“O trabalho de coordenação que deveria ser conduzido pelo Ministério da Saúde fracassou totalmente”, aponta o professor da Fiocruz
O médico-sanitarista e PhD em Epidemiologia, Eduardo Costa, professor da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e ex-secretário de Saúde do Rio de Janeiro no governo Leonel Brizola, falou ao HP, nesta segunda-feira (8), sobre o momento da pandemia de Covid-19 no país. Disse que lamenta o Brasil não ter adotado as medidas de vigilância epidemiológicas na fase descendente da primeira curva de infecção.
“Eu lamento muito que naquele momento que nós estávamos em descida dos casos, de agosto para setembro, que era o momento propício, como o HP alertou, (na verdade era o segundo melhor momento para ativar a vigilância epidemiológica), não tenha sido feito, não tenha utilizado o exército de cerca de 300 mil agentes de saúde existentes no país. Essa falha propiciou esse retorno sem nenhum controle epidemiológico, sem atividade alguma de vigilância de campo.” disse ele.
Para o especialista, o certo agora, diante do agravamento da pandemia, é não se desesperar. “É ir tomando a medidas que estão ao alcance dos gestores, como eles estão fazendo, de liberação de leitos hospitalares, de conseguir na verdade ajustamentos para dar conta do que está acontecendo agora”, apontou.
Eduardo Costa considera que a prioridade no momento é vacinar os idosos, porque isso, segundo ele, vai reduzir a mortalidade geral da população. Ele acha que o Brasil está na média em termos de ritmo de vacinação, mas gostaria que o processo fosse acelerado. Para Costa o Ministério da Saúde fracassou em sua missão de coordenar as ações para o combate à pandemia. Leia a entrevista na íntegra.
HORA DO POVO: Que fazer diante do iminente colapso do sistema de saúde? Como enfrentar esse quadro de agravamento da pandemia que está acontecendo o Brasil?
EDUARDO COSTA: Eu acho que a primeira coisa que a gente aprende em saúde pública é que não adianta desesperar. O mais certo é ir tomando as medidas que estão ao alcance dos gestores, como eles estão fazendo, de liberação de leitos hospitalares, de conseguir na verdade ajustamentos para dar conta do que está acontecendo agora.
HP: Neste ritmo de vacinação, cerca de 4% da população imunizada, você acha que conseguiremos estancar a circulação do vírus?
EC: Eu não vejo como central nesse momento diminuir a transmissão. Na questão do Brasil, o fundamental é proteger os mais velhos, o que não foi atingido ainda. Ao cobrir essa faixa etária poderemos diminuir a letalidade e a mortandade que nós estamos vivendo. Esse é uma aspecto importante que a vacina começa a dar mostras de que pode conseguir. Mas, realmente, todos gostaríamos que fosse muito mais rápido esse processo de vacinação em nosso país.
A vacinação no Brasil está sendo entendida, sua rapidez ou não, muito frente ao que está acontecendo no países mais desenvolvidos. Onde, enfim, estão as empresas principais que fabricam as vacinas. Foram esses governos que as financiaram, até pelo seu poder econômico. Agora que as vacinas chegaram, eles têm preferência na ótica do meu pirão primeiro.
O Brasil estaria na média de cobertura vacinal já feita. Na América Latina os melhores desempenhos, entre aspas, são os do Brasil, México, Argentina e Chile. Todos os outros países têm muito menos condições de acesso à vacina do que o Brasil. O Brasil poderia estar fazendo melhor, isso é verdade. E a gente sabe que teve um problema na produção na única iniciativa que havia a nível federal, que foi através da Fiocruz, com a vacina AstraZeneca.
Ele deu “azar” porque o processo está sendo lento, desde dezembro está prometido que a Fiocruz estaria produzindo e não tem conseguido manter o que programou, pela não chegada de IFA (Ingrediente Farmacêutico Ativo). Sempre, numa primeira produção, alguma coisa pode dar errado. Então, nós temos um atraso em relação ao início da vacinação, coberto parcialmente pela importação da India.
“No Brasil, o fundamental é vacinar os mais velhos. Ao cobrir essa faixa etária poderemos diminuir a letalidade e a mortandade que nós estamos vivendo”
HP: As novas variantes do SARS-CoV-2 podem ser mais resistentes à vacinação?
EC: As novas variantes podem ser um complicador, mas ainda não há uma evidência muito clara disso. O momento pandêmico aqui e o que aconteceu também em Manaus podem ser resultado de uma conjunção de fatores, Essa variante é muito provável que tenha algum papel nisso tudo, mas há outros fatores. Em algumas áreas, eu acredito que houve uma espécie de pulo das classes mais pobres para as classes mais abastadas ou classes médias, no final do ano, especialmente nessa questão natalina. Os encontros familiares podem ter ajudado nessa transmissão para um grupo que estava relativamente não tocado, porque podia ficar em casa, pelos tipos de atividade que tem.
“Festas natalinas e os encontros familiares podem ter ajudado nessa transmissão”
E esse grupo, quando adoece, ele logo demanda os recursos maiores. Os nossos pobres ficavam em casa quando adoeciam, alguns morriam em casa. E quando, nessas classes médias, qualquer coisa acontece, eles têm mais acesso, têm mais facilidade, principalmente a população urbana, e então não surpreende muito que, havendo uma mudança de padrão social dos acometidos, ela tenha esse deslocamento e apresente uma impressão ruim, um impacto midiático maior.
De qualquer modo, o país precisa acelerar a vacinação de idosos para reduzir mortalidade geral. Ainda que possa ser verdadeira a piora, ela pode ter sido ajudada por essa impressão mais marcante, com mais hospitalizações, que é o que repercute. Temos que lembrar que não houve um plano por exemplo, de unidades hospitalares intermediárias. Então, praticamente todo mundo que já está diagnosticado, já, preventivamente, digamos assim, se leva para a UTI.
Colocamos os recursos de uma maneira um tanto desorganizada, eu acho. Nós sabemos que foi tudo descoordenado e quem se acreditava que podia ser o coordenador de tudo não foi. As estruturas dentro do Ministério da Saúde fracassaram. As instituições públicas de mais peso, digamos assim, também não conseguiram ultrapassar o fantasma bolsonariano e não fizeram o trabalho que tinham que fazer.
“As estruturas dentro do Ministério da Saúde fracassaram”
HP: Por que a pandemia agora está atingindo mais os jovens?
EC: Em alguns lugares o efeito já está sendo este. Se você tem uma seleção e está vacinando os grupos mais velhos, eles acabam não adoecendo. Então tem uma questão relativa dentro do hospitais. Até, também, por um outro fenômeno de hospital, de um modo geral, agora nessa segunda onda, a grande onda que o Brasil está tendo, todos os informes davam conta de que começou primeiro tendo problemas de leitos hospitalares nas clínicas privadas. Este fato mostra bem a classe social em que começou essa segunda onda. Mas também é evidente que atingiu os outros setores. Nós tivemos uma nova dinâmica, eu acho.
HP: A variante brasileira é mais letal?
EC: Nós não vemos, afora o que aconteceu no Amazonas, por exemplo, uma letalidade aumentada. Não indica que está piorando a situação no sentido de letalidade. Tem aparecido mais casos, e o número de casos eleva o de óbitos, que subiu muito. É verdade também que se começou a ter mais acesso a testes diagnósticos. Enfim, eu acho que a nossa situação vai começar a ceder com essa vacina, ainda que não seja na velocidade que nós gostaríamos. E também porque há um processo de refluxo, digamos, daquela movimentação que teve no final do ano.
“A nossa situação vai começar a ceder com essa vacina ainda que não seja na velocidade que nós gostaríamos”
Estão sendo feitos alguns estudos importantes para ver se as variantes têm mesmo impacto na transmissão e gravidade e distribuição ETÁRIA e de Gênero, mas, ao que tudo está indicando, elas não têm capacidade de reduzir o efeito das vacinas. Elas estão tendo um papel de amenizar os casos em velhos, portanto, alterando a mortalidade total.
HP: Volta-se a falar novamente em lockdown geral. É uma saída?
EC: É surpreendente que todos os países do mundo ocidental, tenham ou não tenham Bolsonaro, entraram em grandes problemas com essa palavra de ordem que é o isolamento social indiscriminado, sem mostrar exatamente que grupos. Não houve, na verdade, uma coisa mais dirigida numa fase em que era importante, por exemplo, para os trabalhadores, para as pessoas que estavam precisando ficar nas atividades essenciais.
Nós dirigimos muito mal o nosso programa. O Brasil é um dos maiores fracassos que vemos hoje no mundo, olhando na perspectiva do que aconteceu na pandemia. Claro que é um absurdo toda essa situação, mas é engraçado que parece que não se aprendeu que essa pessoa [Bolsonaro] não representa nada, que há outros instrumentos, mas eles são muito difíceis de serem mobilizados e coordenados num pais com tantos conflitos. A mídia é muito abrangente também. Ela tem que dar palavras de ordem simples e acaba sendo muito superficial.
“O Brasil é um dos maiores fracassos que vemos hoje no mundo “
Faltou desde o início um olhar e uma direção para quem está trabalho de vigilância. Houve um empobrecimento dessas atividades. Dentro do setor saúde, houve uma priorização, e eu acho que do ponto de vista humano era certo, mais imediato, das atividades de assistência hospitalar. Mas muito pouco foi feito de trabalho comunitário. Até mesmo as escolas, com forte presença comunitária foram fechadas no Brasil, de um modo geral. Como se todas as atividades fossem perigosas, quando o correto é que funcionassem orientadas pela vigilância epidemiológica e como instrumento comportamental mais direto e mais eficiente das medidas individuais de controle. A falta de atenção a essas questões levou à inatividade das ações de saúde que fossem de nível comunitário.
HP: O que deixamos de fazer nesta pandemia?
EC: Eu lamento muito que naquele momento que nós estávamos em descida dos casos, de agosto para setembro, que era o momento propício, como o HP alertou, (na verdade era o segundo melhor momento para ativar a vigilância epidemiológica), não tenha sido feito, não tenha utilizado o exército de cerca de 300 mil agentes de saúde existentes no país. Essa falha propiciou esse retorno sem nenhum controle epidemiológico, sem atividade alguma de vigilância de campo. Poucos locais o utilizaram realmente e sem ser sistemático, as atividades de controle epidemiológico voltadas para as atividades de rastreamento, não podem provocar o impacto necessário na incidência. Então, nós tivemos um efeito triplo, nossos esforços foram mal orientados, mal organizados, e descoordenados.
O trabalho do Vietnã mostra muito claro quais atividades que podem ser feitas e o que se tem que controlar. Sugiro que o HP publique ou divulgue o link para que seja estudado. Como desde o início trabalhou orientado pelas informações epidemiológicas de modo competente, foi especialmente bem sucedido. Ou seja, aplicou o conhecimento orientado para utilizar plenamente a vigilância epidemiológica desde os primeiros casos importados, ou seja, entrou no primeiro melhor momento com a tática correta.
SÉRGIO CRUZ