“O governo tem um projeto explicitamente antidemocrático e está disposto a sacrificar a economia e as instituições para colocá-lo em prática”, afirmou o economista
“A deterioração da conjuntura econômica, no Brasil de hoje, é resultado da crise política, da sensação de que o governo tem um projeto explicitamente antidemocrático e está disposto a sacrificar a economia e as instituições para colocá-lo em prática”, afirmou o economista André Lara Resende, ex-presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), em entrevista, nesta segunda-feira (6) à Folha de S. Paulo.
Segundo Lara Resende, “a alta recente da inflação não tem nada a ver com descontrole fiscal”. “Os preços das commodities subiram, os alimentos, o petróleo. O Banco Central deixou o real se desvalorizar mais do que outras moedas em relação ao dólar. E a pandemia desorganizou várias cadeias produtivas, provocando escassez de mercadorias”, ressaltou.
“A elevação das taxas de juros não segura os preços, mas inibe investimentos, aumenta o custo da dívida pública e leva a mais cortes no orçamento para equilibrar as contas públicas. O mundo inteiro parou de fazer isso”
Nesse cenário, o economista afirma que “a elevação das taxas de juros não segura os preços, mas inibe investimentos, aumenta o custo da dívida pública e leva a mais cortes no orçamento para equilibrar as contas públicas. O mundo inteiro parou de fazer isso. Não entendo por que contestar a ortodoxia na condução da política econômica ainda é visto como algo tão perigoso no Brasil”.
De acordo com Lara Resende, “a alta esperada da taxa básica pode tanto ser resultado de uma economia excessivamente aquecida, o que exige a atuação moderadora do BC, como pode refletir uma desconfiança mais profunda na economia e na política”.
Para Lara Resende, “não faz sentido restringir o investimento público de qualidade, em nome do equilíbrio fiscal a qualquer preço e em todas as circunstâncias”. “Acredito, sim, que investimentos públicos de qualidade, que contribuam efetivamente para o aumento da produtividade e do crescimento, não devem ficar condicionados à existência de recursos fiscais”.
O economista contesta as afirmações de que há um limite para dívida pública brasileira. “[Os economistas americanos] Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff, em ‘Desta Vez é Diferente’, sustentaram que as economias se desorganizam quando a dívida supera 90% do PIB. Foram desmentidos pela flagrante evidência desde a crise financeira de 2008, agora reforçada pelo pós-Covid”.
“O Brasil tem uma dívida pública interna, denominada em moeda nacional e carregada primordialmente por brasileiros. Não existe um limite superior intransponível para a relação dívida/PIB. Tudo depende de como são investidos os recursos”, afirma.
“Uma dívida expressiva, mesmo superior ao PIB, pode ser perfeitamente sustentável se os recursos forem bem aplicados e os investimentos levarem a uma taxa de crescimento superior ao custo da dívida”, defende.
“Os gastos correntes do Estado, sobretudo os que custeiam a sua operação, devem ser integralmente cobertos por receitas fiscais. É uma forma de fazer a sociedade exigir que o Estado seja enxuto e eficiente em sua operação. Mas as transferências e os investimentos devem estar fora do orçamento fiscal”, diz. “Devem estar condicionados ao aumento do bem estar, da produtividade e do retorno do investimento, não à disponibilidade de receitas tributárias. Como todo gasto público, precisam ser avaliados e justificados, mas não segundo a lógica do equilíbrio das contas públicas”.
Para o economista, “a verdadeira responsabilidade fiscal não é procurar equilibrar as contas públicas a qualquer custo, mas sim definir projetos de longo prazo, para realizar investimentos de alto retorno. Investimentos que precisam ser implementados de acordo com os limites da capacidade de oferta interna da economia, sem provocar desequilíbrio no balanço de pagamentos, desvalorizações cambiais e pressões inflacionárias”.
“Responsabilidade fiscal é ter metas e investir para adaptar a economia aos desafios deste século. É preciso investir em educação, pesquisa e tecnologia, para que o país não perca o bonde da nova revolução tecnológica. É preciso investir para adaptar a matriz energética, o transporte e as cidades para o desafio premente dos limites ecológicos do planeta. Esta é a verdadeira responsabilidade fiscal”, completa.
Lara Resende condena as “manobras, percebidas como ilegítimas, para viabilizar gastos demagógicos e improdutivos”.
“O Estado, sob boa governança, quando gasta para investir de forma produtiva, ou para amenizar os danos de uma emergência como a da pandemia, pode se dar ao luxo de desrespeitar os limites do orçamento, sempre discricionários. Quando o faz de forma irresponsável e improdutiva, o resultado é a perda de confiança e de legitimidade”.
Para o economista, não necessariamente há maior incerteza sobre as condições financeiras para viabilizar programas de longo prazo no Brasil.
“Países que têm moedas reservas internacionais, como o dólar americano e o euro, têm mais espaço para usar o financiamento externo, mas todo país que tem sua moeda fiduciária pode investir, ainda que aumente transitoriamente sua dívida. Desde que não tenha déficits externos expressivos e que o retorno do investimento seja superior ao custo da dívida, não haverá problema para sua sustentabilidade”.
“É fundamental rever e melhorar a governança pública, mas a visão de que o Estado é um mal, na melhor das hipóteses um peso morto a ser carregado pelo setor privado, agrava o problema. Afasta as pessoas bem intencionadas da vida pública e desvaloriza o funcionário público”, diz Lara Resende.
“Sem gente boa, a governança se torna pior, num perigoso círculo vicioso. Não existe setor privado eficiente e dinâmico sem um Estado competente e boa governança pública”, completa.