Desde setembro, Putin vem advertindo que ataques ao território russo com mísseis guiados operados pela Otan mudam a natureza do conflito e terão resposta à altura
O Kremlin reagiu à provocação estampada no The New York Times de domingo (17), de que o presidente fim-de-linha Joe Biden teria finalmente autorizado ao regime de Kiev o uso dos mísseis guiados ATAMCS de longo alcance que forneceu para ataque a território internacionalmente reconhecido da Rússia, Kursk, advertindo que, se tais relatos se revelarem verdadeiros, seria uma escalada dramática e uma “situação qualitativamente nova” no envolvimento dos EUA e da Otan no conflito.
A posição de Moscou sobre esta questão – observou o porta-voz Dmitry Peskov nesta segunda-feira (18) – foi claramente formulada pelo presidente Vladimir Putin em setembro, quando começaram os vazamentos sobre tal ‘possibilidade’. O apoplético ‘plano da vitória’ apresentado na época à Casa Branca por Zelensky requeria uso de armas ocidentais sem restrições.
Putin afirmou que se fosse tomada uma decisão para permitir que a Ucrânia atacasse profundamente o território russo internacionalmente reconhecido com armas ocidentais de longo alcance, isso significaria que os países da Otan “estão em guerra com a Rússia”. “Esse é um envolvimento direto”, declarou.
Como costuma fazer sempre que atua como porta-voz do Estado Profundo ou da CIA às vésperas de uma escalada, o NYT atribuiu a “informação” a “pessoas familiarizadas com o assunto”. No mesmo dia, o jornal conservador francês Le Figaro coincidentemente publicou relato de que a França e o Reino Unido também teriam autorizado o regime de Kiev a utilizar os seus mísseis Storm Shadow/SCALP de longo alcance para lançar ataques em profundidade no território russo – mas depois retirou a postagem.
Nas redes sociais, Zelensky postou no domingo que “hoje, muitos na mídia estão falando sobre o fato de termos recebido permissão para tomar as medidas apropriadas. Mas os golpes não são infligidos com palavras. Essas coisas não são anunciadas. Os foguetes falarão por si.”
OTAN DIRETO NA GUERRA
O presidente russo enfatizou em setembro que tais ataques com mísseis guiados seriam impossíveis sem o envolvimento direto dos militares, dos serviços de inteligência ocidentais e dos satélites dos países da Otan.
É que soldados da Otan dos países fornecedores desses mísseis devem inserir as coordenadas dos alvos, os dados de trajetória e a telemetria nos sistemas de controle dos mísseis ocidentais de longo alcance na Ucrânia. Esses dados só podem ser inseridos usando códigos ultrassecretos da Otan. Apenas soldados selecionados da Otan estão autorizados a fazê-lo, sob as mais rigorosas precauções de segurança.
Como rememorou Peskov: “A seleção de alvos e outras manutenções não são realizadas pelos militares ucranianos, mas por especialistas militares dos países ocidentais. Isto muda fundamentalmente a natureza da sua participação no conflito ucraniano. É aqui que reside o perigo e a provocação desta situação”.
Inclusive Moscou atualizou sua doutrina nuclear para incluir casos de ataque de um país não nuclear à Rússia aliado a uma potência nuclear.
A decisão de Biden, que está a dois meses de entregar as chaves da Casa Branca de volta para Trump, “não alterará o quadro da guerra”, admite o NYT, que descreveu como pretexto o bicho-papão norte-coreano que vem sendo inflado pela mídia imperial.
Já o porta-voz do Departamento de Estado, Matthew Miller, disse que não poderia “confirmar” ou sequer “comentar” a medida atribuída ao presidente pato manco, e que voltou a viralizar na internet, após mais um episódio de desorientação ao vivo, desta vez em uma cerimônia em Manaus, paralela ao G20.
Por sua vez, a porta-voz da diplomacia russa, Maria Zakharova, disse que “a resposta da Rússia será apropriada e tangível”. “Uma coisa é óbvia: em meio aos fracassos do regime de Kiev, seus manipuladores ocidentais estão apostando na escalada máxima da guerra híbrida desencadeada contra a Rússia, tentando atingir o objetivo ilusório de ‘derrotar estrategicamente Moscou’.”
No entanto – acrescentou -, “não importa o quanto Zelensky e seus capangas esperem e rezem por isso, não há ‘arma milagrosa’ capaz de afetar o curso da operação militar especial”.
O TELEFONEMA DE SCHOLZ
Essa questão também surge como uma explicação para o telefonema do primeiro-ministro alemão Olaf Scholz para o presidente Putin após dois anos. Scholz tem se mantido firme até aqui na recusa de fornecer os mísseis guiados Taurus de fabricação alemã a Kiev, um dos motivos que levaram à dissolução da coalizão Semáforo, com o chefe dos liberal-democratas advogando a provocação contra a Rússia.
“Há divergências bastante profundas, mas o próprio fato de haver um diálogo é muito positivo”, disse Peskov sobre o telefonema. Putin apresentou detalhadamente a Scholz a posição sobre o conflito na Ucrânia e as possíveis perspectivas, enquanto o premiê alemão reiterou a posição europeia. Eles também abordaram as iniciativas de paz.
Com eleições antecipadas previstas para fevereiro e com o líder dos democrata-cristãos, o partido que está na frente nas pesquisas, abraçando a entrega do Taurus, a eleição arrisca se tornar um referendo sobre entrar na guerra, como advertem as vozes mais lúcidas em Berlim.
A líder do novo partido BSW, Sahra Wagenknecht, alertou que a aprovação de Biden ao uso de mísseis de longo alcance pela Ucrânia é “mais um passo em direção à escalada do conflito e a uma grande guerra”. Ela considerou “incomum” uma decisão tão importante ser tomada por um presidente em fim de mandato e cujo partido acabou de perder a eleição.
Ela também se manifestou contra uma possível aliança “verde-preto” (ambientalistas mais democrata-cristãos). “Entregar mísseis Taurus que têm de ser programados pela Bundeswehr [Exército Alemão] é praticamente uma declaração de guerra à potência nuclear Rússia. O debate mostra que um governo Merz-Habeck seria uma coligação de guerra para a Alemanha.”
Também o governo italiano se apressou a esclarecer que as armas fornecidas pela Itália continuam não podendo ser usadas contra ataques a território russo, embora Roma siga endossando Kiev.
O chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, confirmou que a decisão de permitir a Zelensky ataques à Rússia com armas da Otan foi tomada pelo governo Biden e informada aos satélites. A Casa Branca “autorizou o uso de suas armas, com raio de até 300 km, (para atingir) os territórios russos”, disse ele a jornalistas, segundo vários meios de comunicação.
“Por que eles tomaram essa decisão agora e não antes das eleições (presidenciais)? Eu não sei”, disse Borrell.
Talvez por medo da ira do povo norte-americano contra mais uma guerra sem fim, quando a repulsa ao genocídio em Gaza já estava custando votos o suficiente aos democratas.
Nos EUA, houve algumas manifestações de repúdio à decisão de Biden. O ex-embaixador dos EUA na Alemanha, Richard Grenell, postou no X que “ninguém esperava que Biden contribuísse para a escalada da guerra na Ucrânia durante o período de transição. Isto é o mesmo que começar uma guerra. Agora tudo mudou, todos os cálculos anteriores são inválidos. E tudo isto apenas por uma questão de política.”
‘FALCÕES’ E ‘POMBAS’ DO ESTADO PROFUNDO
A questão também foi debatida pela agência russa RIA Novosti, que salientou que as possibilidades de [o Ocidente] continuar a guerra no formato atual estão “praticamente esgotadas e, dados os sucessos militares de Moscou, será também um desperdício de recursos cada vez mais escassos”.
Mas – acrescentou – Trump “promete ruidosamente acabar com a guerra dentro de 24 horas, o que só será possível se o Ocidente admitir a derrota e aceitar as condições de Moscou”. “Obviamente, isto é inaceitável para o presidente eleito dos EUA, por isso ele precisa de alavancagem com a qual possa forçar a Rússia a fazer concessões que lhe são inaceitáveis”.
Para o articulista, nesse caso, os interesses de todos os grupos em Washington coincidem. “Aplica-se tanto aos ‘falcões’ que anseiam pela continuação da guerra contra a Rússia como às ‘pombas’ que querem acabar com o projeto ucraniano fracassado e avançar para direções mais importantes, como a China”.
As possibilidades de escalada e de aumento dos riscos esbarram numa limitação crítica: o anúncio de Moscou de que os ataques com mísseis de longo alcance em território russo serão vistos “como uma entrada direta do Ocidente na guerra com uma reação correspondente por parte da Rússia”.
O artigo adverte contra a “tecnologia de cruzar linhas vermelhas” de Washington: vazamento primeiro na mídia e depois alguma manobra para tentar empurrar a Rússia a não reagir de maneira brusca. Agora, a menção aos “norte-coreanos” e a insinuação de que Trump “poderá anular a decisão de Biden depois de entrar na Casa Branca, bastando ter paciência durante alguns meses”.
E conclui: atualmente, os Estados ocidentais de ambos os lados do Atlântico aguardam nervosamente a forma como Moscou responderá. “Se houver uma reação que assuste os EUA e a Europa, veremos uma refutação imediata dos vazamentos. No entanto, se acreditarem que a Rússia não correrá o risco de levar o mundo à beira da aniquilação devido aos ataques com mísseis da Otan no seu próprio território, tais ataques são de se esperar”.
Como disse o chanceler Sergei Lavrov no início do mês, Moscou está bem ciente das políticas agressivas do bloco militar liderado pelos EUA e de que a Europa “está sendo militarizada a um ritmo cada vez maior”. “Os nossos adversários não devem se enganar. No caso de uma ação agressiva da Otan ou dos seus estados membros contra o nosso país, serão tomadas medidas de retaliação apropriadas, em plena conformidade com o direito da Rússia à autodefesa, consagrado na Carta da ONU”. E aconselhou os aprendizes de feiticeiro a não contarem em ficar impunes sob o resguardo do Oceano Atlântico ou do Canal do Mancha.