Após o julgamento de quarta-feira, os lulistas – e, especialmente, a cúpula do PT – não veem problema em proferir expressões como “atentado à democracia”, e, ao mesmo tempo, ter a causa de seu ídolo patrocinada, no Supremo Tribunal Federal (STF), por Gilmar Mendes e seu histrionismo, que seria algo mussoliniano, se fosse mais inteligente.
Mas isso apenas revela o que já sabemos: o descompromisso dos lulistas com a democracia, isto é, com o povo, com a Nação – e com a verdade. Daí o assalto que promoveram contra a Petrobrás e outras propriedades públicas, propriedades do povo brasileiro.
Daí, também, não se avexarem ao se declarar “esquerda”, depois de aplicarem no país a mais direitista das políticas – para não falar, outra vez, de seu esquema de corrupção, um esgoto neoliberal até os cueiros.
[Uma nota, somente de passagem, sobre os apoiadores de Lula no Supremo: em sua arenga sobre os “22 mil pobres” que teria libertado, disse Mendes que “não sei se eram pretos ou putas, mas quem foi libertá-los fui eu”. Houve época em que o STF era chamado de excelso pretório. Agora, tem um ministro que fala palavrões no plenário, na frente das senhoras que fazem parte dele – e das que assistem à sessão pela TV. Antes que algum petista diga que é moralismo, acrescentamos que as normas de boa educação fazem parte da herança civilizada dos seres humanos. Certamente, existem alguns que ainda não evoluíram para essa condição. Porém, nesse quesito, o que mais nos chamou a atenção foi outra coisa: Mendes colocou os “pretos” na mesma categoria das “putas”. O que não provocou arrefecimento nos aplausos lulistas ao seu voto.]
Ao mesmo tempo que incensam Gilmar Mendes, o alvo principal deles, agora, é o ministro Luís Roberto Barroso.
Já que é assim, reproduzimos abaixo, em vídeo, o voto de Barroso, na quarta-feira.
O leitor que não gostar de assistir vídeos poderá ler, abaixo, um resumo da intervenção de Barroso, baseadas não em seu voto oral, mas nas anotações que ele fez para proferir esse voto.
(Certamente, nada impede que o leitor veja o vídeo e leia o texto. Aliás, aqui, é a nossa maior esperança.)
IMPUNIDADE
O ministro Luís Roberto Barroso tem toda razão ao dizer que “não era sensação de impunidade, era impunidade mesmo”, o clima vivido pelo país após 2009, quando o Supremo Tribunal Federal (STF), pela primeira vez na História do Brasil, proibiu que a execução da pena – inclusive as de prisão – fosse iniciada após a condenação por um tribunal de segunda instância.
Como consequência dessa decisão de 2009 – mudada em 2016 – a prisão de um condenado somente poderia ser executada após o esgotamento de todos os recursos. Como, em casos criminais, sempre é possível cavar algum recurso, pode-se imaginar o resultado.
“Destaco, a esse propósito”, escreve o ministro, “três impactos negativos do entendimento firmado a partir de 2009:
“a) Poderoso incentivo à infindável interposição de recursos protelatórios;
“b) Reforço à seletividade do sistema penal, tornando muito mais fácil prender um menino com 100 gramas de maconha do que um agente público ou privado que desvie 100 milhões;
“c) Descrédito do sistema de justiça penal junto à sociedade, pela demora na punição e pelas frequentes prescrições, gerando enorme sensação de impunidade.”
CASOS EMBLEMÁTICOS
Barroso aduz alguns exemplos do que ocorreu após 2009. Todos esses casos são anteriores à Operação Lava Jato. É fácil imaginar o que aconteceria com os condenados por assaltar a Petrobrás se, como Lula queria, voltasse a jurisprudência de 2009 do STF.
Lula, obviamente, estava tratando da própria impunidade. Por isso, o fato de que Temer, Cunha, Aécio, etc., também ficariam impunes, tem para ele a importância de apontar quem são os seus verdadeiros aliados – ou asseclas e cúmplices, se o leitor preferir.
Os casos expostos pelo ministro Barroso foram os seguintes:
1) O caso do jornalista
“Um jornalista matou a sua namorada (Sandra Gomide), pelas costas e por motivo fútil, em 20.08.2000. Julgado e condenado pelo Tribunal do Júri, continuava em liberdade passados mais de dez anos do fato, vivendo uma vida normal.
“Devastado pela dor, corroído pela impunidade do assassino de sua filha, o pai da vítima narra: ‘Um dia eu liguei para a casa dele e disse: ‘Você vai morrer igual a um frango. Eu vou cortar o seu pescoço’. Eu sonhava em fazer justiça por mim mesmo. Era só pagar R$ 5 mil a um pistoleiro. Quem tirou essa ideia da minha cabeça foram os advogados’.
“Um sistema judicial que não funciona desperta os instintos de se realizar justiça pelas próprias mãos. Regrediríamos ao tempo da justiça privada”.
2) O caso do Senador
“Um ex-Senador da República foi condenado pelo desvio de R$ 169 milhões na construção do Foro Trabalhista de São Paulo. Os fatos ocorreram em 1992. Depois da interposição de 34 recursos, a decisão finalmente transitou em julgado em 2016, quando ele veio a ser preso. Durante todo este período, mesmo já condenado, circulou livremente em carros de luxo, frequentando os melhores restaurantes e distribuindo gorjetas fartas, como um homem vitorioso.
“Um sistema judicial que não funciona faz parecer que o crime compensa”.
3) O caso do jogador de futebol
“Em dezembro de 1995, um conhecido jogador de futebol, saindo da balada, dirigindo seu Jeep Cherokee a 120 km por hora na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio, provocou um acidente e a morte de 3 pessoas. Foi condenado em outubro de 1999 a uma pena de 4 anos e meio de prisão. Seus advogados entraram com nada menos do que 21 recursos, apenas no STJ. E outros tantos no STF. Em 2011, o Ministro Joaquim Barbosa declarou a prescrição da pena. (Eu herdei o processo, não concordei com a decisão e o processo aguarda julgamento do Plenário).
“As famílias das três jovens vítimas do crime podem assisti-lo livre e feliz como comentarista de jogos de futebol na televisão. Um sistema judicial que não funciona faz a vítima e seus entes queridos sofrerem a dor da perda cumulada com a impunidade”.
4) O caso do suplente de Deputado Federal
“Suplente de Deputado Federal foi denunciado pela morte da titular do cargo, para tomar-lhe a vaga. A acusação é de que havia contratado pistoleiros que mataram a Deputada, seu marido e outras duas vítimas, no episódio que ficou conhecido como “Chacina da Gruta”. O fato se passou em 1998. O réu aguardou em liberdade o julgamento pelo Tribunal do Júri que, em razão de recursos protelatórios, só ocorreu em 2012, mais de 13 anos depois.
“Ele foi condenado a 103 anos e 4 meses de reclusão. Somente aí, então, se deu a prisão preventiva do réu. Ele recorreu da decisão e o processo se encontra até hoje pendente de recurso especial interposto perante o STJ.
“Aliás, duas outras conclusões podem ser extraídas deste caso:
“A primeira: a condenação pelo Tribunal do Júri em razão de crime doloso contra a vida deve ser executada imediatamente, como decorrência natural da competência soberana do júri conferida pelo art. 5º, XXXVIII, d [da Constituição].
“Em segundo lugar, confirmada a decisão de pronúncia pelo Tribunal de 2º grau, o júri pode ser realizado.
“Para que não haja dúvida da origem espúria do falso garantismo nessa matéria: a regra sempre fora a prisão do acusado por homicídio após a pronúncia. Foi a Lei nº 5.941, de 22.11.1973, que mudou a disciplina que até então vigorava.
“A motivação jamais foi desconhecida: o regime militar aprovou a lei a toque de caixa para impedir a prisão do Delegado Sérgio Paranhos Fleury, notório torturador e protegido dos donos do poder de então, condenado por integrar um esquadrão da morte”.
5) O caso da Missionária Dorothy Stang
“A missionária norte-americana, naturalizada brasileira, Dorothy Stang, atuava em projetos sociais na região de Anapu, no sudoeste do Pará. Foi morta aos 73 anos, em fevereiro de 2005, por pistoleiros, a mando de um fazendeiro da região. O júri realizou-se em setembro de 2013, com a condenação do fazendeiro a 30 anos de prisão.
“Com muitas idas e vindas, passaram-se oito anos até o julgamento de primeiro grau. Vale dizer: se não tivesse sido preso preventivamente, o assassino ainda estaria aguardando em liberdade o trânsito em julgado, que não ocorreu até hoje.
“E aqui cabe uma menção especial. O número de presos preventivamente no Brasil – isto é, pessoas que estão presas antes do trânsito em julgado da decisão – é de cerca de 40%, ao que se noticia. Uma das razões para a prisão antes do término do processo – o que, em rigor, constitui uma distorção – é, precisamente, a demora interminável para que cheguem ao fim. Para evitar a impunidade prolongada, quando não a prescrição, os juízes decretam a prisão antecipada”.
6) O caso do Propinoduto
“Um grupo de fiscais da Fazenda, alegadamente liderados pelo Subsecretário adjunto de Administração Tributária, Rodrigo Silveirinha Correa, entre os anos de 1999 e 2002, teria engendrado um esquema de extorsão a empresas fluminenses. A referida organização criminosa arrecadou e mandou para a Suíça US$ 34 milhões, o equivalente a R$ 100 milhões. O caso veio a público em 2003.
“Os fatos criminosos, portanto, ocorreram entre 1999 e 2002;
“A sentença condenatória de 1º grau, com a celeridade que a vida devia ter, foi publicada em 31.10.2003;
“O acórdão do TRF da 2ª Região que confirmou a sentença condenatória foi publicado em 31.10.2007;
“O recurso especial [ao STJ] de um dos condenados só veio a ser julgado definitivamente, após terceiros embargos de declaração, em 18.10.2016. Isto é, 9 anos depois da decisão de 2ª grau. Prescreveram os crimes de evasão de divisas, prestação de declaração falsa à autoridade fazendária e associação criminosa. Só restou o de lavagem de dinheiro.
“O julgamento na 1ª Turma, quando cassamos a liminar dada pelo Ministro Marco Aurélio em habeas corpus e mandamos executar imediatamente a pena, se deu em 20.02.2018. E o processo no STF ainda não está perto do fim, porque falta o julgamento do recurso extraordinário.
“Eis o sistema: fatos ocorridos entre 1999 e 2002, em 2018 ainda não foram julgados. Não há como punir a criminalidade do ‘colarinho branco’ com este modelo”.
7) O primeiro beneficiário da mudança de jurisprudência em 2009
“O jornal O Globo de ontem, 3.04.2018, em matéria da jornalista Cleide Carvalho, expôs a história do fazendeiro que foi o pivô da virada da jurisprudência em 2009. Em 1991, o fazendeiro disparou cinco tiros de pistola contra um jovem de 25 anos, por ciúmes, por motivo fútil. Foi julgado uma primeira vez pelo tribunal de júri, o julgamento foi anulado e em março de 2001, em novo júri, foi condenado à pena de sete anos e seis meses.
“Deixando de lado a pena risível para um homicídio, o fato é que em 2001, dez anos depois dos tiros, o Tribunal de Justiça determinou o cumprimento da pena.
“A partir daí, como é rotina para quem pode pagar um advogado para impedir a justiça, ele recorreu para o Superior Tribunal de Justiça. Depois de passar por três Ministros, o recurso especial foi rejeitado em 2009, pela Ministra Maria Thereza Moura, uma juíza notável, que nos faria boa companhia aqui.
“Como de praxe, vieram os sucessivos embargos de declaração, depois os embargos de divergência. Enfim, em outubro de 2012 deu-se a extinção da punibilidade pela prescrição”.
O CASO LULA
Tal como o relator, ministro Luís Edson Fachin, Barroso ressaltou que o pedido de habeas corpus de Lula, contra a recusa de outro habeas corpus, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), era incabível, pois não existira nenhuma ilegalidade ou abuso de poder no procedimento: o STJ apenas seguira, na recusa, por unanimidade, do pedido de Lula, uma decisão do próprio STF.
“… o Supremo Tribunal Federal”, escreveu Barroso, “não funciona aqui como uma quarta instância de revisão da decisão proferida pelo Tribunal Regional da 4ª Região [a condenação de Lula, por corrupção passiva e lavagem, a 12 anos e um mês de cadeia, mais as multas].
“Não é o mérito daquela decisão, que confirmou a decisão de 1º grau do juiz Sérgio Moro e agravou a pena fixada, que está em discussão.
“Trata-se, aqui, da ação constitucional de habeas corpus. Foi impetrado contra a decisão da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça que denegou habeas corpus lá impetrado contra a execução imediata da decisão penal condenatória proferida pelo TRF-4.
“Como em qualquer habeas corpus, a discussão está limitada a saber se na decisão do STJ há ilegalidade ou abuso de poder.
“É possível dar uma resposta singela: se o STJ aplicou a jurisprudência do STF, firmada inclusive em repercussão geral, não é possível falar em ilegalidade ou abuso de poder.”
CONSEQUÊNCIAS
“Porém, há uma questão jurídica subjacente”, diz Barroso, “da qual não é possível escapar: se é legítima ou não a prisão de alguém que tenha sido condenado em 2º grau de jurisdição a uma pena privativa de liberdade. Esta foi a questão trazida pelos advogados na impetração.”
O ministro examinou, então, com detalhe, a legislação e a jurisprudência sobre o tema, tanto do ponto de vista atual, como histórico. Em especial, destacou que, desde 1941, sempre foi ponto pacífico que o cumprimento da pena se dava após a condenação em segunda instância, pois esta é a última a julgar se o réu é inocente ou culpado. Mesmo depois da Constituição de 1988, sempre foi assim considerado, com exceção do período entre 2009 e 2016, com os resultados já mencionados acima.
“… a ninguém pode ser indiferente o fato de se tratar de um ex-Presidente da República. (…) O que vai se decidir é se se aplica a ele a jurisprudência que o Tribunal firmou por três vezes em período recente.
“Tal fato serve apenas como mais um teste importante para a democracia brasileira e para o amadurecimento institucional do país: a capacidade de assegurar, republicanamente, que todos devem ser tratados com respeito, consideração e igualdade.
“Eu respeito todos os pontos de vista. Mas não é este o país que eu gostaria de deixar para os meus filhos: um paraíso para homicidas, estupradores e corruptos. Eu me recuso a participar sem reagir de um sistema de justiça que não funciona, salvo para prender menino pobre.
“[Se aprovado o habeas para Lula e sua extensão aos demais criminosos] voltaremos ao modelo antigo, cheio de incentivos à corrupção. O fenômeno vem em processo acumulativo desde muito longe e se disseminou, nos últimos tempos, em níveis espantosos e endêmicos. Não foram falhas pontuais, individuais. Foi um fenômeno generalizado, sistêmico e plural, que envolveu empresas estatais, empresas privadas, agentes públicos, agentes privados, partidos políticos, membros do Executivo e do Legislativo. Havia esquemas profissionais de arrecadação e distribuição de dinheiros desviados mediante superfaturamento e outros esquemas. Tornou-se o modo natural de se fazerem negócios e de se fazer política no país. Ela é fruto de um pacto oligárquico celebrado entre parte da classe política, do empresariado e da burocracia estatal para saque do Estado brasileiro.
“A Nova Ordem que se está pretendendo criar atingiu pessoas que sempre se imaginaram imunes e impunes. Para combatê-la, uma enorme Operação Abafa foi deflagrada em várias frentes. Entre os representantes da Velha Ordem, há duas categorias bem visíveis: (i) a dos que não querem ser punidos pelos malfeitos cometidos ao longo de muitos anos; e (ii) um lote pior, que é o dos que não querem ficar honestos nem daqui para frente.
“A volta ao modelo anterior irá retirar a eficácia do modelo de combate à corrupção que tem sido adotado. O risco da efetiva punição deu incentivos à colaboração premiada, essencial para o desvendamento dos crimes de corrupção associados à lavagem. Sem alguém que conheça o esquema por dentro, não há como desbaratá-lo. Na 13ª Vara Federal de Curitiba já houve mais de 114 decisões condenatórias. Na Operação Lava Jato, mais de 70 decisões já foram proferidas em 2º grau.”
O BEM E O MAL
Por fim, Barroso analisou a questão do ponto de vista do conjunto do sistema Judiciário – e, de resto, do sistema de poder do país:
“Um sistema em que os processos se eternizam, gerando longa demora até a punição adequada, com prescrição e impunidade, constitui evidente proteção deficiente dos valores constitucionais abrigados na efetividade mínima exigível do sistema penal.
“Um sistema penal desmoralizado não serve a ninguém: nem à sociedade, nem ao Judiciário nem aos advogados.
“Processos devem durar 6 meses, um ano. Se for muito complexo, uma ano e meio. Nós nos acostumamos com um patamar muito ruim e desenvolvemos uma cultura da procrastinação que oscila entre o absurdo e o ridículo. As palavras no Brasil vão perdendo o sentido. Entre nós, a ideia de devido processo legal passou a ser a do processo que não termina nunca. E a de garantismo significa que ninguém deve ser punido, jamais, não importa o que tenha feito.
“Depois da condenação em 2º grau, quando já não há mais dúvida acerca da autoria e da materialidade do crime, a execução da pena é uma exigência de ordem pública, para preservação da credibilidade da justiça (grifo de Barroso).
“Um dos fundamentos para a prisão preventiva, nos termos do art. 312 do Código de Processo Penal, é a ‘garantia da ordem pública’. A credibilidade e respeitabilidade da Justiça, por evidente, integram o conceito de ordem pública, que ficaria violada pela falta de efetividade do processo penal.
“A demora na aplicação das sanções proporcionais em razão da prática de crimes abala o sentimento de justiça da sociedade e compromete a percepção que a cidadania tem de suas instituições judiciais. Punir alguém muitos anos depois do fato, não realiza os principais papeis do direito penal, de prevenção geral, prevenção específica, retribuição e ressocialização.
“Mais que isso: a prisão após a condenação em 2º grau é decorrência natural e imperativa da condenação. Permitir discricionariedade judicial aqui é reeditar a seletividade do sistema. Poderosos e bem assistidos conseguirão aguardar soltos até a prescrição. Os comuns irão presos.
“O poder, em geral, e o Poder Judiciário, em particular, existe para fazer o bem e para promover justiça, e não para proteger os amigos e perseguir os inimigos”.
C.L.
Assista ao vídeo com o voto do ministro Luís Roberto Barroso na sessão de 4 de abril (Fonte JP).