
Para o professor Ildo Sauer, da USP, ataques afrontam leis internacionais e objetivaram desviar a atenção do mundo sobre o genocídio em Gaza. Já Ronaldo Carmona, da ESG, diz que usinas estão a 800 m e as bombas americanas atingem apenas 60 m de profundidade
O professor Ildo Sauer, titular do Instituto de Energia da USP e ex-diretor da Petrobrás, afirmou, na segunda-feira (23), ao canal Faixa Livre do Youtube e ao HP, que o bombardeio às instalações nucleares do Irã pelos Estados Unidos, ocorrido no domingo (22), foi uma violação do direito internacional, dos princípios do Tratado de Westfália e uma afronta direta à Carta das Nações Unidas.
BOMBAS DESTRUÍRAM ARCABOUÇO LEGAL
Para o professor, os bombardeios foram acima de tudo uma afronta ao acordo de não-proliferação assinado em 1º de julho de 1968. “Mais do que as explosões que teriam destruído as instalações, elas destruíram o arcabouço de convivência internacional engendrado a partir dos acordos de Tratado de Westfália de 1648 e, acima de tudo, aquilo que seria uma proteção dos países sem armas nucleares que subscreveram o Tratado de Não-Proliferação, acreditando que os países detentores de armas cumpririam este acordo”, observou Ildo.
“Quando os países que detinham bombas, Estados Unidos, União Soviética, Reino Unido, França e China, assinam um acordo como estados nuclearizados, eles assumiram compromissos no preâmbulo do tratado, primeiro, a afirmação de que o objetivo seria a paz, segundo, que num prazo razoável, todo o mundo deveria ser desarmado nuclearmente, e todos os materiais, plutônio e urânio, enriquecido, deveriam ser colocados sob salvaguardas da Agência Internacional de Energia Atômica”, destacou Ildo, lembrando que nada disso aconteceu.
Para o professor, os ataques de Israel não só afrontam o tratado e as leis internacionais como tinham, e têm, o objetivo de desviar a atenção do mundo sobre o grande genocídio que está sendo cometido contra o povo palestino. Ildo lembrou que os EUA foram fundamentais para que Israel tivesse acesso a armas nucelares e denunciou que a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) fez declarações sem base técnica, preparando o ambiente para os ataques de Israel e dos EUA ao Irã.
SOFTWARE ESPIÃO
“A AIEA aparentemente contratou o software chamado Mosaic, criado pela empresa Palantir, de amigos do Trump, inclusive, como instrumento de inteligência artificial, para orientar os ataques das Forças Armadas de Israel contra os palestinos. Uma extensão deste software de inteligência artificial aparentemente foi contratado pela Agência Internacional de Energia Atômica, que é aquela agência que deveria monitorar e certificar se o Irã não descumpriu o acordo”, denunciou Ildo Sauer.
O professor Ronaldo Carmona, da Escola Superior de Guerra (ESG), também comentou os bombardeios e explicou que Israel não tem condições de atingir o programa nuclear iraniano e pediu ajuda dos EUA para fazê-lo. Segundo Carmona, os iranianos se aproveitam de uma formação rochosa onde suas estruturas nucleares são colocadas. “Os EUA usaram uma bomba chamada GBU-57, que é uma bomba antibunker de 14 toneladas, que foi lançada por um avião furtivo chamado Self B-2”, disse o especialista.
“Esses ataques de domingo, contudo, não lograram, segundo consta, gerar a destruição total dessas usinas nucleares iranianas, sobretudo a principal delas, que é a usina de Fordow”, afirmou Ronaldo Carmona. “A usina está à cerca de 800 metros abaixo do solo. E essa bomba, a tal da GBU-57, é uma bomba que consegue penetrar até cerca de 60 metros, então estima-se que sim, ela pode ter causado algum dano, mas de forma alguma ela conseguiu aniquilar essas usinas nucleares iranianas”, acrescentou.
Para o professor, “não existe bomba que tenha essa capacidade de penetração, se o objetivo for a destruição dessas usinas por meio militar, não há outra solução que não o envio de tropas no terreno, ou seja, forças especiais ou algum tipo de efetivo que consiga penetrar e destruir essas usinas que estão localizadas no subterrâneo”. “Então dificilmente um ataque aéreo, por mais que os Estados Unidos em combinação com Israel utilize essas bombas antibunker, dificilmente conseguiriam a destruição total dessas usinas”, prosseguiu o professor da ESG.
TEMPOS DE BARBÁRIE
Na opinião de Ildo Sauer, “a humanidade voltou aos tempos da barbárie, onde o direito internacional não é respeitado, onde a confiança nas diplomacias e nas negociações não pode mais vigorar, porque sistematicamente instrumentos de tergiversação e de armadilhas foram criadas para levar a este contexto atual”. Ele destacou que o Brasil buscou ter um papel de protagonista, junto com a União Soviética, mas não conseguiu se impôr.
“No governo Fernando Henrique Cardoso, o Brasil assumiu o papel de subalternidade, desnecessariamente, assinando o Tratado de Não-Proliferação, autorizando a entrada desses mesmos fiscais e inspetores da Agência Internacional de Leite Atômico, que, agora, aparentemente, usaram esse software Mosaic, desenvolvido para outros fins, como instrumento de inteligência, para orientar as ações dos inspetores. Mais, ainda, para revelar informações. Porque, veja, o papel da agência deveria ser passivo e só verificar’, lembrou Ildo Sauer.
“Esse software Mosaic, ele não faz só busca de informações e indícios, ele faz previsões de conduta futura, portanto, a sua utilização pela agência, lá no Irã, e em outros países, provavelmente, também no Brasil, criou um novo patamar, onde eu acho que a Agência Internacional de Energia Atômica violou suas obrigações de se manter como um órgão de autoridade neutra”, denunciou o professor da USP.
TODOS TÊM QUE ABRIR MÃO
Ildo Sauer destacou que “cabe à sociedade brasileira saber que aquilo que está acontecendo com o Irã hoje ameaça todos os países, não só o Irã, inclusive o Brasil. O Brasil, então, poderia dizer, olha, ou todos os países cumprem o que está nos princípios do acordo ou não pode continuar assim. Todos têm que abrir mão do plutônio e do urânio enriquecido e coloca-lo sob salvaguarda da agência internacional para livrar a humanidade deste pesadelo, que agora está nas mãos de bárbaros terroristas”, afirmou Ildo, reforçando que “quem descumpre a lei e usa a força para atacar uma sociedade não cumpre mais o direito internacional, está fora da lei”.
Carmona também questionou o comportamento de Israel e afirmou que o regime israelense não está cumprindo as leis. “A gente deve questionar por que Israel tem uma bomba nuclear, afinal de contas, desse ponto de vista, Israel é um país que não é signatário do tratado de não proliferação de armas nucleares, inclusive tem, digamos assim, por meios ilegais, do ponto de vista do direito internacional, essa bomba nuclear”, observou. “Então”, prosseguiu Carmona “a dúvida recai mais sobre Israel do que sobre o Irã”.
“O Irã, embora tenha declarado que busca ter um programa nuclear para fins pacíficos, o certo é que ele é quase que incentivado, tendo em vista a sua própria sobrevivência, a desenvolver um artefato nuclear, afinal de contas, a liderança iraniana olha para os lados e ela vê o que aconteceu, por exemplo, com o Kadhafi na Líbia ou com o Saddam Hussein no Iraque, que abdicaram de seus programas nucleares e acabaram decapitados”, apontou o professor da ESG.
MUDANÇA DE REGIME
Ele lembrou que Donald Trump “tem declarado por vários dias seguidos que o objetivo dos Estados Unidos no Irã é uma mudança de regime, ou seja, ele quer, na verdade, a queda do atual regime e a substituição por um regime que ele seja simpático”. Então, prosseguiu Carmona, “diante disso, evidentemente, que até por uma questão de sobrevivência, o governo iraniano busca todos os meios de se defender”.
“Aliás, esse é o argumento utilizado também por Israel. É Israel, inclusive, que levanta a questão de que o Irã é um inimigo existencial que tenta destruí-lo, portanto, esses são os motivos pelos quais, inclusive, Israel iniciou as ações militares para aniquilar o programa nuclear iraniano. Então, na verdade, esse é o jogo que está sendo travado e que eu acho importante a gente compreender. Entender todas essas questões de fundo”, prosseguiu o especialista.
Carmona explicou ainda que bomba nuclear é uma arma que serve para dissuadir uma agressão, ou seja, para impedir que outros agridam. “Por que, por exemplo, o governo da Coreia do Norte não teve o mesmo fim que Gaddafi ou Saddam Hussein? Porque ele tem um artefato nuclear, isso é amplamente reconhecido pela literatura de geopolítica”, argumentou. “Por que que Israel, por exemplo, busca desenvolver a sua arma nuclear à margem do sistema internacional, à margem do direito internacional? Para possuir exatamente um instrumento de dissuasão contra os seus inimigos externos”, prosseguiu o professor.
RADICALIZAÇÃO
“Então é assim que o mundo funciona, infelizmente, cada vez que você apela para as armas, para a guerra, os governos tendem à radicalização. É o caso do governo do Irã, mas também é o caso do governo de Israel”, disse Carmona. “Se você vê o governo do primeiro-ministro Netanyahu, ele, aliás, acaba de sobreviver a uma moção de censura no parlamento israelense, ele conseguiu reverter uma moção de censura por estreita margem de 61 a 53″, destacou.
“O governo de Netanyahu também é um governo extremista, composto inclusive por elementos extremistas que fizeram o que estão fazendo em Gaza, o massacre que aconteceu em Gaza ou a tentativa de recolonização da Cisjordânia. Então, eu diria assim, que nós devemos ir além do senso comum, dos chavões e procurar interpretar as questões de uma forma mais profunda. Sobretudo nós brasileiros”, prosseguiu o professor da ESG.
Carmona fez questão de dizer que o Brasil não faz parte deste conflito. “Nós brasileiros conseguimos ter uma relação de amizade tanto com o Irã quanto com o Israel, por isso nós não somos exatamente parte do conflito. Nós queremos um mundo multipolar e trabalhamos por isso. Agora, compreender as causas mais profundas do conflito é que eu acho que é o nosso papel nesse momento”, destacou.
MENTIRAS SOBRE O BRASIL
O professor desmentiu invenções espalhadas recentemente de que o Brasil teria vendido urânio ao Irã. “Isso é absolutamente risível”, disse ele. “Para quem consegue entender o mínimo de como funciona o programa nuclear brasileiro, sabe que isso é uma tremenda fake news, muito provavelmente plantada por serviços de informação de potências estrangeiras que querem causar confusão no nosso meio”, denunciou.
“Na verdade, o Brasil não apenas não exporta urânio, o Brasil tem uma proibição de exportação de urânio, embora no futuro eu não acho descabido que o Brasil pudesse, sob determinadas condições, exportar urânio para fins pacíficos, que é um mineral que o Brasil tem em grande abundância. O Brasil estima-se que possui a terceira maior reserva de urânio”, ponderou.
“Eu acho que, para fins pacíficos, para fins de produção de energia, não seria incorreto que no futuro a gente pensasse em exportar urânio como um material energético, assim como exportamos petróleo, exportamos gás natural, etc, etc”, completou Ronaldo Carmona.