
Chacina inclui seis crianças entre 2 e 8 anos, mais dois adolescentes. Os dois adultos mortos haviam sido agraciados com visto norte-americano para deixar o país.
A agência de notícias Al Jazeera denunciou na segunda-feira (30) que, ao invés de um alvo do Estado Islâmico (ISIS-K) em Cabul, como o Pentágono asseverou, o que foi explodido por míssil disparado por um drone norte-americano no domingo foram 10 membros de duas famílias, com idades entre dois e 40 anos.
Por sua vez as agências BBC e Associated Press revelaram que entre os mortos, seis eram crianças entre 2 e 8 anos e dois eram adolescentes. Os dois adultos mortos inclusive tinham sido contemplados com o visto norte-americano para serem evacuados com a família.
Nesta segunda-feira, Washington anunciou o término da evacuação desde o aeroporto de Cabul, em meio ao pânico na Casa Branca de que a imagem de Biden pudesse se desgastar ainda mais após o final lúgubre de sua ocupação de 20 anos.
Emran Feroz, um jornalista afegão baseado na Alemanha e que nos últimos 10 anos investigou o impacto dos ataques aéreos contra civis, ouvido pela Al Jazeera, disse que “é muito simbólico que as operações dos EUA no Afeganistão tenham começado com ataques de drones e terminado com ataques de drones. Parece que não aprenderam nada em 20 anos”.
Conforme a Al Jazeera, que ouviu os perplexos e indignados familiares, “as famílias Ahmadi e Nejrabi empacotaram todos os seus pertences, esperando ordem para serem escoltados até o aeroporto de Cabul e finalmente se mudarem para os Estados Unidos” – mas “a mensagem que Washington enviou foi um foguete em suas casas em um bairro de Cabul”.
Durante a semana anterior, a família Ahmadi se reunira na pequena casa de dois andares, onde mora há décadas, fazendo as malas, antecipando o dia em que partiriam do mesmo aeroporto que Washington alegou que eles representavam uma ameaça.
“CRIANÇAS INOCENTES E INDEFESAS”
“Eram crianças inocentes e indefesas”, disse o tio Ahmadi, sobre as vítimas do drone norte-americano. A mais nova, Malika, só tinha dois anos.
Se não tivesse saído para comprar mantimentos, o próprio Ahmadi poderia ter sido uma das vítimas. Por horas, ele e o resto da família sobrevivente tiveram de ouvir a mídia afegã e internacional se referir a seus entes queridos, “cujos restos mortais eles tiveram que reunir com as próprias mãos”, como relataram, simplesmente como “alvos suspeitos do Estado Islâmico”.
Ahmadi conta que seu irmão, o engenheiro Zemarai, de 40 anos, acabava de chegar do trabalho. Como as famílias esperavam ir para os Estados Unidos, Zemarai pediu a um de seus filhos que estacionasse o carro dentro da casa de dois andares. Ele queria que seus filhos mais velhos praticassem a direção antes de chegarem aos EUA.
Várias crianças entraram rapidamente no carro, querendo fazer o curto trajeto da rua até o jardim da casa da família. “Quando o carro parou, o foguete atingiu o local”, disse Aimal à Al Jazeera.
Ismailzada disse à AP que o outro parente, Naser Nejrabi, que era ex-soldado do exército afegão e ex-intérprete do exército dos EUA, também foi morto, junto com dois adolescentes.
“SÓ ENCONTRAMOS AS PERNAS” DO MENINO
A Al Jazeera descreve o caos que se seguiu, com parentes e vizinhos acorrendo frenéticos na tentativa de apagar as chamas, que se espalharam do sedã Toyota em que as crianças haviam se acomodado até um SUV estacionado nas proximidades:
“Vizinhos falando com a Al Jazeera disseram que a casa, onde meninos e meninas brincavam minutos antes, se transformou em uma ‘cena de terror’. Eles descreveram a carne humana presa às paredes. Ossos caíram nos arbustos. Paredes manchadas de vermelho com sangue. Vidro quebrado em todos os lugares”.
Farzad, um vizinho, disse sobre um dos meninos mais novos: “Só encontramos as pernas dele”.
No início da manhã de segunda-feira, a casa de Zemarai estava lotada de familiares, vizinhos e amigos preocupados que tinham vindo ver os carros queimados, os brinquedos infantis de plástico dobrados com o impacto da explosão e os chinelos da menina que foram deixados em um dos quartos do andar de baixo.
“AUTODEFESA”, ALEGA PENTÁGONO
Em um universo paralelo, o Pentágono afirma ter conduzido “um ataque aéreo de autodefesa não tripulado sobre o horizonte hoje em um veículo em Cabul, eliminando uma ameaça iminente do ISIS-K”, segundo o comunicado no final da tarde de domingo, referindo-se à afiliada local do Estado Islâmico.
O mesmo documento assevera que “não há indicações no momento” de que civis foram mortos, embora diga que o Comando Central dos EUA está “avaliando” tal possibilidade. À noite, o Pentágono anunciou investigação sobre o “incidente”.
Para os Ahmadis e seus vizinhos, registra a Al Jazeera, as alegações de que o ataque tinha como alvo um potencial carro-bomba do Estado Islâmico é nauseante. “Somos todos afegãos, sabemos o que um carro carregado de explosivos faria se fosse atingido do céu”, disse Abdol Matin, um vizinho que cresceu com as crianças Ahmadi e via os meninos como irmãos.
“Se você não consegue acertar o alvo certo, então deixe o Afeganistão para os afegãos”, disse Abdol Matin na véspera do horário programado para as forças dos EUA deixarem o país após 20 anos, encerrando a mais longa guerra da América.
VISTO ESPECIAL
Outros vizinhos disseram que bastava olhar para as duas vítimas mais velhas, Zemarai e seu cunhado, Naser Nejrabi, como prova de que não tinham más intenções ou afiliação a nenhum grupo armado. Zemarai trabalhava como engenheiro técnico há mais de uma década. Seu cunhado, Naser Nejrabi, que estava entre os mortos, serviu no Exército afegão na província de Kandahar, no sul.
O outro irmão de Zemarai, Romal, que também estava ausente no momento do ataque, trabalhava como motorista no Ministério de Águas e Energia. O tempo dos homens com o governo e a afiliação com forças estrangeiras renderam à família um Visto Especial de Imigrante oferecido pelos Estados Unidos.
“Eles trabalhavam para empresas privadas. Eles serviram no exército. Eles faziam parte do governo, o que faria qualquer um pensar que são terroristas?”, disse Aimal.
ALVOS SEM NOME
Emran Feroz, que publicou em 2017 o livro em alemão’ Morte ao Apertar de um Botão’, disse que os resultados da guerra de drones dos EUA podem ser vistos nas ruas de Cabul, onde membros do alto escalão do Talibã, incluindo alguns que foram declarados mortos “várias vezes”, estiveram vagando pela capital desde que o grupo assumiu o controle do país.
“Mas a pergunta que ninguém parece querer fazer é quem foi morto em vez deles?”, assinalou o investigador. Feroz disse que outro ataque de drones dos EUA foi realizado em Nangarhar um dia antes do ataque à família Ahmadi, mas que “ninguém perguntou sobre isso”. “Todos os meios de comunicação repetiram a declaração de Joe Biden de que os alvos eram o Daesh sem questioná-lo”, disse ele, referindo-se ao nome árabe do Estado Islâmico.
Feroz disse que Washington e seus aliados ao longo desses anos têm tentado “convencer o povo afegão de que esses ataques aéreos estão apenas matando terroristas, mas agora, em Cabul, estamos vendo seus verdadeiros custos.”