(HP, 11/11/2016)
Na próxima terça-feira, a República, no Brasil, completará 127 anos. O que foi o conjunto do movimento que conduziu à deposição da monarquia, já abordamos em outras oportunidades (v. em especial, “O nascimento da República e os jabutis em cima das árvores”, HP 14/01/2015 e segs). Hoje publicamos, de maneira condensada, alguns trechos do excelente livro de Maurício Vinhas de Queirós, “Uma Garganta e Alguns Níqueis: história de Silva Jardim, o herói da propaganda republicana” (Ed. Aurora, Rio, 1947).
E mais não falamos, pela absoluta falta de necessidade.
C.L.
MAURÍCIO VINHAS DE QUEIRÓS
Pode-se falar que existiam, ao longo da corrente republicana e até no interior do Partido Republicano Brasileiro, tipos de opinião política nitidamente diferenciados. Os positivistas ortodoxos aspiravam chegar à República pela simples obra da evangelização dos espíritos, e dirigiam apelos patéticos a D. Pedro II, a fim de que, uma vez conquistado à doutrina de Comte, se prestasse a servir de instrumento a essa gradual transformação, nomeando-se a si mesmo presidente perpétuo…
Havia, por outro lado, os políticos ou politiqueiros “soi-disant” republicanos, afundados no costume dos compromissos e cambalachos, menos atraídos pela conquista enérgica do novo regime do que – como dizia Silva Jardim – interessados na “aspiração mesquinha das posições que poderia dar um eleitorado republicano dentro do regime monárquico”. Exemplo frisante deste comportamento era uma ala do Partido Republicano de S. Paulo: enquanto os conservadores estavam na oposição a um governo liberal, tais “republicanos” seguiam fielmente a reboque daqueles, na esperança de conseguir um naco do poder quando a situação política se invertesse e se, chegado o momento, não o conseguiam, era para espanto e decepção de muitos.
Isto para não falar das transigências de inúmeros republicanos sobretudo em São Paulo, frente ao escravismo: eram senhores de terra ou burgueses ainda bastante ligados à sua origem rural e que ainda não viam claro as vantagens da transformação nas relações de trabalho.
Ao lado de tal fração, erguia-se, entretanto, mesmo em São Paulo, uma outra cujo máximo representante foi o negro Luiz Gama, republicano inflamado e que organizava praticamente os seus irmãos de raça para a luta direta contra o cativeiro.
Teórica e um tanto esquematicamente, os republicanos se dividiam entre os “evolucionistas” e os adeptos da revolução. Os primeiros esperavam que, com o próximo falecimento de Pedro II, o Império caísse por si mesmo, como um fruto podre, sem a mínima necessidade de qualquer esforço violento. Expoente, em grande parte, desta tendência foi o próprio Quintino Bocaiuva, eleito presidente do Partido, e que aconselhava sempre “a maior prudência e cautela nos meios e processos a empregar”. “Revolução, mas no sentido moral”, era o lema de Quintino e demais apaziguadores.
Em outubro de 1888 realizou-se uma espécie de Congresso nacional do Partido Republicano, com o objetivo de escolher entre as diversas tendências em jogo e firmar uma rota geral. Apesar dos esforços de muitos, nada ficou decidido neste conclave.
Os republicanos tímidos temiam que lhes prejudicasse a eles a intrepidez de propagandistas como Silva Jardim, os quais não cediam ante os atentados — dia a dia mais sérios — que o governo imperial praticava contra a liberdade de pensamento. Não levantavam protestos contra a prepotência das autoridades, mas pediam “moderação” aos correligionários consequentes. Esta situação se revelou de maneira aguda logo após os fatos de 30 de dezembro de 1888, quando Silva Jardim, ao discursar na Sociedade de Ginástica, sofrerá junto com os que o ouviam o conhecido e sangrento ataque da “guarda negra”.
Após tão grave incidente – que abalou de rijo a opinião pública – revoltou-se o jovem tribuno contra a atitude acarneirada daquele grupo “evolucionista”, do qual muitos expoentes estavam até deturpando os acontecimentos para criticar a “desmedida audácia” de Silva Jardim.
Por cinco dias o republicano “demasiadamente audaz” ficou trancado em casa, e – a 6 de Janeiro de 1889 – saía num diário da Capital a “Carta Política ao País e ao Partido Republicano”, por ele assinada. Era o início da luta aberta contra os capitulacionistas e apaziguadores.
Neste documento, Silva Jardim faz, preliminarmente, o histórico de tudo quanto ocorreu no dia 30, para que fique bem patente a posição daqueles que os truncam. Mostra como a iniciativa e a responsabilidade da baderna cabe exclusivamente aos homens do governo, ao gabinete de João Alfredo e aos que a este servem.
Reafirma a sua fé na próxima queda do Império, através de uma comoção revolucionária, como já a definira no Congresso de São Paulo. Prevê para o ano que se inaugura – de 1889 – o fim da monarquia brasileira, no centenário da Revolução Francesa.
Não recuar, é o seu lema; não ceder nenhum passo em face dos atentados da reação. “A luta está, pois, travada e foi a monarquia quem, atacada pelo Pensamento e pela Palavra, rompeu com a Arma e com a Revolução. Nós íamos falar, nós íamos nos reunir, fomos atacados pelos que queriam combater, pelos que queriam matar. Combatemos também: provavelmente também matamos para viver; viver pela nossa Pátria!”.
Pouco depois de ter lançado a “Carta Política”, Silva Jardim caiu com súbita doença que em poucos dias o levou quase à morte. Conseguiu seu organismo reagir também rapidamente e, após breve convalescença nas Paineiras, em março já se encontra em Minas, numa daquelas suas campanhas de agitação.
Depois de percorrer cerca de 15 cidades, volta poucos dias à Corte, para defender com brilho uns casos da sua advocacia. Não demora e logo está de torna-viagem, completando a tarefa deixada a meio.
Foi esta uma das mais perigosas excursões que fez; inúmeras vezes viu de perto a morte nos atentados terroristas que contra ele os donos do Império inspiravam.
Em maio de 1889 está de regresso ao Rio e logo parte para São Paulo. Reúne-se mais uma vez o Congresso nacional dos republicanos, mais uma tentativa de definir algo em comum entre as várias orientações divergentes.
Num amplo manifesto, lançado a 25 de Maio de 1889, Silva Jardim expõe os seus motivos. Após referir-se às falsas bases pelas quais foi organizado o Congresso, que elegeu Quintino Bocaiuva – “falseado o regime republicano de fiscalização, de discussão pública, falseado o regime representativo, para que se desse a ditadura de um pequeno grupo paulista” – revela o grande propagandista – “descubro na sua eleição, o que eu sentia de longos meses: uma conspiração de alguns velhos elementos do Partido Republicano gastos para a ação patriótica, somente capazes da intriga para a cobiça do poder, aliada à falta de compreensão da situação política atual, com o pretenso fim de paralisar a ação republicana, por medo dos perigos que ela continuasse a trazer; pela incerteza do gozo do poder, e pela aspiração mesquinha das posições que possa dar um eleitorado republicano dentro do regime monárquico; e ainda, o que tem mais importância do que pudera parecer, pelo receio do predomínio moral dos novos elementos republicanos em ação…”.
Traça o grande tribuno todo um programa para remodelar o Partido Republicano, limpá-lo das excrescências e pô-lo à altura das contingências históricas do momento :
“Penso que o Partido Republicano, sob pena de covardia, deve, ao menos, não recuar da atual fase de agitação política, em que por vezes não cedeu, mesmo diante das armas…”
E adiante:
“… conservando o sólido princípio fundamental do Partido Republicano, e as suas gloriosas tradições guerreiras e pacíficas, já é tempo de dar-lhe uma melhor direção política, mais científica e mais patriótica, quanto à doutrinação e processos; direção não vazada unicamente nos moldes democráticos, que o confundiram no passado com o Partido Liberal e no presente revelam o perigo de fazê-lo absorvido por este Partido, o que obriga os republicanos a não aceitarem o modo por quê, por falta de estudo conveniente, o sr. Quintino Bocaiuva concebe a República; modo vago, estéril, anárquico, atrasado e utópico.”
Assim expõe os objetivos pelos quais teriam de lutar os verdadeiros republicanos:
“… organização de um partido republicano construtor, preliminarmente revolucionário, em que realmente se deseje para a pátria uma presidência poderosa, instituída pela vontade popular, a princípio por aclamação, sujeita em seguida ao sufrágio universal, – capaz de ser autoridade, na qual se deposite uma cautelosa confiança, inteiramente fiscalizada pela Assembleia Nacional, câmara financeira, e pela opinião pública, por meio de todos os seus órgãos, – tornada assim o delegado representativo da pátria, síntese da liberdade; e pois Governo, na combinação feliz dos dois elementos que esta palavra resume: — Poder e Povo…”
Silva Jardim possuía consciência da necessidade de consolidar o verdadeiro núcleo revolucionário ao aproximar-se o momento da insurreição; agrupar e diferenciar os comprovados defensores da causa, daqueles que se diziam republicanos por frases bonitas, mas que no fundo eram apenas oportunistas e aproveitadores.
“Por que razão o 7 de Abril [de 1831 – o movimento que obrigou D. Pedro I a abdicar] degenera em movimento monárquico?” — indagava. “Porque o grupo dos exaltados deixou-se vencer pelo dos moderados… É mister evitar a nossa entrega ao liberalismo, sequioso de poder, tornando-se republicano de um dia para outro. É’ preciso tirar o Partido Republicano deste perigo: que a República seja a Monarquia sem o Imperador!”
Era deste modo que Silva Jardim caracterizava a situação revolucionária criada no Brasil de então:
“O momento é o mais oportuno para a instituição da república no Brasil, é o mais adequado para a sua instituição sem grande abalo social. A nação inteira está mesmo à espera de um novo estado de coisas, sente-se nas vésperas de uma reorganização. O partido dito conservador invade o terreno das reformas liberais. O partido liberal arvora a bandeira da federação, que bandeira arvoraremos nós? Certo que a da república imediata, e, pois, a da revolução.”
Não se desesperava com as manobras reacionárias dos últimos governantes do Império. “Todas as reações” – dizia – são vésperas de revoluções, e o poder se torna tirânico quando se sente fraco na opinião!.
“Já disse as minhas opiniões sobre o Deodoro, o Wandenkolk e outros, além do triste caso do Madureira. Espera-se muito do Custódio José de Melo e mesmo do Floriano Peixoto, que dizem estar muito desgostoso. Enfim, estou certo de que, quando a nossa propaganda tiver penetrado todas as massas, o Exército estará conosco”.
Silva Jardim trabalhava por um movimento insurrecional amplamente popular, que abrangesse de fato as grandes massas. Daí a lógica da sua conclamação:
“… apelamos para todos que a pátria habitam, a fim de que nos auxiliem no trabalho e na regeneração da pátria. Pedimos o concurso da mulher, porque sabemos que sem o impulso do seu coração, jamais revolução gloriosa ou reforma eficaz o homem realizou; pedimos o concurso dos moços porque sabemos que na mocidade alia-se o entusiasmo científico ao entusiasmo patriótico; pedimos o concurso dos velhos porque sabemos que a sua inflexão consagra e santifica o denodo cívico, o impulso rebelde e a audácia política. Pedimos o concurso de todos, qualquer que seja a sua nacionalidade: – dos estrangeiros – se é que essa palavra estrangeiros existe nos nossos dicionários – a que colaborem conosco na reorganização da terra que adotaram…”.
E ainda:
“Assim conjuramos a todos os brasileiros a que reflitam em que acima dos partidos, acima dos liberais ou de conservadores, devemos ser patriotas, mormente quando a pátria, isto é, nós mesmos, está em verdadeiro perigo.”
Pensamento que ele tinha exposto no início de sua pregação:
“Se a revolução abolicionista fez-se nos quilombos e nas fazendas, a revolução política precisa ser feita nas ruas, e em torno dos palácios do Imperante e de seus ministros… Nada pode dispensar, portanto, um movimento francamente revolucionário…”
Assim, naquele maio de 1889, defrontavam-se com toda a nitidez, fora dos bastidores e aos olhos de todos, ambas as correntes centrais do movimento republicano. Dois homens as representavam e exprimiam. Diversos na sua formação, no temperamento, nos interesses e nas aspirações: Silva Jardim e Quintino Bocaiuva.
É claro que a divergência de orientação entre os republicanos se fundamentava, indiscutivelmente, em razões de classe. E tudo indica que Silva Jardim isto não ignorava. Escreveu ele, referindo-se aos problemas do Partido Republicano em Santos:
“Como é natural… nesse mesmo partido havia a dupla camada, dos mais apressados e mais liberais, e dos mais conservadores, mais demorados, conforme os indivíduos pertenciam ao elemento novo, composto principalmente de empregados do comércio, ou pertenciam ao elemento mais velho, dos donos das casas, homens de maior responsabilidade, mais sobrecarregados de interesses próprios e alheios, e portanto mais prudentes e avisados.”
Em 10 de junho de 1889 subia o gabinete do visconde de Ouro Preto, o último governo do Império.