As sentenças e pareceres jurídicos, com a Operação Lava Jato, entraram no cotidiano da população – ainda que, muitas vezes, de maneira intuitiva. Por isso, o leitor não estranhará que entremos, também, em algumas polêmicas de caráter jurídico – ou que as noticiemos.
Em seu parecer, dirigido ao STF, sobre o pedido de habeas corpus de Lula, para que não seja preso após o fim de seus recursos ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), que o condenou a 12 anos e um mês de cadeia, a Procuradora Geral da República, Raquel Dodge, demonstra que, rigorosamente, trata-se de uma tentativa de conseguir a impunidade.
A não execução da pena, após a condenação em segunda instância, afirma a procuradora, é inconstitucional (todos os grifos são nossos):
“… a Constituição não exige o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Apenas exige o duplo grau de jurisdição [a dupla condenação, em tribunal de primeira e segunda instância] como garantia da presunção de inocência.
“Exigir o trânsito em julgado após o terceiro ou quarto grau de jurisdição para, só então, autorizar a prisão do réu condenado, é medida inconstitucional, injusta e errada”, afirma a Procuradora Geral. “Também favorece a impunidade e põe em descrédito a Justiça brasileira, por perda de confiança da população em um sistema em que, por uma combinação de normas e fatores jurídicos, a lei deixa de valer para todos”.
É bastante interessante a maneira como ela aborda os dois dispositivos alegados por Lula para fugir ao cumprimento da pena:
1º) o artigo 283 do Código de Processo Penal (“Ninguém poderá ser preso senão … em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”);
2º) o artigo 5º, inciso LVII, da Constituição do Brasil (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”);
Raquel Dodge mostra que, ao contrário do que diz o advogado do ex-presidente, eles não têm o mesmo conteúdo. Ao contrário, o artigo 283 do Código de Processo Penal é conflitante com a Constituição – e, nesse conflito, a Lei Maior deve prevalecer sobre o Código de Processo Penal, que, evidentemente, é uma lei menor diante da Constituição: “ao regulamentar o princípio da presunção de inocência, a lei não pode, a pretexto de protegê-la de modo absoluto, desproteger (ou proteger de modo insuficiente) direitos de outros”.
A procuradora lembra que o próprio STF já decidiu tal questão desde outubro de 2016: “não serve o artigo 283 do Código de Processo Penal para impedir a prisão após a condenação em segundo grau – quando já há certeza acerca da materialidade e autoria – por fundamento diretamente constitucional; afinal, interpreta-se a legislação ordinária à luz da Constituição, e não o contrário” (grifo nosso).
Diz a procuradora:
“O artigo 283 do Código de Processo Penal não é mera repetição do artigo 5º-LVII da Constituição. A lei não regulamenta a norma da Constituição. Por isso, o artigo 283 do Código de Processo Penal não é inteiramente compatível com o artigo 5º-LVII da Constituição.
“As regras são diferentes. A Constituição estabelece que ‘ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória’, enquanto o Código de Processo Penal estabelece que ‘ninguém poderá ser preso senão (…) em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva’.
“Percebe-se, sem muito esforço, que a Constituição garante a presunção de inocência ao estabelecer que ‘ninguém será tratado como culpado’ antes do trânsito em julgado da respectiva condenação. Já a lei veda o início da execução da pena antes do trânsito em julgado da condenação”.
LABIRINTO
A importância prática disso é que, se seguido, contra a Constituição, o artigo 283 do Código de Processo Penal (inserido na lei apenas em 2011), o cidadão terá que ser pobre para cumprir qualquer pena a que for condenado.
Nas palavras do ministro do STF Luís Roberto Barroso, citado por Raquel Dodge:
“…a ampla (e quase irrestrita) possibilidade de recorrer em liberdade aproveita sobretudo aos réus abastados, com condições de contratar os melhores advogados para defendê-los em sucessivos recursos. Em regra, os réus mais pobres não têm dinheiro (nem a Defensoria Pública tem estrutura) para bancar a procrastinação. Não por acaso, na prática, torna-se mais fácil prender um jovem de periferia que porta 100g de maconha do que um agente político ou empresário que comete uma fraude milionária” (Barroso, HC nº 126.292).
A procuradora elenca os artifícios possíveis a que um réu com dinheiro à sua disposição – por exemplo, um ladrão do dinheiro público – pode lançar mão:
“O complexo sistema recursal permite que, na prática, o condenado só deixe de apresentar recursos quando se ‘conformar’ com a condenação, o que pode jamais ou tardar muito a acontecer. Por isso, há sempre a possibilidade de novos recursos contra as sucessivas decisões no curso da ação penal, impedindo o trânsito em julgado da decisão condenatória. Veja-se um breve resumo disso:
“I) todos os acórdãos condenatórios dos Tribunais brasileiros podem ser objeto de recursos para o STJ e para o STF.
“II) Caso tais recursos não sejam admitidos no tribunal intermediário, é cabível interpor agravo nos próprios autos, que o presidente do Tribunal intermediário não pode obstar, deve processar e remeter (nos próprios autos) ao STJ ou ao STF, para que a decisão sobre o não recebimento dos recursos especial ou extraordinários seja revista pelo Tribunal (STJ ou STF).
“III) Quando o réu entender que a decisão permite interpor simultaneamente recursos (especial e extraordinário), deverá apresentá-los conjuntamente. Se ambos forem rejeitados, deverá, igualmente, insurgindo-se, apresentar dois recursos de agravos. Entretanto, os autos inicialmente serão remetidos ao Superior Tribunal de Justiça, salvo quando a matéria constitucional for prejudicial ao tema tratado no recurso especial, caso em que será encaminhado o agravo (nos próprios autos) ao Supremo Tribunal Federal para verificar a prejudicialidade e se ocorrer, decidir o recurso, para só então, encaminhar os autos de volta ao STJ.
“IV) Caso seja admitido o recurso especial, apenas após o seu julgamento e de todos os seus sucessivos recursos dentro do STJ é que os autos seguirão finalmente ao STF.
“V) Rejeitado pelo Relator o agravo contra a decisão que inadmitiu os recursos, caberá agravo regimental para a Turma [do STJ].
“VI) Resolvida a questão pela Turma, poderão ser apresentados embargos de divergência,
“VII) Em qualquer destas hipóteses, sempre poderá ser apresentado embargos de declaração quando o réu entender que a decisão não é suficientemente clara, apresenta ambiguidade ou contradição.
“VIII) Nesse ínterim, é sempre possível a apresentação de recurso de embargos de declaração contra decisão que analisou anteriormente o mesmo recurso (os chamados embargos dos embargos de declaração) desde que o fundamento seja distinto.
“IX) terminada a fase no STJ referente ao Recurso Especial e seus vários consectários, não havendo possibilidade de outros recursos nesse tribunal, determina-se a baixa dos autos para a execução da condenação.
“X) no entanto, se o réu tiver interposto conjuntamente o Recurso Extraordinário e o Especial, os autos deverão agora seguir ao Supremo Tribunal Federal para análise do agravo, e todo o caminho delineado acima pode ser repetido no Supremo: a possibilidade de agravo regimental com a denegação do agravo, os embargos de divergência e sempre (decisões colegiadas ou monocráticas) os embargos de declaração e outros embargos de declaração.”
Assim, desde que se tenha dinheiro – no caso de Lula e de outros condenados por corrupção, o dinheiro é o resultado do próprio crime – é possível adiar o “trânsito em julgado” (ou seja, o fim do processo em terceira ou quarta instância) infinitamente.
Como diz Raquel Dodge, citando o jurista Fernando Brandini Barbagalo, “constata-se que o sistema recursal brasileiro só encontra limite na capacidade (ou imaginação) do defensor do recorrente”. Ou, acrescentamos nós, no tamanho da fortuna – ou do roubo – do réu.
Existe quem chame isso de “sistema de garantias”. Somente se for o sistema de garantias da impunidade dos ricos.
É nesse time que Lula quer entrar. Sobre o seu caso, a procuradora observa que “a Constituição não exige terceiro ou quarto grau de jurisdição: exige apenas o duplo grau. Como os recursos extraordinário e especial [ao STJ ou STF] não têm efeito suspensivo sobre a decisão condenatória do Tribunal, não impedem a produção dos efeitos dos acórdãos condenatórios por eles impugnados.
“Por isso, o início da execução da condenação, com a prisão do réu, pode ocorrer logo após o encerramento da jurisdição do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, com o julgamento dos recursos ali interpostos pelo réu. Após o esgotamento da jurisdição, haverá o início da execução da pena aplicada, como efeito imediato decorrente do acórdão condenatório”.
CARLOS LOPES