinto, um dos homens de ciência do Brasil mais preocupados com a questão da nacionalidade, sabia das debilidades da obra de Duque-Estrada. Porém, ressalta:
“Há, porém, ali, duas composições que sobrelevam: A Monarquia e Na Fazenda, soneto dedicado a José do Patrocínio, onde o aluno do Pedro II descreve a partida dos escravos para o trabalho, sob o chicote do fero capataz.
“Monarquia é a composição mais significativa do livro. A Abolição e a República foram nobres paixões do nosso amigo: aproximaram-no de alguns dos maiores espíritos do tempo. Tratando mais tarde desses dois lances da história pátria, prestou Osório grande serviço à verdade e à justiça, sem contar o concurso pessoal que deu aos acontecimentos, e de que jamais pediu recompensa aos que a vitória colocou no poder. Nos seus livros, pela primeira vez, aos estudantes se depararam os nomes de Rui Barbosa, Patrocínio, Nabuco, José Bonifácio (o Moço), Antônio Bento, João Clapp, Joaquim Serra, Gusmão Lobo, Dantas, André Rebouças, gente de que os compêndios usuais não falavam, ao citar a Princesa Isabel e João Alfredo. As crianças não compreendem facilmente o que seja a tradição; mas, sem ela desaparece a pátria, reduzida a um bando de bípedes gregários. Tradição é a essência das lembranças acumuladas nas famílias de um povo. E os nomes que se conservam prestam serviço muito maior aos que vivem e aos que hão de viver, do que propriamente aos donos, para quem a fama não tem clarins e tubas que vençam a última surdez…”
E, quase em seguida, Roquette-Pinto toca no problema, já naquela época presente, devido àquele grupo de monarquistas que Carlos Sussekind de Mendonça chamou “as perpétuas da Lapa” (a direção do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro: conde Afonso Celso – filho do visconde de Ouro Preto, último presidente do Conselho de Ministros do Império -, Max Fleiuss e Ramiz Galvão; o IHGB localizava-se na Lapa e sua diretoria era “perpétua”).
Diz Roquette-Pinto:
“O aluno-poeta do Colégio Pedro II, em 1887, oferece-nos mais uma prova, se preciso, de que a República não foi obra de meia dúzia de soldados, e sim desfecho de um longo preparo de opinião. Considero notável o testemunho dos Alvéolos partido de um adolescente, educando de uma casa que era a menina dos olhos do Imperador; de um moço que, além de tudo, não se filiava na corrente que Benjamim Constant dirigia.”
Ou seja, não era positivista. Mas era republicano. Roquette-Pinto cita um dos versos de Osório Duque-Estrada no poema dedicado à monarquia:
“Tombe o cetro do rei como grilhão pesado!”
Esse era o espírito que tomava o país.
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No entanto, nos últimos tempos, exumou-se a versão das “perpétuas da Lapa”, de que a República foi um golpe de Estado – com as últimas contribuições bolsonaristas (v. HP 15/11/2019, Weintraub diz que República foi “infâmia contra patriota iluminado” e HP 18/11/2019, Weintraub chama Marechal Deodoro de “traidor” e provoca indignação no Exército).
Na verdade, essa versão jamais foi – depois de 1925, quando o governo Artur Bernardes resolveu comemorar o centenário de Pedro II – sepultada. Apesar de, exatamente, ser a versão do visconde de Ouro Preto, o último presidente do Conselho de Ministros do Império em seu livro “Advento da Dictadura Militar no Brazil” (1891), publicado durante seu exílio em Paris.
Em 1925, a pedido do IHGB (isto é, das “perpétuas da Lapa”), Oliveira Viana escreveria o seu reacionaríssimo “O Ocaso do Império”. Há, nesse livro vários trechos antológicos. Por exemplo, sobre a Abolição:
“Se estivesse aqui [disse Pedro II ao voltar da Europa], talvez não se fizesse o que se fez’ – o que parece mostrar que o radicalismo da Lei de 13 de Maio teria sido muito atenuado, se ele tivesse presidido à última fase da elaboração legislativa da sua grande ideia. Provavelmente, ter-se-ia dado aos proprietários uma justa indenização” (os grifos são nossos).
José Honório Rodrigues, em sua “História da História do Brasil”, diz que “Oliveira Viana foi o maior pensador de direita que o Brasil produziu”.
Provavelmente, também, foi o último, pois é difícil qualificar o que veio em seu rastro como “pensamento”. E conseguiu contaminar grande parte da produção historiográfica brasileira sobre a República.
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Somente para frisar essa questão, correndo o risco de esgotar a paciência do leitor – mas é a questão-chave deste trabalho – a República é, dos nossos acontecimentos históricos, hoje, o mais difamado.
Mesmo se omitirmos os bolsonaristas e outros trogloditas, não existe pequeno intelectual avinagrado – parafraseando uma excelente expressão de Gramsci – que não se compraza em dizer que a Proclamação da República foi um “golpe”, que o povo não participou, que assistiu “bestificado” (tirando do contexto uma palavra usada por Aristides Lobo), etc.
Algo incomodado, tenho escrito alguns textos sobre esse acontecimento, que, como revolução, faz parte, evidentemente, do mesmo movimento que conduziu à Abolição da escravatura.
Hoje, quando alguns se admiram de que somente em 1888 a escravidão tenha sido abolida no Brasil, ao contrário de outros países, melhor seria perguntar: por quê?
Porque havia, no Brasil, uma monarquia para garantir a permanência da escravatura. Ou, dito de outra forma, a figura do imperador, com seus poderes quase absolutos, era a representação, ou, talvez, condensação, da classe dos senhores de escravos.
O que é evidente até pelos títulos de suposta nobreza, distribuídos, sobretudo, a senhores de escravos.
Espero que este seja o meu último trabalho sobre a República – embora, nunca se sabe.
Pretendia publicá-lo inteiro, de uma só vez, mas optei pela forma de capítulos por dois motivos: o primeiro, e menos importante, são algumas características do programa usado em nosso site.
O segundo – e realmente decisivo – veio a mim depois de passar algumas horas na fila de atendimento de um dos maiores hospitais públicos do país, vendo e conversando com aquelas pessoas das mais variadas cores ou tonalidades. Era gente muito boa, muito amiga, ainda que todos estivessem em um momento não muito bom de suas vidas – e tivessem saído de casa ainda madrugada, para não perder a chance de ser atendido.
Pensei: é para essa gente que eu escrevo. Publicar o texto inteiro, de uma só vez, seria torná-lo inacessível. Mesmo que elas não leiam capítulo nenhum, eu é que não vou colocar mais uma dificuldade – e não pequena.
Quanto à dedicatória deste trabalho:
Ainda não conheço muito Renato Rabelo. Mas, quando o vi levantar a questão do “ethos” – do “ethos nacional”, se podemos dizer assim – na luta pela democracia, soube que ali estava um homem, um ser humano, acima da medida “normal” dos seres humanos.
Sem esse “ethos” nós somos nada.
Por isso, me pareceu justo, em um trabalho sobre essa questão, dedicá-lo a Renato, a quem, em pouco tempo, aprendi a admirar sua devoção ao povo, aos mais humildes, àqueles que nada têm, porque deles lhes foi retirado tudo.
Quanto a Werner Rempel, é aquele amigo que todos nós queríamos ter – e eu tenho!
Porém, mais que isso: sem Werner, sua cultura, seu amor ao Brasil e por cada pessoa do Brasil, seria impossível realizar este trabalho – boa parte das fontes, senão a maior parte, foram conseguidas por ele.
O que nos traz outra vez ao milagre – termo que não é exagerado, por todos os atentados contra ele, por todos os sofrimentos que suporta – que é o nosso povo, um povo que fala português, mas não é insólito que um dos seus maiores patriotas e democratas chame-se Werner Rempel.
A República e a formação do caráter nacional (2)