CARLOS LOPES
A democracia “que abriga todos os direitos” é a principal reivindicação dos republicanos desde o Manifesto de 1870. Por isso, seu alvo é, antes de tudo, o “poder moderador”, o instrumento da ditadura monárquica – ou, como chamou Júlio de Castilhos em 1885, o “despotismo imperial”.
A questão fora percebida e apontada no próprio momento da outorga da Constituição por Pedro I, quando as consequências do “poder moderador” ainda não eram tão visíveis, tão evidentes, quanto em 1870 e depois.
No conselho convocado pelo presidente da província de Pernambuco, Manoel de Carvalho Paes de Andrade, para discutir o juramento da Constituição outorgada, em 1824, o voto de Frei Caneca – que predominou – foi arrasador.
Aqui, apenas um pequeno trecho, sobre o ponto em que a Constituição dizia que “o Poder Moderador é a chave de toda a organização política”.
Pelo contrário, dizia Frei Caneca:
“O poder moderador de nova invenção maquiavélica é a chave mestra da opressão da nação brasileira e o garrote mais forte da liberdade dos povos. Por ele o imperador pode dissolver a câmara dos deputados, que é a representante do povo, ficando sempre no gozo dos seus direitos o senado, que é o representante dos apaniguados do imperador.
“Esta monstruosa desigualdade das duas câmaras, além de se opor de frente ao sistema constitucional, que se deve chegar o mais possível à igualdade civil, dá ao imperador, que já tem de sua parte o senado, o poder de mudar a seu bel prazer os deputados, que ele entender, que se opõem aos seus interesses pessoais, e fazer escolher outros de sua facção, ficando o povo indefeso nos atentados do imperador contra seus direitos, e realmente escravo, debaixo porém das formas da lei, que é o cúmulo da desgraça (…).
“Demais, eu não posso conceber como é possível, que a câmara dos deputados possa dar motivos para ser dissolvida, sem jamais poder dá-los a dos senadores. A qualidade de ser a dos deputados temporária, e vitalícia a dos senadores, não só é uma desigualdade, que se refunde toda em aumentar os interesses do imperador, como é o meio de criar no Brasil, que felizmente não a tem, a classe da nobreza opressora dos povos; a qual só se tem atendido naqueles povos, que foram constituídos depois de já terem entre si seus duques, seus condes, seus marqueses, etc.” (cf. Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, Obras Políticas e Literárias, Tomo I, Typ. Mercantil, 1875, Recife, pp. 42-43).
Os 65 anos seguintes foram uma demonstração de que Frei Caneca estava certo.
É verdade que para executar um dos homens mais notáveis do século XIX, a Constituição outorgada foi insuficiente.
Apesar dos reiterados pedidos de clemência do próprio comandante das tropas imperiais, Francisco de Lima e Silva, Pedro I passou por cima da Constituição que outorgara, para executar Frei Caneca e seus 15 companheiros de martírio.
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Saltemos quase 60 anos (56 ou 55, se o leitor exigir mais precisão).
A sete de janeiro de 1880, os republicanos de São Paulo realizaram, no Largo da Sé, uma reunião em apoio ao povo do Rio de Janeiro. Poucos dias antes, a então capital do Império (a “Corte”, como era chamada) fora sacudida pelo movimento popular que ficou conhecido como Revolta do Vintém (v. A revolta dos escravos e o fim do Império; e O nascimento da República e os jabutis em cima das árvores).
No Largo da Sé, houve dois oradores.
O primeiro foi Martinho Prado Júnior, que propôs um “manifesto aos fluminenses pela sua atitude enérgica”.
O outro foi Luiz Gama, que propôs a comissão para redigir o manifesto: Américo Brasiliense, Rangel Pestana e Martinho Prado Júnior.
Luiz Gama “concluiu convidando o povo a ir cumprimentar as redações da imprensa livre e independente, representada pela ‘Gazeta do Povo’, ‘Província de S. Paulo’ e ‘Correio Paulistano’. Aceitas estas propostas, dirigiu-se o povo reunido às tipografias dos jornais referidos, cujas redações agradeceram, falando pela ‘Gazeta do Povo’ o sr. Veiga Cabral, pela ‘Província de S. Paulo’ o sr. Rangel Pestana, e pelo ‘Correio Paulistano’ o sr. Eduardo Prado” (Correio Paulistano, ed. 08/01/1880, p. 2).
Segundo os jornais da época, a frequência ao ato da Sé foi grande (“concorrida”) “apesar da chuva incessante e copiosa”.
Outro jornal, “A Província de São Paulo”, calculou em “cerca de mil pessoas as que reuniram-se no largo da Sé, sendo certo que imenso seria o concurso, a não ser o temeroso temporal que desabou sobre a cidade”.
Aliás, essa última notícia merece atenção, nem que seja pela palavra “meeting”, isto é, comício, para designar a reunião do Largo da Sé:
“Meeting – A chuva parece decidida a proteger o vintém e o governo.
“No Rio, ao que disse uma folha, foi talvez a chuva mais do que as tropas o que acalmou a sedição. Aqui anteontem, sabe Deus o que fariam os petroleiros [um equivalente educado de “incendiários”, para designar revolucionários], se a chuva torrencial que começou ao anoitecer, não reduzisse o meeting a mínimas proporções. Ainda assim, à hora aprazada grossa multidão atulhava o pátio da Sé, e ali ouviu com grandes aplausos os srs. dr. Martinho Prado Júnior e Luiz Gama, que falaram sobre as últimas ocorrências da corte e propuseram um voto de simpatia ao povo fluminense.
“A comitiva dirigiu-se em seguida às tipografias da Gazeta do Povo, Correio Paulistano e Província, onde reproduziram-se as manifestações.
“Ante o edifício da Província deu-se por dissolvida a reunião, e ainda assim um pequeno número de pessoas prosseguiu em passeata por algumas ruas.
“Calculam em cerca de mil pessoas as que reuniram-se no largo da Sé, sendo certo que imenso seria o concurso, a não ser o temeroso temporal que desabou sobre a cidade.
“Uma comissão composta dos cidadãos Martinho Prado Junior, Américo Brasiliense e Rangel Pestana foi nomeada por aclamação para redigir o manifesto de simpatia ao povo fluminense” (A Província de São Paulo, ed. 08/01/1880).
Na época, esse jornal era propriedade de uma sociedade composta, entre outros, por Rangel Pestana, Francisco Glicério, Campos Sales, Américo de Campos, Cerqueira César, Martinho Prado Júnior, todos da direção do Partido Republicano.
O que mais parece interessante na notícia sobre o comício da Sé em 1880, é a observação de que a chuva reduziu o comparecimento “a mínimas proporções” ao mesmo tempo que “à hora aprazada grossa multidão atulhava o pátio da Sé” e que “calculam em cerca de mil pessoas as que reuniram-se no largo da Sé”.
São Paulo, 10 anos depois desse comício, no Censo de 1890, tinha apenas 65 mil habitantes. No Censo anterior, em 1872, apenas um pouco mais de 30 mil pessoas moravam na cidade.
Portanto, mil pessoas, debaixo de uma chuva torrencial, parece um comparecimento extraordinário.
A Revolta do Vintém quebrara as ilusões na monarquia – e não somente na “Corte”, isto é, na capital do país.
Uma das coisas mais ignominiosas que se podem lembrar sobre Pedro II é sua amizade extremamente próxima com o conde de Gobineau, o ideólogo racista, que previra a extinção da população brasileira devido à inferioridade dos negros – que, inclusive, ao se miscigenarem, arrastavam os filhos mestiços dos brancos para o precipício…
Pois é a Gobineau, no dia 3 de janeiro de 1880, que Pedro II escreve:
“Tendes lido notícias do Rio? Esses acontecimentos afligem-me profundamente. É esta a primeira vez que isto sucede no Rio desde 1840. Há quase quarenta anos que aqui presido o Governo sem que jamais fosse preciso atirar contra o povo” (cf. George Raeders, “D. Pedro II e o Conde de Gobineau – correspondências inéditas”, CEN, 1938, p. 319).
Esse desembaraço em “atirar contra o povo” para manter o poder será, no entanto, de pouca valia. Cada vez mais, será difícil encontrar quem se submeta à ordem de apertar o gatilho.
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Existe outra conclusão a se tirar do comício em que falou Luiz Gama, em 1880.
O fato – não apenas o seu comparecimento, mas a sua proposta de comissão de redação para o manifesto aos fluminenses – contraria as versões de que Luiz Gama teria se afastado dos republicanos depois que o Manifesto de 1870 e a Convenção de Itu (1873) não colocaram como bandeira explícita a Abolição da escravatura.
Em Itu, na Convenção de 18 de abril de 1873, mais da metade dos 133 delegados eram fazendeiros (78 ao todo), inclusive Martinho Prado Júnior, que seria, com Luiz Gama, orador no comício em apoio à Revolta do Vintém. Entre os 78 fazendeiros, estava, também, Prudente de Moraes.
Luiz Gama travou uma titânica luta pela Abolição, dentro dos republicanos – e na província onde, após o fim do tráfico da África, aumentava mais o número de escravos, comprados às províncias do Nordeste e Norte do país. Por isso, os republicanos paulistas eram especialmente resistentes a colocar a Abolição como bandeira do partido.
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A começar pelo deputado republicano de maior realce no Império, Campos Sales, oriundo de Campinas, São Paulo.
Embora, é injusto, como se fez, às vezes, posteriormente (e seu período na Presidência da República, com sua desastrosa política econômica, ajudou muito a fixar esse falso juízo), tratar Campos Sales como um escravocrata ou mero porta-voz dos escravocratas dentro do Partido Republicano até 1887, quando ele próprio se tornou defensor da emancipação imediata dos escravos.
O que Campos Sales defendeu em 1885, na Câmara (e mesmo antes, como veremos a seguir), foi a política de “localização” – a proibição do tráfico de escravos entre uma província e outra – como premissa para o aumento da imigração.
Essa maneira de ser abolicionista – colocando a chave na substituição dos escravos por trabalhadores europeus –, vista com os olhos de hoje, parece um pouco estranha.
Por que não transformar os escravos em assalariados? Ou em colonos, como se fez com os italianos, alemães e japoneses, que depois aqui chegaram?
É óbvio que essas outras soluções para o problema não eram fáceis, se é que eram possíveis. Mais difícil, ainda, era a transformação dos donos de escravos, com sua mentalidade viciada por séculos de escravismo, em patrões, ou seja, em burgueses.
O problema foi exposto, com nitidez, por Celso Furtado:
“Mais que em qualquer outra matéria, nesta dificilmente se conseguem separar os aspectos exclusivamente econômicos de outros de caráter social mais amplo. Constituindo a escravidão no Brasil a base de um sistema de vida secularmente estabelecido, e caracterizando-se o sistema econômico escravista por uma grande estabilidade estrutural, explica-se facilmente que para o homem que integrava esse sistema a abolição do trabalho servil assumisse as proporções de uma ‘hecatombe social’. (…) Prevalecia então a ideia de que um escravo era uma ‘riqueza’ e que a abolição da escravatura acarretaria o empobrecimento do setor da população que era responsável pela criação de riqueza no país. Faziam-se cálculos alarmistas das centenas de milhares de contos de réis de riqueza privada que desapareceriam instantaneamente por um golpe legal” (cf. Celso Furtado, “Formação Econômica do Brasil”, 14ª ed., CEN, 1976, pp. 136-137).
Furtado observa que “somente em condições muito especiais a abolição se limitaria a uma transformação formal dos escravos em assalariados. Em algumas ilhas das Antilhas inglesas, em que as terras já haviam sido totalmente ocupadas e os ex-escravos não dispunham de nenhuma possibilidade de emigrar, a abolição da escravatura assumiu esse aspecto de mudança formal, passando o escravo liberado a receber um salário monetário que estava fixado pelo nível de subsistência prevalecente, o qual por sua vez refletia as condições de vida dos antigos escravos” (Celso Furtado, op. cit., p. 137, grifos nossos).
Um exemplo esclarece, ainda mais, essa questão:
“O caso da ilha de Antígua é apresentado na literatura especializada inglesa como demonstrativo do caráter puramente formal da abolição da escravatura ali onde as terras estavam monopolizadas por uma classe social. A assembleia dessa ilha dispensou os escravos das obrigações criadas pelo Apprenticeship System, introduzido pelo Parlamento britânico como medida de transição na abolição da escravatura. Esse sistema obrigava os escravos maiores de seis anos a trabalhar seis anos para os seus amos durante uma jornada de 7 e 1/2 horas diárias, mediante alimentação, roupa e alojamento. Ao escravo ficava a possibilidade de trabalhar pelo menos duas horas e meia diárias mais, mediante salário. Concedendo de imediato a liberdade total, os latifundistas de Antígua se concertaram para fixar um salário de subsistência extremamente baixo. A consequência foi que os ex-escravos, em vez de trabalhar 7 e 1/2 horas para cobrir os gastos de subsistência, como ocorreria se se aplicasse o Apprenticeship System, tiveram que trabalhar dez horas diárias para alcançar o mesmo fim. Não existindo possibilidade prática de encontrar ocupação fora das plantações, nem de emigrar, os antigos escravos tiveram que submeter-se. Com razão se pôde afirmar no Parlamento britânico, nessa época, que os milhões de libras de indenização pagos pelo governo da Grã-Bretanha aos senhores de escravos antilhanos constituíram um simples presente, sem consequências práticas para a vida das populações trabalhadoras. Em outras palavras, a abolição da escravatura só trouxe benefícios aos escravistas” (Celso Furtado, op. cit. pp. 137-138, nota).
O Brasil, evidentemente, não é uma ilha, como Antígua, onde a única alternativa a um salário de escravo era o Oceano e seus tubarões, o que mais parece um caso de cárcere privado do que um sistema econômico.
No Brasil, um país muito grande, a maior parte dos escravos queria qualquer coisa, menos continuar nas plantações. Daí, após a Abolição, a grande migração para as cidades, em especial para o Rio de Janeiro. Ou o tangimento para uma atrasadíssima agricultura de subsistência, aquela que, depois, Monteiro Lobato condensaria na figura do Jeca Tatu (v. A revolta dos escravos e o fim do Império).
Sem industrialização, isso significou a marginalização econômica – isto é, o desemprego endêmico ou o definhamento rural – de uma grande parte dos ex-escravos e seus descendentes. É a isso que Furtado se refere quando diz:
“Por toda a primeira metade do século XX a grande massa dos descendentes da antiga população escrava continuará vivendo dentro de seu limitado sistema de ‘necessidades’” (Celso Furtado, op. cit., pp. 140-141).
A rigor, até a Revolução de 1930. Mas esta é outra polêmica, em que não entraremos neste trabalho.
Voltemos ao deputado republicano Campos Sales.
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Em 1885, Campos Sales mostrou que, logo depois do fim do tráfico da África e da aprovação da Lei do Ventre Livre, havia 168.000 escravos em São Paulo.
Com o posterior tráfico entre as províncias, entraram em São Paulo mais 75.878 escravos (cf. Annaes da Camara dos Srs. Deputados do Imperio do Brazil, 1885, Volume IV, p. 219, sessão de 14 de setembro de 1885).
Nessa intervenção de 1885, Campos Sales se preocupou especialmente, enfaticamente, em mostrar o seu credo abolicionista – e o dos republicanos paulistas -, dois anos antes do discurso em que somou-se incondicionalmente aos abolicionistas. Portanto, este já era um problema político que o incomodava, e não pouco.
Assim, ele rememora:
“Em junho de 1870, isto é, um ano antes, e faço questão desta data, de ser discutido e votado o projeto que é hoje a lei de 28 de Setembro [Lei do Ventre Livre], eu dirigi uma carta à redação do Correio Nacional, folha política que então se publicava nesta corte sob a direção dos notáveis jornalistas Rangel Pestana e Limpo de Abreu. Nesta carta, prestando adesão franca ao movimento emancipador, que nesta época começava a tomar certo incremento no país, eu dizia, em relação ao ponto de que me estou ocupando:
‘Parece que não seria sem vantagem pugnar pela cessação do trafico de província a província. Como meio indireto para a emancipação, este seria dos mais eficazes. Todo o norte despeja os seus escravos para o sul, com especialidade para S. Paulo, onde a lavoura é mais próspera. Daqui resulta um grave inconveniente para a emancipação, e é que S. Paulo, por exemplo, não cuidará energicamente da substituição enquanto puder contar com a imigração escrava. Portanto, considerada a natural incúria dos lavradores, é lógico que não se tratará da substituição, e a emancipação, por mais tardia que seja, virá surpreender os agricultores no estado de completa imprevidência. Ao contrário, cessando o tráfico inter-provincial, a lavoura de S. Paulo, para suprir os braços que lhe forem faltando, irá gradualmente introduzindo colonos, e dentro em pouco estará preparada para qualquer desenlace.’
“Eis aqui, senhores, como os homens que hoje se acham à frente do movimento republicano na província de S. Paulo encaravam a questão do elemento servil, um ano antes da discussão e da decretação da lei de 28 de Setembro” (cf. Annaes, p. 218).
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Temos, da luta de Luiz Gama entre os republicanos, uma testemunha ocular: Lúcio de Mendonça, hoje mais conhecido como idealizador da Academia Brasileira de Letras do que como poeta, prosador e jurista. Na República, Lúcio seria ministro do Supremo Tribunal Federal e Procurador Geral da República.
Em 1873, Lúcio de Mendonça era estudante de Direito em São Paulo – e tornou-se republicano. Após a Convenção de Itu, em abril, os republicanos paulistas fizeram um congresso. Em seu artigo biográfico sobre Luiz Gama, sete anos depois, Lúcio de Mendonça registraria:
“Recordo-me, como testemunha presencial, de outra solene ocasião em que o nobre vulto de Luiz Gama destacou-se a toda a luz. Estava reunido em S. Paulo, num palacete da rua de Miguel Carlos, em 2 de julho de 1873, o primeiro congresso republicano da província, presidido pelo austero cidadão dr. Américo Brasiliense.
“Era uma assembleia imponente. Verificados os poderes na sessão da véspera, estavam presentes vinte e sete representantes de municípios – agricultores, advogados, jornalistas, um engenheiro, todos os membros do congresso, moços pela maior parte, compenetrados da alta significação do mandato que cumpriam, tinham na seriedade do discurso e na gravidade do aspecto, a circunspecção de um senado romano.
“Lidas, discutidas e aprovadas as bases oferecidas pela Convenção de Itu para a constituição do congresso, e depois de outros trabalhos, foi, por alguns representantes, submetido ao congresso, e afinal aprovado, um manifesto à província relativamente à questão do estado servil.
“No manifesto, em que se atendia mais às conveniências políticas do partido do que à pureza de seus princípios, anunciava-se que, se tal problema fosse entregue à deliberação dos republicanos, estes resolveriam que cada província da União Brasileira realizaria a reforma de acordo com seus interesses peculiares, mais ou menos lentamente, conforme a maior ou menor facilidade na substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre; e que, em respeito aos direitos adquiridos e para conciliar a propriedade de fato com o princípio da liberdade, a reforma se faria tendo por base a indenização e o resgate.
“Posto em discussão o manifesto, tomou a palavra Luiz Gama, representante do município de S. José dos Campos. Protestou contra as ideias do manifesto, contra as concessões que nele se faziam à opressão e ao crime; propugnava ousadamente pela abolição completa, imediata e incondicional do elemento servil.
“Crescia na tribuna o vulto do orador: o gesto, a princípio frouxo, alargava-se, acentuava-se, enérgico e inspirado; estava quebrada a calma serenidade da sessão; os representantes, quase todos de pé, mas dominados e mudos, ouviam a palavra fogosa, vingadora e formidável do tribuno negro.
“Não era já um homem, era um princípio que falava… digo mal, não era um princípio, era uma paixão absoluta, era a paixão da igualdade que rugia! Ali estava na tribuna, envergonhando os tímidos, verberando os prudentes, ali estava, na rude explosão da natureza primitiva, o neto d’África, o filho de Luiza Mahin!
“A sua opinião caiu vencida e única; mas não houve também ali um coração que se não alvoroçasse de entusiasmo pelo defensor dos escravos.”
E Lúcio acrescenta:
“Dir-te-ei sempre, meu nobre amigo, que não estás isolado, no partido republicano, na absoluta afirmação da liberdade humana. Também como tu, eu proclamo que não há condições para a reivindicação deste imortal princípio, que não há contra ele nem direitos nem fatos que se respeitem. Pereat mundus, fiat justitia! [Que o mundo acabe, mas faça-se a justiça!].E é ignorar essencialmente a natureza das leis da instituição, querer que elas respeitem direitos adquiridos” (Lúcio de Mendonça, “Luiz Gama”, Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 15 de dezembro de 1880).
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Luiz Gama, como todos os republicanos, fez do “poder moderador” o seu alvo preferido – a abolição da escravatura, para ele, estava inextricavelmente ligada à queda da monarquia.
Por isso, a questão se resolvia no terreno da luta política – ele não concebia o abolicionismo como uma luta à parte daquela pelo poder, para, como disse em carta ao filho, tornar o Brasil um país “sem rei e sem escravos”.
Atacado pela ala direita dos republicanos, segundo a qual era necessário, quanto à monarquia e à emancipação dos escravos, esperar pela ação das “leis naturais”, ele responderia:
“Estas palavras, estes conselhos evangélicos escritos por ateus e por pena republicana, se bem que antirrevolucionária, não me causaram admiração, e menos ainda abalaram-me o espírito; pois que eu sei, de há muito, que esses meus distintos correligionários, adoradores prediletos da deusa PREGUIÇA, deitados sob o guitay da paciência, cogitam, de barrigas para o ar, nos meios de esperar a queda pacífica e voluntária da monarquia desoladora por milagre das evoluções calmas, da portentosa sociologia positiva; e, nesta cômoda posição, esperam que o fruto amadurecido, por exclusiva ação do tempo, lhes caia de manso a flor dos lábios, afim de que eles peçam ao primeiro transeunte a graça de lho empurrar, com jeito, para dentro da boca” (cf. Luiz Gama, “A Emancipação – AO PÉ DA LETRA”, Gazeta do Povo, 28 de dezembro de 1880, cit. in Elciene Azevedo, “Entre Escravos e Doutores: a trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo”, Ifch/Unicamp, 1997).
Era um ataque direto à posição dos republicanos positivistas naquele momento:
“Ao positivismo da macia escravidão eu anteponho o das revoluções da liberdade; quero ser louco como John Brown, como Espártacus, como Lincoln, como Jesus; detesto, porém, a calma farisaica de Pilatos” (idem).
E, mais à frente:
“Lembrem-se os evangelizadores do positivismo que nós NÃO ATACAMOS DIREITOS; PERSEGUIMOS O CRIME, por amor da salvação de infelizes; e recordem-se, na doce paz de seus calmos gabinetes, que as alegrias do escravo são como a nuvem negra: no auge transformam-se em lágrimas” (idem).
Há uma certa imprecisão, talvez, nessas colocações, pois um positivista como Júlio de Castilhos – a quem se poderia chamar: um positivista de quatro costados – jamais teve semelhante posição.
Mas o ataque a que Luiz Gama respondeu, realmente, foi formulado da maneira típica dos positivistas.
Nesse sentido, Gama está mais atento aos acontecimentos após a Revolta do Vintém, que podem ser generalizados, com o derretimento da ideologia monárquica, do que os demais republicanos em São Paulo.
No final do mesmo ano, 1880, ele escreveria:
“A 19 de novembro, deu-se em São Paulo uma das cenas mais estranhas que tem visto este Império essencialmente agrícola. Trinta e tantos presos, torturados, aborrecidos, desesperados, irromperam em brados à liberdade e proclamaram a república dentro do quartel, dentro da prisão, sob as grades do xadrez. A república do desespero sob as aras do cárcere! É verdade que a liberdade é mais cara a quem a perde; é fora da luz que se morre por ela” (Luiz Gama, “A República em Prisão de Quartel”, Gazeta de Campinas, 28 de novembro de 1880, cit. in Silvana Mota Barbosa Blanco, “República das Letras: discursos republicanos na província de São Paulo (1870-1889)”, Unicamp, 1995.
A República, portanto, já ultrapassara os círculos de propaganda dos clubes republicanos, a nove anos da Proclamação.
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A integridade republicana, em São Paulo (e, aliás, não apenas em São Paulo), tinha uma síntese: Luiz Gama.
Ele foi, também, após a Independência, o primeiro – em idade – de uma geração de republicanos e abolicionistas. Vejamos os anos de nascimento de alguns.
Luiz Gama: 1830;
Benjamin Constant: 1836;
Aristides Lobo: 1838;
Lopes Trovão: 1848;
Rui Barbosa: 1849;
Júlio de Castilhos: 1860;
Silva Jardim: 1860.
Havia 30 anos de diferença entre Luiz Gama e Silva Jardim ou Júlio de Castilhos. Quase o mesmo que em relação àqueles que foram seus discípulos diretos, como Raul Pompeia (1863) e Lúcio de Mendonça (1854).
A influência libertadora que ele exerceu sobre as novas gerações – estamos falando daqueles que não eram escravos (nem negros) – é difícil de ser aquilatada, por imensa.
Inclusive sobre aquele marcaria a vida intelectual do período inicial da República, Rui Barbosa, que foi colega de Gama na redação do “Radical Paulistano” – o órgão da esquerda do Partido Liberal, os radicais-liberais.
Rui estava no quarto ano de Direito, com 20 anos de idade. Luiz Gama era 19 anos mais velho:
“Em essência [o programa republicano] já se continha todo ele no programa radical, a que, no meu quarto ano, consagramos o Radical Paulistano, folha na redação da qual me coube um dos lugares principais, entre Américo de Campos, jornalista de raça, Luís Gama, o sublime boêmio da redenção dos cativos, o dr. David Elói Benedito Ottoni, liberal da melhor cepa mineira, e Bernardino Pamplona, veterano meu, ramo democrático da família Ferreira Viana, que outros destinos bem cedo arredaram para as lides tranquilas da advocacia e da lavoura” (cf. Rui Barbosa, O.C,. volume XXXVI, tomo I, p. 214).
Três anos após o falecimento de Luiz Gama, Rui, falando no Teatro Politeama, em ato convocado pela Confederação Abolicionista no Rio de Janeiro, ao rebater a suposta inferioridade intelectual e moral dos negros, lembrou-se do amigo:
“Uma das raras fortunas de minha vida é a de ter cultivado intimamente a sua amizade, em lutas que nunca esquecerei. Um coração de anjo, uma alma que era a harpa eólia de todos os sofrimentos da opressão; um espírito genial; uma torrente de eloquência, de dialética e de graça; um caráter adamantino, cidadão para a Roma antiga, inaclimável no Baixo Império; uma abnegação de apóstolo: personalidade de granito, aureolado de luz e povoado pelas abelhas do Himeto. (Aplausos.)” (cf. Rui Barbosa, O.C., volume XII, tomo I, p. 197).
Outra vez, não esqueçamos (ou, melhor, outra vez lembremos), Luiz Gama vivia em uma sociedade onde a escravidão, da qual ele provinha, era considerada normal, a norma da sociedade.
A imagem que ilustra esta página é do jornal “O Mequetrefe”, do Rio de Janeiro, em setembro de 1878. Reproduzimos, abaixo, as palavras desse jornal que explicam a homenagem a Luiz Gama em sua primeira página. Trata-se de uma visão dos seus contemporâneos sobre ele:
“Luiz Gama“
“O nome que acabamos de escrever, é o de um distinto cidadão cujas virtudes e alto critério têm granjeado um lugar distinto e saliente na sociedade paulista.
“Luiz Gama é o protótipo de todas as virtudes cívicas, é uma inteligência robusta, um caráter firme e cavalheiroso a toda a prova.
“Quem é que em S. Paulo não conhece Luiz Gama, o pai da pobreza, o coração generoso, o homem em cuja casa o pobre acha abrigo, o perseguido um defensor, e o aflito consolação?
“Esse honesto caráter, o que é raro nestes tempos que correm, em que tudo se esfacela pela corrupção, tudo o que hoje é, deve-o somente aos seus trabalhos, à sua coragem e à sua atividade. De simples e obscuro cidadão elevou-se à altura de um distinto advogado e criou merecida reputação, chamando sobre si a admiração dos homens honestos e probos.
“Com prazer damos hoje em nossa primeira página o retrato desse cidadão, como alta homenagem do homem que isolado, por meio do trabalho e da perseverança, pôde conseguir ser o que hoje é.
“Oxalá que Luiz Gama sirva de exemplo e estimulo à nossa esperançosa mocidade.”
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Por que Luiz Gama, mesmo com a resistência dos republicanos paulistas a inscrever a Abolição imediata no seu programa, permaneceu no partido até sua morte, em 1882?
Porque ele considerava a Abolição como parte do problema democrático geral da sociedade brasileira. Isto é, como parte do problema de suprimir a monarquia e substituí-la por uma república.
No Manifesto Republicano de 1870, lançado no Rio de Janeiro:
“… de todos os lados políticos surgem os protestos e as revelações estranhas que denunciam a existência de um vício grave, o qual põe em risco a sorte da liberdade pela completa anulação do elemento democrático.
(…)
“Já não são mais os partidos regulares que pleiteiam, no terreno constitucional, as suas ideias e os seus sistemas. São todos os partidos que se sentem anulados, reduzidos à impotência e expostos ao desdém da opinião pela influência permanente de um princípio corruptor e hostil à liberdade e ao progresso de nossa pátria.
“Neste país, que se presume constitucional, e onde só deveriam ter ação poderes delegados, responsáveis, acontece, por defeito do sistema, que só há um poder ativo, onímodo, onipotente e perpétuo, superior à lei e à opinião, e esse é justamente o poder sagrado, inviolável e irresponsável.
“O privilégio, em todas as suas relações com a sociedade – tal é, em síntese, a fórmula social e política do nosso país – privilégio de religião, privilégio de raça, privilégio de sabedoria, privilégio de posição, isto é, todas as distinções arbitrárias e odiosas que criam no seio da sociedade civil e política a monstruosa superioridade de um sobre todos ou de alguns sobre muitos.
“A esse desequilíbrio de forças, a essa pressão atrofiadora, deve o nosso país a sua decadência moral, a sua desorganização administrativa e as perturbações econômicas, que ameaçam devorar o futuro, depois de haverem arruinado o presente. A sociedade brasileira, após meio século de existência como coletividade nacional independente, encontra-se hoje, apesar disso, em face do problema de sua organização política, como se agora surgisse do caos colonial” (cf. Manifesto de 1870 in J. Candido Teixeira, “A Republica Brazileira”, Imprensa Nacional, 1890, p. 46, grifo nosso).
Mesmo quando expõe a ideia da federação, da autonomia das províncias, sufocada pela monarquia, o Manifesto de 1870 coloca em relevo o “poder moderador”:
“… a dissolução da Assembleia Nacional [Constituinte], sufocando as aspirações democráticas, cerceou o princípio [federativo], desnaturou-o, e a carta outorgada em 1824, mantendo o status quo da divisão territorial, ampliou a esfera da centralização pela dependência em que colocou as províncias e seus administradores do poder intruso e absorvente, chave do sistema, que abafou todos os respiradouros da liberdade, enfeudando as províncias à corte, à sede do único poder soberano que sobreviveu à ruína da democracia” (grifo nosso).
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A data do Manifesto Republicano tem significação: 3 de dezembro de 1870, nove meses após o fim da Guerra do Paraguai.
Existem textos – e não são poucos – com a ideia de que o Manifesto de 1870 foi um documento que, apesar da análise que faz da situação do Brasil, quanto à política proposta, é conciliador com a monarquia, o que seria devido, basicamente, à influência de Quintino Bocaiuva.
Nele, há, realmente, um parágrafo que menciona “a ineficácia da revolução” para resolver os problemas do país, usando como exemplo tentativas passadas. No entanto, o parágrafo não está mal em seu contexto, como advertência para a não repetição mecânica (isto é, sem pensar) de táticas ou formas de luta já usadas anteriormente sem sucesso.
Quanto à parte do Manifesto sobre a democracia (“A Verdade Democrática”), foi escrita por Salvador de Mendonça, irmão mais velho de Lúcio de Mendonça – e não por Quintino Bocaiuva. Aliás, é a melhor parte do Manifesto.
A contradição, dentro do Partido Republicano, entre os “evolucionistas” e os revolucionários – embora já aparecesse, por exemplo, na contradição entre Luiz Gama e a ala direita dos republicanos paulistas – somente iria se tornar aguda quase 20 anos depois do Manifesto. Em 1870, aquele que seria, em 1888, o principal representante da tendência revolucionária, Silva Jardim, tinha apenas 10 anos de idade (v. “Silva Jardim: a República e a Revolução Brasileira”).
Na época do primeiro manifesto republicano, o que definiu a assinatura dos 58 homens que o firmaram foi o repúdio à ditadura imperial a que o país estava submetido:
“… tudo está demonstrando que posição precária ocupa o interesse propriamente nacional confrontado com o interesse monárquico” (cf. op. cit., p. 56).
“… o elemento monárquico não tem coexistência possível com o elemento democrático” (op. cit., p. 58).
“… anulada a soberania nacional, sofismadas as gloriosas conquistas que pretenderam a revolução da independência de 1822 e a revolução da democracia em 1831, o mecanismo social e político, sem o eixo sobre que devia girar, isto é, a vontade do povo, ficou girando em tomo de um outro eixo – a vontade de um homem” (op. cit., p. 49);
A mesma relação entre democracia e soberania nacional aparece, também, de maneira tácita:
“Desde que exista, em qualquer constituição, um elemento de coação ao princípio da liberdade democrática, a soberania nacional está violada, é uma coisa írrita e nula, incapaz dos salutares efeitos da moderna fórmula do governo – o governo de todos por todos” (op. cit., p. 57).
Para os abolicionistas que assinaram o Manifesto Republicano de 1870 (por exemplo: Salvador de Mendonça, Rangel Pestana, Cristiano Ottoni, Saldanha Marinho, Lafaiette Pereira e o próprio Quintino Bocaiuva) estava claro que a República pela qual lutavam era incompatível com a escravidão.
A República e a formação do caráter nacional (10)
(continua)
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Você escreve muito bem amigo, otimo artigo, parabéns pelo trabalho, estou lendo todo o site.