BETO ALMEIDA (*)
A Era Vargas foi repleta de iniciativas construtivas no campo da comunicação e da cultura, mas o capital da notícia transformou iniciativas grandiosas e necessárias apenas no “populismo de um ditador”
“Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência” (Getúlio Vargas, Carta Testamento).
“Maestro, eu venho lhe convocar para promover a educação musical da juventude brasileira”. Foram estas as palavras do Presidente Getúlio Vargas, na lata, quando procurou Villa-Lobos, para que ele cumprisse aquela missão eivada de grande estratégia e soberania cultural. Este relato vem da esposa do maior compositor das Américas, Maestro Heitor Villa-Lobos, Dona Mindinha, acrescentando:
“Getúlio nem perguntou se Villa-Lobos o apoiava politicamente, que pensamento tinha de seu governo. Simplesmente lhe propôs uma tarefa”, informou.
Ainda se escuta pelas paredes e pelas alcovas, pelas torres e pelos porões, o estampido trágico daquele tiro no coração da Pátria, naquela manhã em 24 de agosto de 1954, que fez o Brasil desfazer-se em torrente de lágrimas e indignação, em pranto e dor, após a Rádio Nacional dar a leitura do mais importante documento político de sua história: a Carta Testamento de Getúlio Vargas.
As aves de rapina que apertaram aquele gatilho, por anos se esmeram em usar suas armas de destruição em massa de consciências e da verdade: a verdade é escrita pelos vencedores, pouco importa sua sordidez criminal. Mas, isso não nos impediu de buscar a verdade, oculta sob a torrente de mentiras, que filmes, séries televisivas, teses acadêmicas, livros, peças teatrais e o jornalismo apátrida e hegemônico, ainda que o trabalho de recompor e de revelar a verdade sejam hercúleos, diante do poderio dos que “não querem que os trabalhadores sejam livres”, como grafou Getúlio, naquela Carta Testamento, com o seu próprio sangue.
Dizem que Vargas era leitor e conhecia a obra de Sigmund Freud (1856-1939), o criador da psicanálise. Devemos acreditar. Apenas um profundo conhecedor da alma humana poderia avaliar que o tiro no próprio peito, imolando-se pela Pátria, levaria a Era Vargas até 31/12/1979, mais um quarto de século.
MULTIPLICAR ESCOLAS, LIVROS E BIBLIOTECAS
A Era Vargas foi repleta de iniciativas construtivas no campo da comunicação e da cultura, mas o capital da notícia transformou iniciativas grandiosas e necessárias apenas em “populismo de um ditador”. As ações de Getúlio na cultura começam com a própria criação, no primeiro mês de governo, vitoriosa a Revolução de 1930, do Ministério da Educação, acompanhado do Ministério do Trabalho.
Trabalho e educação eram um binômio claro e imprescindível para mudar a face de um país agrário, semicolonial, atrasado e inculto. A partir daí registram-se a construção de escolas públicas e gratuitas e a inclusão em massa de crianças na atividade escolar, acompanhada de merenda. Em 1932, surge o Manifesto dos Pioneiros por uma Escola Nova. Reivindicavam-se ensino público, laico (desvinculado da educação religiosa), gratuito, obrigatório e a coeducação – “meninos e meninas estudando no mesmo ambiente escolar”, conta a historiadora Maria Luiza Marcílio em seu livro “História da Escola em São Paulo e no Brasil” (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Instituto Fernand Braudel, SP, 2005).
O Manifesto defendia ainda: educação como uma função essencialmente pública; a escola deve ser única e comum, sem os privilégios econômicos de uma minoria; todos os professores devem ter formação universitária; o ensino deve ser laico, gratuito e obrigatório.
A decisão do governo Vargas provocou irascível reação conservadora da Igreja Católica que, desde o Brasil Colônia, fora responsável pela Pedagogia Colonial que adentrou gerações à obediência sem consciência, ao mecanicismo antidialético e enaltecedor dos valores mais retrógrados na educação e na cultura. A Era Vargas promoveu a ruptura com este passado do Brasil Arcaico para levá-lo à industrialização combinada com a expansão de direitos.
O voto secreto e o direito ao voto feminino eram, também, rupturas culturais com a sub cidadania das mulheres e o constrangedor e oligárquico voto a Bico de Pena, negação da democracia política, que passam, assim, a serem convocadas pela Era Vargas a um protagonismo crescente na vida do país.
O INSTITUTO NACIONAL DO LIVRO
Não se faz educação e escolas sem empreender a leitura e livros, para o quê a Era Vargas criou o Instituto Nacional do Livro (INL, 1937), por meio do qual o Estado multiplica a editoração de livros num país marcado por horrendo analfabetismo. Os filhos daquela geração analfabeta, já não mais seriam condenados a repetir e a ratificar a ignorância.
A multiplicação de escolas, das matrículas e da produção de livros indicava um novo rumo para o país. Suas atribuições seriam, porém, ampliadas, como o demonstram as três seções em que se dividiu: Seção da Enciclopédia e do Dicionário, responsável pela organização e publicação da Enciclopédia Brasileira e do Dicionário da Língua Nacional. Seção das Publicações, responsável pela “edição de obras raras ou preciosas”, de interesse para a formação cultural do povo brasileiro. Esta seção tinha ainda como atribuição adotar medidas necessárias ao aumento, melhoria e barateamento das edições de livros no país, bem como promover os meios necessários à importação de livros. Seção das Bibliotecas, incumbida de incentivar a organização e auxiliar a manutenção de bibliotecas públicas em todo o território nacional. (Decreto do Ministro Gustavo Capanema).
Era verdadeira revolução num país iletrado, marcado pela não leitura e pela pedagogia colonial obscurantista, comandada pela Igreja Católica. Também empenhada na qualificação dos trabalhadores brasileiros, visando a industrialização estruturante, a Era Vargas criou diversos instrumentos, um dos quais recebeu o jovem Luiz Inácio da Silva, levado pela mão de Dona Lindu, onde se formou como Torneiro Mecânico, o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI).
SABOTAGENS: A CONTRARREVOLUÇÃO DE 1932
As sabotagens não se fizeram esperar. Em 1932, apesar do governo Vargas já ter convocado a eleição da Assembleia Nacional Constituinte, as forças vinculadas aos grandes fazendeiros, ao clero atrasado e oligárquico, subordinados aos banqueiros da City de Londres, furibundos com o início da Auditoria da Dívida Pública Nacional, desataram a Contrarrevolução de 1932, visando o retorno à Constituição do Império, levando o país a consumir-se em uma guerra civil por seis meses, vencida pelo Governo Provisório, para o que foi importantíssima a solidariedade da classe operária paulista que, incumbida da fabricação de munição para as tropas conservadoras, colocou areia naquelas granadas conservadoras, como relatado no livro “A Revolução Inacabada”, de Lutero Vargas (1988).
VOZ DO BRASIL, MÚSICA, CINEMA E TEATRO
O Instituto Nacional do Livro não nasceu sozinho, vem acompanhado do Instituto Nacional de Música, que passa a se chamar Escola Nacional de Música, em 1937, e também pelo Instituto Nacional do Cinema Educativo (INCE, 1936), sob a direção do notável intelectual, antropólogo e professor Roquete Pinto e pelo pai do Cinema Brasileiro, Humberto Mauro. O Canto Orfeônico, dirigido por Villa-Lobos, chegou a reunir, no Estádio do Vasco da Gama, um coral de 60 mil vozes, integrada também pela saudosa Dona Ivone Lara, que presenciara as aulas de música na escola regular, um grande estímulo para a elevação estética e cultural de nossa juventude, cuja reedificação se faz necessária numa indispensável reeducação dos sentidos de nossa sociedade, hoje tão brutalizada por uma TV que cultua as armas, tiroteios, homicídios, e que tanto ofende os padrões elementares da civilização.
VOZ DO BRASIL: PRIMEIRA REGULAMENTAÇÃO INFORMATIVA
Também no mesmo período, quando o Brasil se via ameaçado de ter que travar uma guerra com a Inglaterra, contrariada por terem os bancos ingleses sido alvo da legítima e soberana Auditoria da Dívida Externa, reduzida em mais de 60%, com contratos falsos cancelados, o que gerou sobra de recursos, devidamente aplicada em programas sociais, abundantes na Era Vargas, surge a Voz do Brasil, pelas mãos de Armando Campos, amigo de infância de Getúlio Vargas, transmitido a partir de 1935, a princípio com o nome de “Programa Nacional”. Programa radiofônico mais antigo, naquela dimensão, em todo o Hemisfério Sul, constituindo-se na primeira regulamentação da informação brasileira. A regulamentação midiática compõe, hoje, uma das bandeiras do movimento de democratização da mídia, por enquanto sem sucesso. A Voz do Brasil nasce com o objetivo de fomentar a unidade nacional e a elevação da informação do povo brasileiro então sob ameaça da deflagração de uma guerra por parte da imperialista Inglaterra.
O DISCURSO DE PROCÓPIO FERREIRA
A historiadora Angélica Ricci, pesquisadora do Arquivo Nacional, registra o contexto do surgimento do Serviço Nacional do Teatro (SNT, 1937), na Era Vargas, relembrando que, em agosto de 1940, vários artistas se dirigiram ao Palácio do Catete para agradecer ao presidente Getúlio Vargas a atenção concedida ao teatro. Na ocasião, o ator e empresário Procópio Ferreira fez emocionado discurso reconhecendo essa dívida:
“Se todas as classes que formam o organismo brasileiro, V. Excia. [sic], têm motivos os mais fortes para transformar a sua gratidão no mais intenso desejo, na mais irrecusável obrigação de colaborar na obra de salvação nacional que se processa sob a bandeira do Estado Novo, a classe teatral, mais do que todas, se sente no dever de colocar-se ao lado de V. Excia. [sic] como soldados de vanguarda na intensa campanha que nos vai conduzindo, de vitória em vitória, ao lugar de honra que nos compete, como grande povo, na próxima hegemonia do Novo Continente”.
Visando a estruturação do Serviço Nacional do Teatro, narra Ricci, uma Comissão de Teatro Nacional foi estabelecida em setembro de 1936, como órgão de estudo sobre temas como a construção de teatros, a produção dramatúrgica, a formação de atores e o teatro infantil. Para seus trabalhos foram convocados artistas e intelectuais, como Olavo de Barros, Francisco Mignone, Benjamin Lima, Oduvaldo Vianna e Sérgio Buarque de Holanda (pai de Chico Buarque). Em pouco mais de um ano de existência, a comissão foi responsável por estudos, tradução e publicação de peças e obras sobre teatro, subvenções a companhias profissionais e grupos amadores e promoção de espetáculos de ópera e de dança, registra a historiadora.
RÁDIO NACIONAL, RÁDIO MEC, RÁDIO MAUÁ; ÚLTIMA HORA E ABI
Elis Regina confessou, em entrevista, ter sido muito importante para que ela se tornasse cantora, ouvir diariamente, lá nos pampas, a Rádio Nacional do Rio de Janeiro. De fato, nacionalizada por Getúlio, a emissora chegou a ser a terceira mais potente em todo o mundo, emitindo em três idiomas, além do português, o que até poderia encorajar o Presidente Lula a tomar medidas mais estruturantes na área da comunicação pública, ao invés de investir recursos fabulosos na Rede Globo, fortalecendo sua linha editorial neoliberal, antinacional, e desindustrializante, antitrabalhista.
Com equipamentos doados pelo grande brasileiro Roquette Pinto, fundador da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, a primeira do Brasil, Getúlio Vargas cria a Rádio MEC, no ar até hoje, onde se pode escutar sensível depoimento do poeta Carlos Drummond de Andrade, que fora Chefe de Gabinete do Ministro Capanema, na Era Vargas, destacando a importância daquela decisão governamental para a educação e a cultura no Brasil. Mas, com a Rádio Mauá, Getúlio foi mais longe, pois criou uma “Emissora dos Trabalhadores”, seu bordão, com programação voltada para a elevação informativa da classe operária, especialmente em direitos trabalhistas, para o quê assegurou a presença de Sindicatos na direção da empresa. A iniciativa varguista contrasta e revela a timidez com que Lula3 atua na área da soberania informativo-cultural.
Finalmente, vale registrar a decisão de Getúlio de impulsionar o nascimento do jornal Última Hora, a mais significativa escola de jornalismo popular, democrático e nacionalista que o Brasil registrou. Sem esquecer que a primeira regulamentação da profissão de jornalista é da lavra do Presidente Getúlio, que doou aos jornalistas e ao Rio de Janeiro, a sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), um edifício de 11 andares, dos mais modernos monumentos arquitetônicos junto com o Palácio Capanema, com a convicção de que poderia se transformar em efetiva alavanca para a consolidação da profissão de jornalista no Brasil.
(*) jornalista.
(artigo revisto e atualizado das publicações de 2023, no Portal da AEPET, e de 2024, no Monitor Mercantil).