GIOCONDA BELLI*
Virão atrás de mim? Qual será a sensação de ser presa pelas mesmas pessoas com quem lutei ombro a ombro para derrubar a ditadura de 45 anos dos Somoza na Nicarágua, meu país?
Em 1970, somei-me à resistência urbana clandestina da Frente Sandinista de Libertação Nacional, conhecida como FSLN. Eu tinha 20 anos. A longa e sangrenta luta para nos livrar de Anastasio Somoza Debayle é agora uma lembrança que produz um orgulho agridoce. Alguma vez fiz parte de uma corajosa geração jovem, disposta a morrer pela liberdade. Dos dez companheiros que estavam na minha célula clandestina, apenas dois sobrevivemos. Em 20 de julho de 1979, três dias depois de Somoza expulso por causa de uma insurreição popular, entrei caminhando no seu bunker em uma colina de onde se avistava Manágua, com a sensação de ter alcançado o impossível.
Nenhuma dessas ilusões sobrevive no dia de hoje. Em retrospecto, está claro para mim que a Nicarágua também pagou um custo muito alto por essa revolução. Seus jovens líderes se apaixonaram demais por si mesmos; pensaram que poderíamos superar todos os obstáculos e criar uma utopia socialista.
Milhares morreram para derrubar Anastasio Somoza e muitos mais perderam a vida na guerra dos contras que se seguiu. Agora, o homem que uma vez foi escolhido para representar nossa esperança de mudança, Daniel Ortega, tornou-se outro tirano. Junto com sua excêntrica esposa, Rosario Murillo, eles governam a Nicarágua com punho de ferro.
Agora que as eleições de novembro estão cada vez mais próximas, o casal parece possuído pelo medo de perder o poder. Atacam e prendem quem consideram um obstáculo para eles. Nas últimas semanas, eles prenderam seis candidatos à presidência e prenderam muitos mais, incluindo figuras revolucionárias proeminentes que uma vez foram seus aliados. No mês passado, inclusive foram atrás do meu irmão. Para evitar ser capturado, ele fugiu da Nicarágua. Não estava paranoico: poucos dias depois, em 17 de junho, mais de vinte policiais armados invadiram sua casa; o procuravam. Sua esposa estava sozinha. Eles vasculharam cada canto e partiram depois de cinco horas.
Na noite seguinte, vários homens mascarados e armados com facas e um rifle entraram para roubar a sua casa. Ouviu-se um deles dizer que se tratava de uma “segunda operação”. Outro ameaçou matar sua esposa e estuprar minha sobrinha, que tinha ido passar a noite com a mãe. Ortega e Murillo parecem estar usando a forma mais crua de terror para intimidar seus oponentes políticos.
Pessoalmente, nunca admirei Ortega. Sempre me pareceu um homem medíocre e hipócrita, mas sua experiência na rua permitiu que ele ultrapassasse muitos de seus companheiros.
Em 1979, ele encabeçou o primeiro governo sandinista e foi presidente de 1984 a 1990. A derrota para Violeta Chamorro nas eleições de 1990 deixou uma cicatriz na psique de Ortega. Retornar ao poder tornou-se sua única ambição. Depois do fracasso eleitoral, muitos de nós quisemos modernizar o movimento sandinista. Ortega não aceitou nada disso. Ele considerou nossas tentativas de democratizar o partido como uma ameaça ao seu controle. Aos que não estivemos de acordo com ele nos acusou de vender nossas almas aos Estados Unidos e se cercou de bajuladores. Sua esposa ficou do lado dele, mesmo depois que sua filha acusou Ortega, seu padrasto, de abusar sexualmente dela aos 11 anos, um escândalo que teria sido o fim da carreira de outro político.
De fato, Murillo, que foi caracterizada como uma Lady Macbeth tropical, renovou a imagem de Ortega com astúcia depois que ele perdeu mais duas eleições. Suas ideias New Age apareceram em símbolos de amor e paz e faixas pintadas em cores psicodélicas. Convenientemente, Ortega e sua esposa se metamorfosearam em católicos devotos após décadas de ateísmo revolucionário. Para ter a Igreja Católica mais do seu lado, sua nêmesis na década de 1980, Ortega concordou em apoiar a proibição total do aborto. Ele também assinou em 1999 um pacto com o presidente Arnoldo Alemán, que mais tarde foi considerado culpado de corrupção, para preencher cargos no governo com quantidades iguais de partidários. Em troca, o Partido Liberal Constitucionalista de Alemán concordou em reduzir a porcentagem de votos necessária para ganhar a presidência.
Funcionou. Em 2006, Ortega venceu com apenas 38% dos votos. Assim que assumiu o cargo, começou a desmantelar as já enfraquecidas instituições estatais. Ele obteve o apoio do setor privado ao permitir-lhe ter voz e voto nas decisões econômicas em troca da aceitação de suas políticas. Modificou a Constituição, que proibia expressamente a reeleição, para permitir um número indefinido de reeleições. Então, em 2016, em campanha para seu terceiro mandato, Ortega escolheu sua esposa para a vice-presidência.
Ortega e Murillo pareciam ter assegurado o poder até abril de 2018, quando um grupo de capangas reprimiu violentamente uma pequena manifestação contra uma reforma que reduziria as pensões da previdência social. Muitos protestos pacíficos se espalharam por todo o país. Ortega e Murillo reagiram com fúria e lutaram contra a revolta com balas: 328 pessoas foram assassinadas, 2.000 feridas e 100.000 exiladas, segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Paramilitares armados andavam pelas ruas matando a torto e a direito, e os hospitais foram obrigados a negar assistência médica aos manifestantes feridos. Os médicos que desobedeceram foram demitidos. O regime impôs um estado de emergência de fato e suspendeu os direitos constitucionais. As manifestações públicas de qualquer tipo foram proibidas. Nossas cidades foram militarizadas. Ortega e Murillo justificaram essas ações com uma grande mentira: o levante foi um golpe de estado planejado e financiado pelos Estados Unidos.
As próximas eleições da Nicarágua estão marcadas para 7 de novembro. No final da primavera, os dois principais grupos de oposição concordaram em escolher um candidato sob a égide da Alianza Ciudadana. Cristiana Chamorro, filha do ex-presidente Chamorro, teve forte apoio nas pesquisas. Pouco depois de anunciar sua intenção de concorrer à presidência, lhe impuseram prisão domiciliar.
O governo parece ter fabricado um caso de lavagem de dinheiro com a noção equivocada de que legitimaria sua prisão. Seguiram-se mais prisões: outros cinco candidatos presidenciais, jornalistas, um banqueiro, um representante do setor privado, dois administradores que trabalhavam para a fundação Cristiana Chamorro e até o irmão dela, todos eles acusados sob novas leis de uma ambiguidade conveniente que, em essência, fazem qualquer tipo de oposição ao casal no poder um crime de traição. Ortega insistiu em que todos os detidos faziam parte de uma imensa conspiração apoiada pelos Estados Unidos para derrubá-lo.
Agora, nós, nicaraguenses, nos encontramos sem nenhum recurso, nenhuma lei, nenhuma polícia que nos proteja. Uma lei que permite ao Estado prender pessoas sob investigação por até 90 dias substituiu o habeas corpus. A maioria dos presos não conseguiu ver seus advogados ou suas famílias. Não temos sequer certeza de onde eles estão sendo detidos. À noite, muitos nicaraguenses vão para a cama com medo de que sua porta seja a próxima a ser derrubada pela polícia.
Sou poeta, sou escritora. Sou uma crítica aberta de Ortega. Eu tuíto, dou entrevistas. Com Somoza, eles me julgaram por traição. Tive que ir para o exílio. Agora enfrentarei a prisão ou o exílio de novo?
Atrás de quem irão depois?
*Gioconda Belli é poeta e romancista nicaraguense. Ela foi presidente do centro nicaraguense da organização de escritores PEN International. A matéria foi traduzida do espanhol a partir de artigo publicado no jornal The New York Times