Em sua coluna semanal para o diário Haaretz, o jornalista israelense Gideon Levy lança um alerta sobre o significado da invasão à Rafah, “o maior campo de refugiados do mundo”, para onde foi deslocada a quase totalidade da população da Faixa de Gaza.
Levy faz uma conclamação aos estadunidenses para que detenham os crimes de guerra do governo de Benjamin Netanyahu “com ações, e não com palavras”, pois para Levy, todos precisam agir para “deter Israel”.
“Esta é uma emergência mais grave do que qualquer outra durante esta guerra”, apontou Levy, frisando “o nível de desumanização a que Israel chegou em seu planejamento”.
GIDEON LEVY
Os estadunidenses precisam bloquear a invasão de Rafah com ações, e não com palavras. Só eles podem deter Israel.
Tudo o que podemos fazer agora é pedir, suplicar, clamar: não entrem em Rafah! Um ataque israelense em Rafah será um ataque ao maior campo de refugiados do mundo. Irá arrastar o exército israelense a cometer crimes de guerra de uma gravidade que nem sequer ele mesmo cometeu. Neste momento é impossível invadir Rafah sem cometer crimes de guerra. Se as Forças de Defesa de Israel (FDI) invadirem Rafah, a cidade se converterá em um cemitério.
Neste momento, encontram-se em Rafah cerca de 1,4 milhões de pessoas deslocadas, em alguns casos abrigadas sob sacos plásticos transformados em tendas. A administração estadunidense, suposta guardiã da lei e da consciência israelense, condicionou a invasão de Rafah a um plano de evacuação da cidade. Não existe e não tem como existir tal plano, mesmo que Israel consiga inventar algo.
NA DEVASTADA GAZA, NÃO HÁ MAIS PARA ONDE IR
É impossível transportar um milhão de pessoas totalmente desamparadas, algumas das quais já foram desalojadas duas ou três vezes, de um lugar “seguro” para outro, e que sempre se convertem em locais de extermínio. É impossível carregar milhões de pessoas como se fossem bezerros. Mesmo os bezerros não podem ser levados com tanta crueldade.
Também não há lugar para despejar estas milhões de pessoas. Na devastada Faixa de Gaza não resta mais nenhum lugar para onde ir. Se os refugiados de Rafah forem transferidos para Al-Mawasi, como as FDI vão propor em seu plano humanitário, Al-Mawasi vai se tornar o cenário de um desastre humanitário como nunca visto na Faixa.
Os jornalistas Yarden Michaeli e Avi Scharf [do jornal israelense Haaretz] informam que se supõe que toda a população da Faixa de Gaza, 2,3 milhões de pessoas, deve ser colocada numa área de 16 quilômetros quadrados, aproximadamente do tamanho do Aeroporto Internacional Ben-Gurion. Imagine só, a população inteira de Gaza no espaço do aeroporto.
Amira Hass calculou que se apenas um milhão de pessoas forem para Al-Mawasi, a densidade populacional será de 62.500 pessoas por quilômetro quadrado. Não há nada em Al-Mawasi: nem infraestrutura, nem água, nem eletricidade, nem casas. Só areia e mais areia para absorver o sangue, o esgoto e as epidemias. Pensar nisso não é apenas horripilante, mas também mostra o nível de desumanização a que Israel chegou em seu planejamento.
Sangue será derramado em Al-Mawasi, como se derramou recentemente em Rafah, o penúltimo porto seguro oferecido por Israel. O serviço de segurança Shin Bet irá encontrar algum oficial ligado ao Hamas que deverá ser eliminado, lançando uma bomba de uma tonelada sobre o novo acampamento de tendas. Vinte transeuntes, a maioria crianças, serão mortos. Os correspondentes militares nos contarão, com os olhos brilhando, a respeito do maravilhoso trabalho que as FDI estão fazendo para liquidar o alto comando do Hamas. A vitória total está próxima, e os israelenses estarão satisfeitos.
No entanto, mesmo através desta alimentação forçada, a opinião pública israelense deve despertar, e, com ela, a administração Biden. Esta é uma emergência mais grave do que qualquer outra durante esta guerra. Os estadunidenses devem impedir a invasão de Rafah com ações e não com palavras. Só eles podem deter Israel.
O setor conscientizado da comunidade israelense busca outras fontes de informação que não sejam as emissoras daqui, que são “doces para os soldados” e que se autodenominam canais de notícias. Vejam as fotos de Rafah em qualquer rede estrangeira – não encontrarão nada em Israel – e entenderão por que a região não pode ser evacuada. Imaginem Al-Mawasi com os dois milhões de pessoas deslocadas, e compreenderão como proliferam os crimes de guerra.
No sábado, foi encontrado o corpo de Hind Hamada – chamada Rajab, por alguns meios de comunicação -, de seis anos. A menina ficou conhecida no mundo todo, após os momentos de terror pelo qual ela e sua família passaram, no dia 29 de janeiro, frente a um tanque israelense. Momentos que ficaram gravados numa chamada telefônica com o Crescente Vermelho Palestino, até que cessaram os gritos de terror de sua tia. Morreram os oito membros da família.
Hind foi encontrada morta no carro queimado de sua tia em um posto de gasolina, em Khan Yunis. Estava ferida e coberta pelos sete cadáveres de seus parentes, sangrando até a morte sem que conseguisse sair do veículo. Hind e sua família haviam respondido ao apelo “humanitário” de Israel para evacuar. Quem quiser mais milhares de Hinds que invada Rafah, cuja população será desocupada para Al-Mawasi.
Tradução: Hora do Povo