“Independentemente das críticas que se possam fazer aos critérios de definição do conceito ou mesmo de sua utilização para o nosso caso, o fato concreto é que o Brasil de hoje está muito distante de ser um ‘País de classe média’”
PAULO KLIASS *
A divulgação de uma pesquisa da Consultoria Tendências a respeito da distribuição da população brasileira em faixas de renda tem merecido um debate a respeito de temas importantes, a exemplo de políticas de distribuição de renda e padrões de consumo em nosso País. A primeira iniciativa coube aos defensores obnubilados do governo Lula, que viram nas manchetes reproduzidas pela grande imprensa uma oportunidade ímpar de tirar uma casquinha nos resultados preliminares apresentados. O mote para uma leitura com tal viés tem sido a apropriação indevida do conceito de “classe média”.
A exemplo do que já havia ocorrido em outros momentos depois da vitória do Partido dos Trabalhadores (PT) em 2002, tem início agora um novo debate a respeito do tema. O foco reside na interpretação das pesquisas elaboradas por órgãos públicos e por institutos privados onde se busca identificar a evolução dos perfis de renda da população brasileira. E, assim, surgem os enquadramentos nas conhecidas faixas ou classes A, B, C, D e E. Parece óbvio que tudo passa a depender dos critérios utilizados para definir os limites de cada um destes patamares.
A primeira abordagem para utilizar o conceito de “classe média” segundo tal metologia é quase tautológica. Como existiria uma “classe alta” e uma “classe baixa”, os setores que se situam nas faixas intermediárias seriam os que compõem a chamada “classe média”. Ou seja, nem os de cima, nem os de baixo – mas os do meio (sic). A falta de rigor para tal classificação é quase evidente e torna bastante complexo o recurso a tal ferramenta para fins de análise social ou mesmo de política pública.
O BRASIL E A CLASSE MÉDIA
Ao longo dos dois primeiros mandatos de Lula, o Brasil experimentou um importante processo de melhoria na distribuição de renda e na redução das desigualdades sociais e econômicas. Para tanto foram importantes um conjunto de medidas de ampliação e aprofundamento das políticas assistenciais (Bolsa Família e Benefício de Prestação Continuada – BPC, por exemplo), bem como a política de valorização real do salário-mínimo. Esse quadro foi bastante potencializado, além disso, pelo crescimento das atividades econômicas de forma generalizada e pela redução do nível de desemprego.
Datam deste período as primeiras incursões na narrativa apelando para o conceito de “classe média”. É interessante observar que, mesmo sendo uma coalização dirigida por uma agremiação que traz por título Partido dos Trabalhadores, o governo introduziu o elemento que privilegia a condição de classe média no debate, não se contentando com os aspectos de evolução bastante positiva das condições de vida, de melhoria nos salários e no acesso a padrões de consumo como nunca havia ocorrido anteriormente. Não, o importante era mencionar que boa parte da população agora fazia parte da “classe média”. Fosse lá o que isso significasse. Infelizmente, o que se percebeu menos de duas décadas mais tarde é que essa narrativa, na verdade, cimentava o caminho para a consolidação de um discurso de conteúdo bastante conservador, a favor do empreendedorismo, mesmo entre os muito pobres e os miseráveis. Todos queriam pertencer à classe média e não mais terem um emprego “tradicional” – com horário a cumprir, patrão e normas a obedecer.
Há vários registros de um intenso debate realizado a esse respeito, com diversos enfoques e focos de análise. O IPEA foi uma das instituições públicas em que tal discussão se realizou de forma organizada e onde um conjunto de publicações deixaram apontados aspectos relevantes de tal debate. A própria realização de eventos, seminário s e debates no interior do órgão foi fundamental para a localização de alguns nós envolvendo a questão da “classe média” ou da “nova classe média”, como muitos autores reivindicaram a classificação da suposta “novidade”, à época.
CLASSE MÉDIA: VÁRIOS CONCEITOS, MUITA POLÊMICA
Agora, no momento atual, a propaganda oficial e ufanista retoma a tecla de que que o Brasil teria voltado a ser um “País de classe média”. As pessoas continuam a reproduzir de forma acrítica a mensagem, provavelmente sem se dar conta da falta de sentido daquilo que divulgam. Em seu afã compreensível de buscar boas notícias relativas ao desempenho de Lula em seu terceiro mandato, uma parte de sua base de apoio se sai com essa. Mas, afinal, o que significa ser um “País de classe média”? Para os mais cautelosos, aqueles que foram verificar a informação antes de sair compartilhando pelo mundo afora, o que se pode concluir é que se trata de uma mudança marginal, pouco significativa, no padrão verificado nos anos anteriores.
Brasil – Distribuição da Renda Domiciliar – 2010/2024
Fonte: Poder 360
A metodologia pressupõe que um coletivo nacional e/ou social se transforma em “País de classe média” quando mais de 50% de sua população puder ser enquadrada nas chamadas “classes” A, B e C de renda. E os dados da pesquisa da Consultoria Tendências apontam que em 2024, ufa!, passamos raspando a trave para os sensacionais 50,1% (sic). Assim, se somarmos os 31% da classe C, com os 14,8% da classe B e ainda com os 4,3% da classe A chegaremos à brilhante conclusão de que não somos mais um País de pobres. Mas será que isso merece mesmo tanta comemoração? Tudo indica que os dados sugerem um pouco mais de cautela. Mas isso pouco importa, pois o que vale espalhar é que somos agora um País de “classe média”. E ponto final!
Se formos analisar com um pouco mais atenção os números por trás dos gráficos, o que se percebe é que metade dos domicílios contam com uma renda mensal inferior a R$ 3.400. Afinal, este é o limite para o enquadramento dos pobres (classes D e E). Ora como a média de membros dos domicílios para essa faixa de renda é superior à média nacional de 2,97 pessoas, não estaremos longe de uma renda mensal per capita entre R$850 e R$ 1.100. Ou seja, metade da população do País ainda vive sob tais condições terríveis de remuneração.
Ora, uma parcela considerável da famosa “classe C” tampouco pode ser classificada como tendo um padrão de vida e de consumo típico de “classe média”, por mais idealizado que seja o procedimento metodológico realizado. Imaginemos uma família de 4 pessoas, sendo 2 adultos e 2 crianças. Se cada um dos adultos recebesse o equivalente a dois salários-mínimos por mês em 2024, a renda domiciliar seria de pouco mais de R$ 5.600 mensais. Ora, como o próprio intervalo da classe C desta pesquisa varia entre R$ 3.400 e R$ 8.100, percebe-se que esse universo abarca um contingente de domicílios/famílias/pessoas que estão muito longe de qualquer imaginário edílico de pertencimento à “classe média”.
Para tanto, basta imaginar o padrão de vida e de consumo deste suposto núcleo familiar com tal rendimento mensal. Após a realização dos gastos mais do que básicos com alimentação, habitação e transporte, que parcela da renda sobraria para a satisfação de itens como saúde, educação, cultura e lazer? As pessoas podem até não serem assalariadas e trabalharem em atividades como motorista de aplicativo ou vendedor ambulante. Trata-se de categorias que o IBGE classifica como “trabalhadores por conta própria”. No entanto, as condições objetivas das respectivas vidas está muito distante de qualquer padrão das chamadas “camadas médias urbanas”, adicionados ao fato de que algumas pesquisas revelam um desejo de seus integrantes de formalizarem suas relações trabalhistas. Ou seja, é bem possível que uma parcela expressiva daqueles que tenham migrado para o modelo o tenham feito por falta de opção.
Desta forma, o que se pode concluir é que estamos muito distantes de uma sociedade que possa ser caracterizada como “País de classe média”. Quer seja pela inserção das classes sociais no processo produtivo e de geração. Quer seja pelo nível de remuneração mensal dos agentes sociais envolvidos. Quer seja pelo padrão de consumo e de acesso a bens e serviços públicos essenciais. Quer seja pela proporção dos setores miseráveis e muito pobres no conjunto da população.
QUE PAÍS É ESTE?
As melhorias efetivamente verificadas ao longo do período recente em todos estes quesitos apontam para necessidade de acelerar e aprofundar esse padrão de redução das desigualdades. Mas não basta apenas comemorar de forma irresponsável as mudanças marginais como sendo o coroamento de um processo de ingresso em um outro patamar de uma nova forma de concertação social, onde a generalização do conceito de “classe média” apontasse para uma mudança efetiva e duradoura na qualidade das relações sociais de produção.
Afinal, ainda não recuperamos nem mesmo os tempos dos primeiros mandatos de Lula, período em que setores de nossa elite se sentiam incomodados com a ascensão de camadas de baixo da nossa pirâmide da desigualdade. Essa era a época em que se reclamava que os aeroportos estavam lotados, parecendo mesmo rodoviárias. Ou então que a simbologia das cenas e relatos onde trabalhadoras domésticas conseguiam acesso e condições para viajarem para o exterior – os parques da Disney nos Estados Unidos eram os destinos mais procurados.
Enfim, independentemente das críticas que se possam fazer aos critérios de definição do conceito ou mesmo de sua utilização para o nosso caso, o fato concreto é que o Brasil de hoje está muito distante de ser um “País de classe média”.
* Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal
Recebo mais que isto é não me considero classe média, recebo o mesmo salário desde o ano de 2016. Em 2016 eu me considerava classe média pois viajava, trocava móveis e itens elétricos da casa quando estragava, hoje tudo que comprei há dez anos atrás continuam em uso estragados; sofás, eletrodomésticos, colchões, roupas de camas e travesseiros,o estritamente essencial são comprados.
Que aula magistral sobre nossa vergonhosa realidade econômica e a consequentemente mentalidade doentia desses que querem imprimir ao Brasil um novo factoide tão absurdo, incoerente, insensato e contraditório. Um verdadeiro despautério! Como alguém pode tentar enganar seu povo com tamanha desfaçatez ? Dizer que estamos vivendo a satisfação e o conforto daquilo que usufrui a classe média é ignorar descaradamente e com total cinismo o que a população vive em sua rotina nas filas dos postos de saúde, na necessidade de que as crianças e outros estudantes comam obrigatoriamente a merenda escolar para evitarem desfalcar a pouca reserva da despensa doméstica, etc. Um país onírico, somente visível para quem nele não vive. Que pena estarmos nesse rumo desastrado! Enquanto isso, políticas públicas eficazes de alto impacto para a melhoria da qualidade de vida da população a médio e longo prazos deixam de ser implementadas em nossos parcos sistemas de Ensino, Saúde, acesso ao trabalho qualificado, transporte, etc.