A ascensão de Boris Johnson se dá no quadro do quase colapso do governo, que obrigou a premiê Theresa May a renunciar após o Parlamento ter derrotado por três vezes sua proposta de Brexit negociada com a União Europeia.
Com os votos de 0,25% da população britânica, o conservador Boris Johnson – também muito conhecido como BoJo – foi eleito novo primeiro-ministro, em substituição a Theresa May, com a promessa de completar o Brexit, a saída da União Europeia, até 31 de outubro, impreterivelmente.
Na primária Tory – apelido pelo qual os conservadores são conhecidos -, Johnson venceu com 92.153 votos, se tornando o novo chefe do partido e, portanto, primeiro-ministro, contra 46.656 dados a Jeremy Hunt, atual chanceler britânico.
A ascensão do louro Johnson se dá no quadro do quase colapso do governo May, que teve o acordo Brexit que negociou com a União Europeia rechaçado três vezes no parlamento, o que levou ao adiamento da saída para 31 de outubro, e se completou com o fiasco dos conservadores nas eleições para o Parlamento Europeu em maio, perdendo às enxurradas votos para o novo Partido Brexit de Nigel Farage.
Johnson também chega ao poder no momento em que a Grã Bretanha está em um impasse com Teerã, após confiscar por ordem dos EUA um superpetroleiro iraniano em Gibraltar e ter um petroleiro britânico apreendido duas semanas depois no Golfo Pérsico. Ele se manifestou contra “qualquer ação” que conduza à guerra.
ELEIÇÃO GERAL, PEDE OPOSIÇÃO
A oposição reagiu à escolha, com o líder trabalhista Jeremy Corbyn afirmando que “é hora de uma eleição geral”, depois de quase uma década de austeridade conservadora. “O povo do nosso país deve decidir quem se tornará primeiro-ministro”, conclamou.
“Boris Johnson ganhou o apoio de menos de 100.000 membros do Partido Conservador, prometendo cortes de impostos para os mais ricos, apresentando-se como o melhor amigo dos banqueiros e pressionando por um Brexit inconsequente”, acrescentou.
Corbyn denunciou ainda que o não-acordo Brexit de Johnson significaria “cortes de empregos, preços mais altos nas lojas e o risco de nosso NHS [serviço público de Saúde] ser vendido para corporações americanas em um acordo amoroso com Donald Trump”.
O líder trabalhista também tem denunciado que um governo sem o respaldo das urnas – o que é notório no caso dos conservadores no atual momento – não tem como negociar um acordo decente com a União Europeia.
“O CÉREBRO PERDIDO”
Em seu discurso da vitória, Johnson prometeu “entregar o Brexit , unir o país e derrotar Jeremy Corbyn”, enquanto o The Telegraph anunciava que ele iria se reunir com Trump três vezes antes da data fatídica de outubro. Em pauta, a “relação especial” entre os EUA e a Grã-Bretanha (ou, segundo as más línguas, entre Wall Street e a City londrina).
Nos parabéns pela eleição, o biliardário da Casa Branca o chamou de “Trump britânico”. O ex-deputado George Galloway, atual apresentador de tevê, ironizou que “Boris Johnson se vê como o cérebro perdido de Donald Trump e vê a Grã-Bretanha como a Grécia na Roma americana”. “Uma terra de aprendizagem de sofisticação e cultura firmemente ligada ao reto do poder americano bruto”.
MONTANHA RUSSA
Desde o plebiscito que aprovou o Brexit contra todas as previsões – uma vingança da Grã Bretanha profunda contra a herança de desindustrialização e devastação neoliberais de Margareth Thatcher e Tony Blair – o país vive uma crise atrás da outra – uma “montanha russa”, na descrição da BBC -, e é improvável que a solução se chame BoJo.
A negociação Brexit de May foi um fracasso, porque sua grande preocupação, o tempo todo, foi garantir os privilégios da City londrina, do setor financeiro britânico, em detrimento da produção e da imensa maioria.
Ou ainda, como o jornal progressista inglês The Morning Star registrou, “as restrições estatais às indústrias” – a que o país teria que se sujeitar mesmo estando de fora da UE – têm como alvo não um governo conservador ou blairista, mas “um governo Corbyn com planos para uma maior intervenção estatal na economia, renacionalização de empresas, investimento público e planejamento governamental”.
Como salientou, não há como enfrentar de forma eficaz os problemas de baixo investimento, salários estagnados e infraestrutura envelhecida através do neoliberalismo.
Outro problema é o mecanismo do ‘backstop’ na fronteira interirlandesa que, do jeito que foi fixado, dá à UE o poder de veto sobre a capacidade britânica de sair. “O pior dos mundos”, para Corbyn.
HALLOWEEN VIRA DIA D
A nova data fatídica é o Halloween, 31 de outubro, o “Do or Die”, o “Vai ou Racha” de Johnson. Um dos principais articuladores da candidatura de Johnson disse que, se ele falhar como primeiro-ministro, o Partido do Brexit vai eliminar os conservadores.
Neste “momento crucial” da história britânica, Johnson asseverou que sua tarefa seria “conciliar o profundo desejo de amizade e livre comércio entre a Grã-Bretanha e nossos parceiros da Europa” e o desejo simultâneo, igualmente sincero, de “autogoverno democrático neste país”.
Do outro lado do Canal da Mancha, já estão chegando as mensagens de parabéns ao novo primeiro-ministro, a começar pela nova presidente da Comissão Europeia, a alemã Ursula von der Leyen. Mas quanto a recuos no atual acordo, nada à vista.
APERTO
O Banco da Inglaterra (o BC inglês) previu que o Brexit sem acordo – o chamado ‘no deal’ – faria a economia britânica encolher 8% – pior que o colapso de 2008 – se não houver um período de transição. A libra esterlina perderia um quarto de seu valor. O impacto negativo até 2035 alcançaria 90 bilhões de libras.
No entanto, como apontam analistas ingleses, sem por a carta do “não-acordo” sobre a mesa, dificilmente os parceiros europeus se sentiriam suficientemente sensibilizados para alterações razoáveis no atual acordo.
Se um não-acordo é desastroso para a Grã Bretanha, também o é para a União Europeia, considerando que esta tem enorme superávit comercial com Londres: 64 bilhões de libras esterlinas no ano passado. Em mercadorias, o excedente foi de 93 bilhões de libras esterlinas.
Em outras palavras, a UE vende 93 bilhões de libras esterlinas a mais em mercadorias para a Grã-Bretanha do que a Grã-Bretanha vende para a UE. De todos os países da UE, o país com o qual o Reino Unido tem o maior déficit comercial é a Alemanha: 21 bilhões de libras esterlinas em 2017. A indústria alemã tem motivos de sobra para se preocupar.
Na Grã Bretanha, há 14 milhões na pobreza, sendo 1,5 milhões de indigentes. Com salários estagnados, a maioria das pessoas está mais pobre agora em termos reais do que há 10 anos. Ao que se somam, também segundo a oposição, serviços públicos subfinanciados e queda na produtividade.
BORIS O EXCÊNTRICO
Nas redes sociais, a escolha de Johnson foi recebida com ironias e a republicação de fotos em que ele aparece das mais ridículas formas – como a vez em que ficou pendurado numa tirolesa. As gafes, escândalos e bobagens do agora primeiro-ministro já fazem parte da cena britânica.
Da recente briga com a namorada, com os vizinhos chamando a polícia para serenar os ânimos, que não atrapalhou sua eleição, à comparação de mulheres de burcas – aquela veste usada nos regimes islâmicos mais extremados – com “caixas de correio”.
Também parece muito orgulhoso de sua verve. Como as suas observações sobre a Líbia, país destruído pela Otan, com especial participação inglesa: “Há um grupo de investidores do Reino Unido, na verdade, alguns caras maravilhosos que querem investir em Sirte, na costa. Eles têm um plano brilhante para transformar Sirte na próxima Dubai. A única coisa que eles têm que fazer é limpar os corpos”. Ainda riu.
Ou quando chamou crianças negras de “piccaninies” – um termo racista -, apesar de acrescentar que gostava de seus “sorrisos de melancia”. “Boa sorte na África, Boris!”, assinalou Galloway.
Vez por outra, consegue ser espirituoso. Como quando disse, em 2007, que Hillary Clinton parecia “uma enfermeira sádica de um hospital psiquiátrico”. Hillary só falaria seu célebre “nos vimos, nos viemos, ele morreu” (sobre Kadafi) quatro anos depois.
Mas é insuperável mesmo é em matéria de sem-noção. Na comemoração da sua escolha a primeiro-ministro, fez seus pares deputados rirem, prometendo “colocar banda larga de alta velocidade em todos os orifícios” dos lares britânicos. Ou seu “vote Tory e o tamanho do sutiã da sua namorada vai ficar maior” – como lembrou o Daily Mail.
Para a deputada trabalhista Laura Pidcock, Johnson sintetiza cada coisa que está errada com a sociedade inglesa: “poder inexplicável, riqueza irrestrita e egoísmo. E se pensarmos que as coisas estão ruins agora – e elas estão, sabemos que estão, em comunidades do país todo – então elas estão prestes a ficarem muito piores”.
ANTONIO PIMENTA